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I. As relações entre ciência e política – uma revisão da literatura

I.6. Uma “Terceira Onda” dos “Estudos Sociais da Ciência e Tecnologia”?

Nos dias de hoje, é difícil encontrar entre os cientistas sociais alguém que se levante para defender abertamente a substituição da democracia por outra forma de governo. Ainda assim, o questionamento da capacidade dos cidadãos de “deliberar inteligentemente a respeito de temas complexos de política pública”, apesar de “desconfortável”, continua sendo “fundamental” (Fischer 2010, 49). Recentemente, no Brasil, o debate sobre a união civil entre pessoas do mesmo sexo trouxe à tona o argumento de que questões desta natureza não devem ser deliberadas nos parlamentos, e sim por “elites” – no caso, os membros do Supremo

15 Hacking critica o nome o adjetivo “social”, de “social construction”, como sendo desnecessário. Já

50 Tribunal Federal (STF) – menos sujeitas às pressões da opinião pública.16 Se a abertura à

participação pública a respeito de questões moralmente sensíveis e controversas nem sempre é considerada a alternativa mais prudente, o que dizer então de temas que, além de incidirem em valores arraigados, envolvem conhecimento especializado, tais como os que são tratados na Nova Lei de Biossegurança? Até que ponto, nestes casos, o consenso sobre os limites da objetividade da ciência e o caráter humano, demasiado humano,17 dos cientistas deve retirar-

lhes qualquer prerrogativa de tomada de decisão? Posto de outra forma, como equacionar conhecimento especializado e participação a fim de garantir tanto a legitimidade quanto a qualidade da governança tecnocientífica?

Apesar de chamarem a atenção para o fato de que a ciência se apoia em fatores extracientíficos para resolver seus conflitos epistemológicos, a grande maioria dos estudiosos no campo dos estudos sociais da ciência e tecnologia questiona a valorização apriorística da participação do público leigo (Felt e Fochler 2008, 489) e não descarta a importância do conhecimento especializado nas sociedades contemporâneas. Até mesmo os mais comprometidos com a crítica ao modelo “elitista” da expertise, segundo o qual os experts teriam acesso não mediado a verdades categóricas, admitem que a alternativa “relativista” – isto é, a ideia de que a ciência pode ser instrumentalizada para apoiar qualquer argumento político – é falha (Jasanoff 2003a). Nesse sentido, o esforço tem sido direcionado no sentido de identificar modelos conceituais que “desafiam a noção do monopólio do conhecimento por um grupo seleto”, e protegido de demandas de accountability (Liberatore e Funtowicz 2003), mas sem se desfazer completamente do valor do conhecimento ou correr o risco de abrir as portas para a irracionalidade.

16 De fato, tratava-se de uma questão de interpretação da Constituição e não de revogação de uma

deliberação legislativa anterior, que poderia ser mais problemática sob o ponto de vista da democracia.

51 A tentativa de pensar a participação pública na governança da tecnociência associa-se à chamada “virada política nos estudos sociais da ciência e tecnologia” (policy turn in STS), isto é, um movimento de aproximação desta disciplina ao campo das políticas públicas e de

policy analysis, a partir do qual ela abandona a confortável posição de meramente descrever,

criticar e relativizar, a posteriori, o processo de construção do conhecimento científico dentro dos laboratórios (Jasanoff 1999). Alguns, entretanto, argumentam que o problema da legitimidade das tomadas de decisão tecnocientíficas, que surgiu com o reconhecimento do componente social da ciência, foi falsamente resolvido com a defesa da extensão da participação popular nestas tomadas de decisão. Neste sentido, seria necessário um movimento de retração, ou a inauguração de uma “Terceira Onda” nos estudos sociais da ciência e tecnologia, caracterizada pela tentativa de construir uma “teoria normativa da expertise” partindo do princípio de que existe, de fato, uma racionalidade especial para a ciência e a tecnologia (Collins e Evans 2002).

Segundo Collins e Evans, os intentos de colocar um limite à extensão da participação partem do princípio de que, ainda que se reconheça que “a expertise é essencialmente imprecisa (...), e mais amplamente distribuída na sociedade do que antes se pensava” (Collins e Evans 2003, 436), ela ainda possui grande valor nas tomadas de decisão. Uma das primeiras iniciativas propostas pelos autores para a concretização da empreitada de “martelar um prego na parede de gelo do relativismo com delicadeza suficiente para não destruir o edifício como um todo” (Collins e Evans 2002, 240) seria a de substituir o conceito de “expertise leiga” pelo de “expertise baseada na experiência”. Assim, evitar-se-ia a utilização de uma expressão “incongruente”, ao mesmo tempo em que se reconheceria que o conjunto de pessoas capazes de “contribuir para a ciência de um campo” não se restringe àqueles cuja expertise é reconhecida por “certificação”, isto é, um diploma ou grau acadêmico (Collins e Evans 2002, 238).

52 Seguindo linha semelhante, Evans e Plows (2007) afirmam que o atributo de expert deve incluir, além dos cientistas, “ativistas ou outros com experiência especializada relevante”, em oposição aos “cidadãos leigos” ou, simplesmente, os “não experts”. Para eles, entretanto, é preciso deixar claro que experts “não certificados” não podem, devido simplesmente à informalidade de sua expertise, alegar que estão falando “em nome dos cidadãos em geral” (Evans e Plows 2007, 829). Da mesma forma como é aceito hoje que os cientistas não representam os fatos, ou a verdade, os experts de todo tipo devem ser considerados como “representantes de comunidades epistêmicas particulares, tais como cientistas, trabalhadores do campo, ativistas ambientais, agrobusiness etc.” Neste sentido, a mera ampliação da concepção de expertise não representa por si só uma solução para o problema da democratização da ciência ou para a lacuna entre expertise e democracia, uma vez que os leigos continuaram sendo excluídos do processo. Como colocam os autores:

Widening participation by democratizing science usually means more than giving expert groups a voice in the public domain. In most cases, ‘doing democracy’ means considering how this clash of more or less expert interest groups relates to the concerns of the broader non-expert or lay citizens who are excluded by the invocation of expertise (Evans e Plows 2007, 829).

É neste sentido que, muito mais do que distribuir generosamente o título de expert, ou dizer que experts não certificados são capazes, da mesma forma que doutores, de “contribuir para a ciência do campo em análise” (Collins e Evans 2002, 254), a democratização da expertise deve envolver uma abertura para novos enquadramentos. Não se trata, portanto, de permitir que “pessoas com expertise autêntica, mas não reconhecida [formalmente]”, tenham acesso a “deliberações especializadas” sobre questões, como por exemplo, os OGMs. Trata- se, ao invés disso, de acolher novas questões, ignoradas nos discursos tradicionais, ou formas alternativas de olhar para os mesmos problemas (Wynne 2003). Nas palavras de Jasanoff:

Public engagement is needed in order to test and contest the framing of the issues that experts are asked to resolve. Without such critical supervision, experts have often found themselves offering irrelevant advice on wrong or misguided questions. [Moreover], as we have seen,

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expertise is constituted within institutions, and powerful institutions can perpetuate unjust and unfounded ways of looking at the world unless they are continually put before the gaze of laypersons who will declare when the emperor has no clothes (2003, 397-398).

Essa ideia aparece também entre teóricos da democracia deliberativa e entre feministas. Para estes, a “ênfase liberal na autoridade de determinados tipos de razão”, e principalmente a “razão científica”, negligencia “pontos de vista de grupos à margem da cultura dominante” e “restringe a agenda da discussão pública” (Fischer 2010, 79).

A abertura à inclusão de novas perspectivas, por sua vez, está relacionada ao conceito de “epistemologia cívica”, que representa o reconhecimento de que cada sociedade possui formas específicas de testar, julgar e utilizar o conhecimento. Sob esta perspectiva, “a legitimidade da expertise” estaria inevitavelmente vinculada à forma como diferentes “culturas políticas” julgam determinado conhecimento como confiável (Jasanoff 2007).

Ao utilizar o conceito de “epistemologia cívica”, Jasanoff (2007) se vale do Estado- nação como principal unidade de análise.18 A motivação desta escolha baseia-se menos na

crença de que o Estado é e continuará a ser o principal lócus da política do que no interesse em pensar nas políticas tecnocientíficas como partes de projetos contemporâneos de “construção” ou “reimaginação” da nação “em um momento crítico da história mundial” (Jasanoff 2007, 7). Apesar da riqueza das comparações transnacionais, outro recorte interessante consiste em comparar como, em um mesmo país, diferentes questões relativas à tecnociência são decididas. Nosso objetivo nos próximos capítulos caminha na direção desta proposta. Mais especificamente, nos voltaremos para a regulação das novas biotecnologias no Brasil e em outros países, buscando compreender como foram definidas, em cada caso, as fronteiras entre política e ciência, e que tipo de expertise foi considerada relevante nas tomadas de decisões. Contudo, antes de começar essa empreitada, dedicaremos algumas

18 O “termo” principal deve-se ao fato de que Jasanoff compara, em algumas ocasiões, os casos da

54 páginas a uma descrição pontual da história do desenvolvimento da ciência e da tecnologia no Brasil, com foco no período que se estende da Primeira República (1889) até os dias atuais. Nesta trajetória, destacaremos as relações entre a comunidade científica e o Estado, ou entre ciência e política, na expectativa de que este debate auxilie na compreensão dos capítulos IV e V, voltados para as Leis Brasileiras de Biossegurança.