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II. Uma introdução à biotecnologia moderna e a seus principais desafios éticos e

II.5. A biotecnologia humana

A biotecnologia moderna surgiu e se estabeleceu no campo das aplicações biomédicas antes de se aventurar no setor agropecuário e ambiental. Esta sequência foi determinada tanto pela complexidade dos problemas técnicos ligados à biotecnologia verde (Olson 1986, 6; 30), quanto pela maior aceitação, por parte da opinião pública, da biotecnologia vermelha ou

86 biomédica (Sasson 2005, 17). O segundo aspecto deve-se a que a biotecnologia vermelha não se associa à nódoa da degradação ambiental, e também porque se orienta mais diretamente às necessidades do consumidor. Millstone (2000, 126) argumenta que a primeira geração de alimentos geneticamente modificados parecia favorecer quase que exclusivamente as empresas que os desenvolveram.35 Novos remédios, vacinas e procedimentos diagnósticos

para humanos, por sua vez, oferecem poucos motivos para resistência. Afinal, que justificativa teria alguém para se opor à produção de uma variedade de insulina mais barata e com menores chances de causar reações alérgicas, ou às vacinas contra as hepatites A e B? A resposta a este tipo de pergunta parece menos óbvia, entretanto, quando, ao invés de micro- organismos e plantas, passamos a nos referir à utilização de animais em pesquisas. Como mostram Felt e Fochler (2008), os cidadãos costumam ficar perturbados com a ideia de que ratos geneticamente modificados são criados exclusivamente para serem utilizados em testes de laboratórios sendo, em seguida, sacrificados. Cientes disso, os cientistas esforçam-se para justificar a nobreza dos fins de suas pesquisas, enfatizar a existência de normas de experimentação e códigos de ética e, até mesmo, mostrar sua solidariedade com o sofrimento das cobaias. A sensibilidade da opinião pública atinge um patamar ainda superior, entretanto, quando migramos para o campo da biotecnologia humana – isto é, o das tecnologias que manipulam diretamente material humano (células, moléculas, tecidos, genes) para fins terapêuticos.36 É neste ponto que adentramos o campo da bioética.

Nesta tese, não discutiremos a bioética e suas diferentes correntes com a profundidade que o tema merece. Entretanto, cabe ressaltar que o termo foi proposto, na década de 1970,

35 Segundo Millstone (2000, 125), “os maiores beneficiários de cultivares tolerantes a herbicidas são

as companhias que produzem os herbicidas; seus traços geneticamente modificados fornecem no máximo vantagens fracionais aos consumidores.”

36 A biotecnologia humana é sempre de aplicação biomédica – isto é, aplicada na produção de terapias

para seres humanos. Por esse motivo, a literatura se abstém de utilizar o termo “de aplicação biomédica” ao referir-se à biotecnologia humana.

87 pelo médico norte-americano Van Rensselaer Potter, a partir de sua percepção sobre a necessidade de criar uma ciência baseada “na aliança do saber biológico (bio) com os valores humanos (ética)”, considerando-se os enormes avanços nas ciências da vida (Durand 2007, 20). Apesar de relativamente novo, entretanto, o termo – que hoje se associa às ciências biológicas e à medicina – tem raízes milenares. Entre as mais conhecidas, podemos citar o juramento de Hipócrates, baseado no princípio da não maleficência, e até hoje lido na maioria das formaturas de ciências médicas e de enfermagem. Também é possível remeter às origens filosóficas (principalmente em Aristóteles, Immanuel Kant e no utilitarismo) e religiosas (e.g., na casuística, na moral de situação, e na bioética personalista) da palavra.

A igreja católica defende a chamada “bioética personalista”, que parte do princípio de que “a pessoa deve ser o [único] critério de avaliação frente a um dilema bioético”, e considera “que toda vida humana tem início com a fecundação e fim com a morte natural” (Ramos e Lucato 2010, 58). Isso significa a rejeição, por exemplo, de um raciocínio utilitarista, assim como da lógica do “mal menor”37 ou do “fato consumado”38. A oposição da

igreja à ética utilitarista fundamenta-se principalmente em sua crítica ao princípio da “beneficência” tal como definido no chamado Relatório Belmont, de 1974. Tal relatório foi o produto final de uma comissão criada pelo Congresso norte-americano em função de pressões de grupos de direitos humanos e civis (Fernandes 2002, 18). Tais grupos mobilizaram-se principalmente contra o infame caso Tuskegee39 e o apoio do National Institutes of Health

(NIH) a pesquisas que se utilizavam de fetos vivos.

37 Para citar um exemplo, diz a Campanha da Fraternidade da CNBB, de 2006, que “não se pode

negar que o aborto clandestino traz maior risco para a mulher”. Ainda assim, “não [se deve] permit[ir] sua admissão como um mal menor” (CNBB apud Luna 2006, 99).

38 Como exemplo, podemos citar o próprio discurso de George W. Bush, que permitiu a utilização de

linhagens de células TE, uma vez que decisões de vida e morte já haviam sido tomadas.

39 O “Tuskegee syphilis experiment” refere-se a um estudo clínico conduzido na cidade de Tuskegee,

EUA, entre 1932 e 1972, relativo aos efeitos da sífilis no organismo humano. O escândalo veio à tona, anos depois, quando foi descoberto que os participantes do estudo, homens e mulheres negros e

88 O relatório Belmont baseia-se em três princípios éticos: respeito pela pessoa, beneficência e justiça. O segundo princípio acrescenta à máxima de Hipócrates a ideia da maximização de possíveis benefícios e minimização de possíveis danos (NIH 1979). Entretanto, é preciso ressaltar que tal concepção do princípio de beneficência parte de um cálculo de risco que admite a relativização da proteção à pessoa sujeita à pesquisa, desde que isso possa beneficiar gerações futuras ou a sociedade. Tal relativização deu origem, por sua vez, ao principialismo. Atualmente, a disciplina da bioética foca principalmente em temas como o aborto, a eutanásia, o suicídio, a clonagem, as pesquisas com embriões e aplicações específicas da engenharia genética.

Diversos tipos de procedimentos, mais ou menos questionáveis do ponto de vista da bioética, podem ser caracterizados como pertencentes ao campo da biotecnologia humana. No início dos anos 1970, começaram a ser pesquisadas técnicas para a substituição de genes defeituosos através da chamada terapia gênica, cujo alvo específico são as células somáticas – isto é, todas as células do corpo humano, exceto as germinais (espermatozoides e óvulos). Este tipo de terapia envolve comumente a inserção (através de um vetor, tal como um vírus) de genes produzidos em laboratório em um subconjunto limitado de células somáticas, as quais, em seguida, são reintroduzidas no corpo do paciente. A terapia gênica em células somáticas não provoca maiores controvérsias. Em primeiro lugar, posto que deixa intactas as células germinais, ela não afeta os descendentes do indivíduo tratado, tampouco o “pool genético” da espécie humana (Olson 1986, 7). Além disso, não envolve transgenia (combinação de genes de espécies diferentes). Por fim, é utilizada somente para o tratamento de doenças genéticas gravíssimas, para as quais a medicina tradicional não oferece alternativas. Ainda assim, casos como o do adolescente norte-americano Jesse Gelsinger que,

pobres, não foram informados de que tinham sífilis. Além disso, muitos sequer receberam tratamento, uma vez que o estudo se referia ao progresso da sífilis quando não tratada.

89 na esperança de se curar de uma síndrome rara, morreu ao participar de um teste clínico com utilização de terapia gênica, causam certa polêmica (Obasogie 2009).40

Em paralelo ao desenvolvimento da terapia gênica, técnicas da biologia molecular que possibilitaram a produção de embriões fora do útero ampliaram significativamente o campo de atuação da biotecnologia humana. A fertilização in vitro, inicialmente desenvolvida para tratamentos de infertilidade, também pode ser utilizada na seleção de embriões saudáveis nos casos em que ambos os genitores carregam genes de doenças graves, a partir de um procedimento conhecido como diagnóstico pré-implantação (Fink 2007, 135). Por fim, embriões humanos produzidos em laboratório, através da união entre um óvulo e um espermatozoide, ou por transferência nuclear de célula somática (clonagem terapêutica), podem ser utilizados como fontes de extração das células TE.

O isolamento e cultivo bem-sucedidos de células-tronco de embriões humanos foram anunciados pela primeira vez em 1998, nos Estados Unidos,41 quando o mundo ainda se

recuperava da surpresa provocada pelo nascimento da ovelha Dolly, produzida através da clonagem. A maioria das células do corpo humano é programada para desempenhar uma única função ao longo de toda a vida. Neurônios, por exemplo, encarregam-se de transmitir e processar informações através das sinapses, enquanto glóbulos vermelhos são responsáveis pelo transporte de oxigênio. As células-tronco, por sua vez, não são especializadas. A vantagem disto é que, sob determinadas condições fisiológicas e experimentais, elas podem ser induzidas a se transformar em tipos específicos de células, desempenhando um papel importante na regeneração de tecidos e órgãos.

40 Sobre a história de Gelsinger, ver também http://www.jesse-gelsinger.com/jesses-intent2.html. 41 Dois laboratórios de pesquisa nos Estados Unidos, um na University of Wisconsin, e outro na John

Hopkins University, ambos financiados pela Geron Corporation, anunciaram o feito simultaneamente. Todavia, eles usaram técnicas diferentes para a obtenção das células-tronco embrionárias.

90 As células-tronco podem ser classificadas em duas categorias principais: as adultas, que existem, ao longo de toda a vida do organismo, em alguns de seus órgãos e tecidos, e as embrionárias, que podem ser extraídas de embriões jovens. Células-tronco adultas, especialmente as da medula óssea, têm sido utilizadas em tratamentos médicos, especialmente contra o câncer, desde os anos 1950. A maioria dos cientistas, no entanto, concorda que o potencial terapêutico das células adultas é mais limitado que o das embrionárias, uma vez que aquelas podem transformar-se apenas nas células do órgão do qual foram retiradas.42 Células-tronco extraídas de embriões humanos no estágio blastocístico

(três a cinco dias após a fertilização), por sua vez, reúnem duas características valiosas.43 Em

primeiro lugar, elas são pluripotentes: isto é, sob determinadas condições, “podem ser induzidas a se diferenciar em tipos de células especializadas, tais como as células pulsantes do músculo cardíaco, ou as células produtoras de insulina do pâncreas” (Belew 2004, 482). Além disso, são consideradas imortais, o que significa que, através da divisão celular, têm o potencial de se renovar indefinidamente, “dando aos cientistas um suprimento virtualmente ilimitado com o qual podem experimentar” (Boyer 2010, 64). Ainda assim, as pesquisas com células TE sofrem forte oposição, uma vez que o processo de derivação inevitavelmente destrói o embrião (ou blastocisto), o que provoca a revolta daqueles que atribuem a este, independentemente de seu estágio de desenvolvimento, o status de pessoa. É sobre a natureza desse conflito que passaremos a discorrer.

42 Apesar de ainda haver controvérsias, a maioria dos cientistas afirma que o grau de plasticidade – e,

consequentemente, o potencial terapêutico – das células-tronco adultas é muito menor que o das células-tronco embrionárias. Segundo Belew (2004, 483), cientistas também preferem utilizar as células embrionárias devido às dificuldades no cultivo e manutenção das células-tronco adultas. Células-tronco embrionárias, por sua vez, proliferam-se com facilidade, o que aumenta enormemente sua importância, uma vez que um número elevado de células-tronco embrionárias pode ser necessário em terapias de reposição de células-tronco.

43 Aproximadamente cinco dias após a fecundação (união entre o óvulo e o espermatozoide) e o início

da divisão celular, um conjunto de cinquenta a cem células forma o blastocisto. É nesse estágio inicial do desenvolvimento embrionário que células-tronco pluripotentes podem ser extraídas e cultivadas através de linhagens.

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