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II. Uma introdução à biotecnologia moderna e a seus principais desafios éticos e

II.6. Estágio de desenvolvimento e status moral do embrião

Muito antes da “descoberta” das células TE, o problema da relação entre o estágio de desenvolvimento do embrião e seu status moral e legal já preocupava teólogos, filósofos, biólogos, legisladores e juristas, tendo se tornado peça-chave na definição de políticas de aborto e de pesquisas com embriões. Mesmo nos países mais permissivos em relação ao aborto, a liberdade de escolha individual sempre foi contrabalançada por um limite temporal relacionado ao estágio de desenvolvimento do feto. Isto é, o direito exclusivo da mulher de decidir sobre o término de uma gravidez, sem ter que alegar “razões especiais”, só existe “dentro de um determinado espaço de tempo”, o qual em geral se prolonga, no máximo, até o fim do segundo trimestre (Minkenberg 2002, 228). No histórico julgamento Roe versus

Wade,44 por exemplo, a Suprema Corte dos Estados Unidos estabeleceu esse espaço de tempo

utilizando o critério da “viabilidade”: isto é, a capacidade do feto de sobreviver fora do útero materno. Em outras palavras, definiu-se que o interesse do Estado norte-americano em proteger os interesses do feto só poderia sobrepor-se ao direito da mulher à privacidade nos casos de aborto de fetos viáveis (Losco 1989, 265).

Na maioria das tradições religiosas, o posicionamento sobre o aborto e/ou as pesquisas com embriões também está fortemente relacionado ao estágio de desenvolvimento embrionário. No judaísmo, por exemplo, predomina a visão de que nos primeiros quarenta dias após a concepção o embrião é “como água”, o que faz com que sua destruição tenha carga moral semelhante à da destruição de gametas humanos (Tendler apud Walters 2004a, 20). O prazo de quarenta dias também é frequentemente citado por comentadores da tradição islâmica, muitos dos quais acreditam que é no quadragésimo dia após a concepção que a criança recebe a visita do anjo que “assopra” a vida sobre ela (Sachedina apud Walters 2004a,

44 O caso Roe versus Wade foi julgado em 1974, nos Estados Unidos, e até hoje consiste em uma peça

fundamental da política de aborto norte-americana. Para mais detalhes, consultar

92 21). Na teologia cristã, a discussão também é balizada pelo momento no qual o corpo do nascituro é provido de alma. A Igreja Católica afirma hoje que “o ser humano deve ser respeitado e tratado como uma pessoa desde a sua concepção” (João Paulo II [2003] 2007, 121), uma vez que a formação da alma ou “hominização” (ensoulment) ocorre concomitantemente à união entre o óvulo e o espermatozoide. Esse posicionamento, contudo, veio a ser estabelecido somente em 1869, pelo Papa Pio IX. Mais ainda, ele representou a rejeição explícita dos escritos de Santo Agostinho, reforçados por Santo Tomás de Aquino, segundo os quais a alma só aparecia quarenta dias após a concepção (Dolgin 2003, 117). Outras vertentes do cristianismo, no entanto, aceitam o aborto até determinados estágios do desenvolvimento embrionário, que vão desde a formação do sistema nervoso até o primeiro movimento do feto.

Se a marca de quarenta dias parece ter um significado especial nas religiões monoteístas, o 14º dia após a concepção cumpre um papel semelhante para a ciência, uma vez que determina a controversa divisão entre as fases pré-embrionária e embrionária. O termo “pré-embrião” foi utilizado pela primeira vez pelo biólogo norte-americano Clifford Grobstein, em 1979, em um artigo publicado na revista Scientific American. Para Grobstein, a importância de se utilizar um conceito específico para caracterizar embriões de doze a catorze dias, que ainda se encontram no período pré-implantação (no colo do útero), reside no fato de estes ainda estarem sujeitos à gemelização (divisão para a produção de gêmeos) – não podendo, portanto, ser titulares de singularidade (singleness). Tal argumento, entretanto, deve ser entendido no contexto de uma disputa epistemológica, no interior da biologia do desenvolvimento, entre aqueles que baseiam suas teses na genética e os que se apoiam na embriologia (Kim 2008). Adepto do segundo grupo, Grobstein distingue a “individualidade genética”, estabelecida no momento da fertilização, da “individualidade do desenvolvimento”, coeva ao aparecimento do sistema nervoso central (ou linha primitiva) do

93 embrião. Para ele, somente a partir da formação da linha primitiva – isto é, cerca de catorze dias após a concepção – é que se pode falar em embrião. Por fim, Grobstein divide a embriogênese em quatro estágios – pré-embrião, embrião, feto e recém-nascido – (Saxén 1999, 370), aos quais correspondem quatro status morais distintos, ordenados de forma crescente em uma espécie de percurso necessário até que se adquira o status moral mais alto ou integral da pessoa humana. Sob esta perspectiva, o status do pré-embrião seria “idêntico ao de células e tecidos” (Kim 2008, 325).45

A posição de Grobstein foi criticada por diversos especialistas, que a acusaram de politicamente motivada e/ou cientificamente deficiente. Para o embriologista C. Ward Kischer, por exemplo, “o desenvolvimento [embrionário], da fertilização ao nascimento (e além), é um [processo] contínuo”, não sendo possível diferenciá-lo em etapas discretas (Kischer apud Kim 2008). Kischer também argumenta que a diferenciação do pré-embrião com base na fase da pré-implantação não faz qualquer sentido, posto que o que importa, sob o ponto de vista da embriologia humana, é o desenvolvimento do embrião, independentemente se isto se dá “nas trompas de falópio, ectopicamente ou numa placa de petri” (Kischer 2002).46 Por fim, refuta o argumento da singularidade calcada na gemelização com base na

estatística de que apenas 0,22% dos bebês são gêmeos monozigóticos e que a ciência não sabe se todo zigoto tem capacidade intrínseca de gemelização. Apesar de não partilhar da mesma base argumentativa de Kischer, o renomado geneticista Lee Silver também sugeriu que o termo pré-embrião teria sido inventado “para criar a ilusão de que há algo profundamente diferente” entre os estágios da embriogênese (Silver apud Kim 2008, 330).

45 Grobstein não foi o único biólogo do desenvolvimento a articular este argumento. Como mostra

Kim (2008, 325), Michael J. Flower argumentou em 1992 que a distinção entre embriões e pré- embriões era significativa devido a uma grande transformação que só ocorre no início da gastrulação: isto é, o fim da capacidade de gemelização.

46 É importante ressaltar que Kischer, professor emérito de anatomia na Universidade do Arizona, é

também filiado à American Life League, uma organização norte-americana pro-life ligada à Igreja Católica, do qual a American Bioethics Advisory Comission é um braço.

94 A controvérsia em torno do termo pré-embrião fez com que este caísse rapidamente em desuso. Todavia, o marco de catorze dias continuou a ter impacto na elaboração de políticas públicas. Para citar um exemplo, a comissão de ética organizada pelo Ministério da Saúde, Educação e Bem-estar (Department of Health, Education and Welfare) dos Estados Unidos, determinou, em 1979, que apenas embriões com até catorze dias (após a concepção) poderiam ser utilizados em pesquisas. A norma, apesar de influenciada por Grobstein, não foi justificada com base na noção de individualidade, mas na de “conclusão da implantação” e no início do “potencial para sensações” (Kim 2008, 326). Mais ainda, o Conselho preferiu valer- se dos conceitos de “embriões jovens” ou “embriões pré-implantação”. A resistência ao uso do termo “pré-embrião” também pôde ser verificada no Reino Unido. Em 1982, o governo de Margareth Thatcher encarregou uma comissão, liderada pela filósofa Mary Warnock, de formular recomendações de políticas para os campos das pesquisas com embriões e da fertilização in vitro. A Comissão Warnock, como ficou conhecida, reconheceu publicamente que o embrião humano possuía um “status especial” ou diferenciado (Banchoff 2005, 214). Por outro lado, afirmou que, durante os estágios iniciais do desenvolvimento embrionário, tal status não deveria ser considerado motivo suficiente para impedir as pesquisas com embriões. Percebendo a ansiedade da opinião pública diante de seu posicionamento favorável às pesquisas, a Comissão admitiu que seria importante “estabelecer um dia específico do desenvolvimento embrionário após o qual a experimentação não seria eticamente aceitável” (Belew 2004, 490). Apesar de nenhum membro da comissão estar positivamente convencido da exatidão do limite dos catorze dias, este foi aceito por representar uma “solução não totalmente arbitrária para o problema” (Jasanoff 2007, 153). Ainda assim, Warnock e seus colegas acharam prudente não utilizar o termo pré-embrião, por considerá-lo ambíguo.

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