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II. Uma introdução à biotecnologia moderna e a seus principais desafios éticos e

II.1. O que é biotecnologia

Segundo Moser (2004, 7), poucas palavras são tão representativas de nossa época quanto “biotecnologia”. Apesar da inegável importância da biotecnologia na chamada “sociedade do conhecimento”, e das constantes referências a ela, o significado dessa palavra, uma das “mais abusadas da biologia moderna”, continua impreciso (Brown, Campbell e Priest 1987, 1). A multiplicidade de definições existentes, assim como o seu caráter genérico, coloca em risco a própria utilidade do termo, como afirma a Union of Concerned Scientists (2003). Embora não seja possível eliminar todas as ambiguidades de seu uso, a busca de maior exatidão conceitual pode, ao menos, remediar grande parte das confusões.

O termo biotecnologia foi cunhado em 1919 pelo engenheiro húngaro Karl Ereky, para referir-se a “métodos e técnicas que permitem a produção de substâncias a partir de matérias-primas com o auxílio de organismos vivos” (Sasson 2005, 1). Décadas depois, na

69 abertura da Convenção sobre a Diversidade Biológica (CDB) da Organização das Nações Unidas (ONU), em 1992, representantes de 168 países concordaram em adotar uma definição padrão, que em muito se assemelha à de Ereky, a saber:

A biotecnologia engloba qualquer aplicação tecnológica que se utiliza de sistemas biológicos, organismos vivos ou seus derivados para fabricar ou modificar produtos ou processos para uso específico (CDB 1992).

No amplo sentido sugerido por sua etimologia, a biotecnologia inclui processos muito antigos, de seis mil anos atrás, como o uso de micro-organismos e enzimas na fermentação para a fabricação de pães, laticínios e bebidas. Sob o ponto de vista macrobiológico, a seleção e cruzamento de plantas e animais para a produção de descendentes com combinações de características novas e mais desejáveis, prática que remonta ao início da civilização, também pode ser colocada sob o guarda-chuva da biotecnologia (Olson 1986, 1). É preciso, no entanto, reconhecer que importantes descobertas científicas separam as chamadas biotecnologias tradicionais (convencionais ou antigas) das modernas (novas ou avançadas) (Brown, Campbell e Priest 1987, 1). Atualmente, a palavra refere-se predominantemente a tecnologias capazes de identificar, examinar, isolar e, principalmente, manipular o material genético das células.23 A “pré-história” de tais tecnologias data dos anos 1870, quando da

descoberta da molécula celular ácido desoxirribonucléico (DNA). Importantes avanços também aconteceram nos anos 1950, com a elucidação da estrutura e função do DNA por James Watson e Francis Crick. Entretanto, a “era de ouro” da biotecnologia moderna começou somente na década de 1970 (Rudolph e McIntire 1996, 1), com o desenvolvimento da técnica do DNA recombinante (DNAr).

23 Segundo Matthews, “material genético é a informação, [situada] no interior dos organismos, que é

passada de geração para geração. Essa informação, que é armazenada e depois transmitida, determina todas as atividades desenvolvidas no interior de um organismo vivo. A informação genética é

requerida para o desenvolvimento, diferenciação celular, manutenção da função celular e reprodução, não apenas de cada célula do organismo, mas para o próprio organismo. Uma vez que mudanças nesse material genético serão passadas para gerações subsequentes, uma alteração que afeta a função também será passada de uma geração para a próxima” (1996, 3).

70 A técnica do DNAr possibilitou a obtenção de um grau de controle sobre a constituição genética dos seres vivos jamais antes almejado, uma vez que permitiu a manipulação do material genético na menor escala possível – genes individuais. Um gene consiste em um segmento de DNA que contém as informações necessárias para a produção de uma determinada molécula de proteína. As proteínas – que se diferenciam por formatos, sequência e tamanhos – são, por sua vez, responsáveis por desempenhar “as inúmeras funções características dos organismos vivos” (Matthews 1996, 6), entre as quais o seu desenvolvimento, crescimento e defesa imunológica. Algumas destas proteínas, no entanto, são escassas no planeta, de forma geral, ou em determinados organismos. Um exemplo que se aplica ao último caso é o da insulina. A técnica do DNAr é então utilizada para suprir a demanda por insulina para diabéticos de uma forma economicamente viável e mais segura do que a utilização da insulina bovina ou suína. Além das proteínas escassas, a recombinação do DNA é capaz também de produzir proteínas mais “eficientes” ou melhores. É nesse sentido que Olson afirma que os produtos moleculares da biotecnologia dividem-se em três categorias interpostas: “novas substâncias que nunca antes estiveram disponíveis [i], substâncias raras que não estiveram amplamente disponíveis [ii] e substâncias existentes que podem ser produzidas a custos menores através da biotecnologia [iii]” (1986, 14).

A técnica básica de recombinação de DNA pode ser resumida da seguinte forma: uma vez identificado o fragmento de DNA ou gene que produz a proteína de interesse, ele é isolado do organismo vivo, através do uso de enzimas, ou sintetizado quimicamente (produzido em laboratório). Em seguida, esse fragmento de DNA, contendo um ou mais genes, é acoplado ao DNA de moléculas capazes de se multiplicar de forma autônoma, tais como vírus ou plasmídeos de bactérias, que passam a receber o nome de vetores. O vetor, agora produto da engenharia genética, posto que contém “novas combinações de DNA do genoma doador (que pode ser de qualquer organismo) com o DNA vetor de uma fonte

71 completamente diferente” (Griffiths; Gelbart; Miller 1999), é então inserido numa célula hospedeira, que irá funcionar como uma espécie de “fábrica” do gene de interesse, reproduzindo-o diversas vezes (Olson 1986, 16-17). No caso de bactérias, por exemplo, elas poderão dividir-se em uma colônia com “milhões de células, todas carregando o mesmo vetor recombinante” (Griffiths et al. 1999). Além deste método “indireto”, intermediado por vírus e bactérias, vêm se tornando mais comuns hoje os chamados “métodos de transformação direta”. Neles, as membranas celulares do organismo receptor são alteradas através de processos químicos e físicos, a fim de facilitar a introdução do gene de interesse no genoma do receptor (Carrer, Barbosa e Ramiro 2010, 157).

A utilização da técnica do DNAr está na base da produção dos OGMs e dos transgênicos – os quais não são, necessariamente, equivalentes.24 Técnicas como a mutação

química ou a mutação radioativa de cultivares são hoje consideradas “tradicionais”, e fora do escopo da biotecnologia moderna. Isso porque, apesar de modificarem o material genético do organismo em questão, não introduzem nele informação genética de outro organismo, de uma forma que “pode vir a ser considerada não natural” (Kinderlerer 2008, 14).

Neste ponto, alguns esclarecimentos adicionais se fazem necessários. Cabe ressaltar que a biotecnologia moderna pode ser classificada a partir de dois critérios: com base na matéria-prima utilizada e no setor onde é aplicada. No primeiro caso, existem dois tipos de biotecnologia: humana e não humana. A biotecnologia humana utiliza células, tecidos e/ou moléculas, incluindo material genético, de humanos. A biotecnologia não humana utiliza células, tecidos e/ou moléculas, incluindo material genético, de micro-organismos, vegetais ou animais. No que se refere ao setor de aplicação, podemos falar em três subtipos de

24 É importante ressaltar que transgênicos e OGMs não são necessariamente a mesma coisa, uma vez

que somente os primeiros envolvem a mistura de DNA entre espécies diferentes. Nesse sentido, “enquanto todo transgênico é um organismo geneticamente modificado (OGM), nem todo organismo geneticamente modificado é um organismo transgênico” (Oda 2003).

72 biotecnologia: verde (utilizada nos setores agrícola e pecuário), vermelha (utilizada no setor biomédico), e branca ou cinza (utilizada no setor industrial não biomédico). Fala-se também em biotecnologia ambiental, classificada às vezes como verde, às vezes como branca ou cinza. Por razões éticas e econômicas, a biotecnologia humana é sempre do tipo “vermelha” – isto é, é utilizada no setor biomédico, para a produção de insumos e terapias de uso exclusivo em seres humanos.25 Já a não humana pode ser utilizada para quaisquer das finalidades

descritas. Também é importante lembrar que, apesar de a manipulação genética (engenharia genética) ocupar um lugar central no campo da biotecnologia moderna, ela não é condição necessária para que possamos falar em novas biotecnologias. Como ressalta Jasanoff (2007, 36), técnicas da biologia molecular foram aplicadas nos anos 1970 para criar embriões fora do útero, o que abriu caminho, por exemplo, para a fertilização in vitro, as pesquisas com células-tronco, a clonagem e o diagnóstico pré-implantação. Tais procedimentos requerem um conhecimento sofisticado do material genético humano, mas não necessariamente a manipulação genética, e muito menos a transgenia.26 Eles pertencem, de toda forma, ao

campo da biotecnologia humana. Também no caso da biotecnologia não humana (verde, vermelha ou branca, animal, vegetal ou de micro-organismos), a modificação genética não é necessária, dado que a capacidade do cientista de atuar no nível molecular e celular já nos permite falar em biotecnologia moderna. A lei brasileira, entretanto, regula somente as biotecnologias não humanas que envolvem modificação genética, ao mesmo tempo em que proíbe a modificação genética de células germinais humanas e embriões humanos. O quadro I

25 Não há, em princípio, nenhum empecilho técnico ao emprego de células humanas na fabricação de

produtos agrícolas ou de uso na indústria não biomédica. Entretanto, existem barreiras éticas e econômicas a esta prática, que podem vir a ser rompidas no futuro.

26 É importante ressaltar também a existência da biotecnologia branca ou cinza, que é utilizada para

73 pretende esclarecer esses pontos, ao sistematizar e exemplificar os diversos tipos e subtipos de novas biotecnologias.27

Quadro I

Tipos de biotecnologia de acordo com a matéria-prima utilizada e o campo de aplicação Campo de aplicação Verde Branca/ Cinza ou Industrial Não biomédica Vermelha ou Biomédica Agrícola Pecuária Sim3 Sim4 T ip o de m at ér ia -p ri m a N ão h um an a

Microorganismos Sim¹ Sim²

Vegetais Sim5 Sim6 Sim7 Sim8

Animais ? Sim9 ? Sim10

H

um

an

a

? ? ? Sim11

Fonte: elaboração própria

Legenda e Exemplos

? = Desconhecemos exemplos deste tipo de biotecnologia. Ainda assim, não há nada que, em princípio, impeça sua produção, sob o ponto de vista técnico. No caso da biotecnologia humana, os empecilhos são de natureza ética e econômica.

1. Modificação genética da bactéria Pseudomonas syringae a fim de suprimir a proteína responsável pela produção da camada de gelo na superfície dos vegetais a temperaturas

27 Importante ressaltar que esta classificação da biotecnologia de acordo com a “matéria-prima” e o

“campo de aplicação” está sendo proposta por nós, como forma de facilitar o entendimento. Ela não ocorre desta forma, entretanto, na literatura especializada.

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abaixo de zero. A lei brasileira poderia, em princípio regular esta tecnologia, posto que se vale da modificação genética.

2. Modificação genética de um vírus (Meleagrid herpesvirus 1 ) para a produção de vacinas para aves que previnem a chamada doença de Marek. A lei brasileira poderia, em princípio regular esta tecnologia, posto que se vale da modificação genética. De fato, a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança já emitiu parecer aprovando esta tecnologia no Brasil. 3. Modificação genética da bactéria Cupriavidus metallidurans (CH34) para que possa fixar metais pesados em sua membrana e, desta forma, combater a poluição de efluentes industriais. Outro exemplo é a produção de levedura geneticamente modificada (Saccharomyces cerevisiae) para a produção de farneseno, substância utilizada como combustível. A lei brasileira poderia, em princípio regular ambas as tecnologias, posto que se valem da modificação genética.

4. Modificação genética de micro-organismos para a produção de insulina sintética. A Lei Brasileira poderia, em princípio regular esta tecnologia, posto que se vale da modificação genética. A comercialização desta insulina é permitida no Brasil.

5. Modificação genética da soja para torná-la resistente a herbicidas à base de glifosato. A lei brasileira poderia, em princípio regular esta tecnologia, posto que se vale da modificação genética. De fato, a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança já emitiu parecer aprovando esta tecnologia no Brasil.

6. Modificação genética de componentes da ração de gado para a introdução da enzima fitase, que permite um melhor aproveitamento dos nutrientes. A lei brasileira poderia, em princípio regular esta tecnologia, posto que se vale da modificação genética.

7. Modificação genética de plantas para a produção de novas variedades mais resistentes à seca. Outro exemplo é a modificação genética de plantas para a produção de combustível. A lei brasileira poderia, em princípio regular ambas as tecnologia, posto que se valem da modificação genética.

8. Utilização de células vegetais que funcionam como fábricas de proteínas. Outro exemplo seria a produção da substância alginato, por algas marinhas, utilizada na fabricação de cápsulas para envolver células para fazer terapia celular sem necessidade de imunossupressão. A lei brasileira não se aplica a estas tecnologias, posto que não se valem de modificação genética.

9. Modificação genética de vacas leiteiras para que produzam leite com maiores níveis da proteína caseína. O uso de tal leite pode aumentar a eficiência da produção de queijo. A lei brasileira poderia, em princípio regular esta tecnologia, posto que se vale da modificação genética.

10. Utilização de células de ovário de hamsters (Chinese Hamster Ovary Cells) para a produção de proteínas de uso terapêutico em seres humanos. A lei brasileira poderia, em princípio regular esta tecnologia, posto que se vale da modificação genética.

11. Terapia gênica e pesquisas com células-tronco embrionárias. A Lei Brasileira regula a última destas tecnologias e proíbe a manipulação genética de células germinais humanas e embriões humanos. A Lei poderia, em princípio, regular a terapia gênica, posto que esta envolve modificação genética.

Nas seções seguintes analisaremos, em primeiro lugar, a biotecnologia agrícola – isto é, a manipulação genética de plantas e micro-organismos para aplicação no campo da agricultura. Neste processo, mencionaremos, eventualmente, exemplos da biotecnologia

75 verde do subtipo pecuário e também da modificação genética de plantas para fins industriais. O foco, contudo, será na melhoria, através da engenharia genética, de alimentos pertencentes ao reino vegetal. A razão deste enfoque se deve ao fato de as discussões a respeito da Nova Lei Brasileira de Biossegurança terem se pautado, em grande medida, pelos riscos e benefícios da soja transgênica – um produto da biotecnologia agrícola. Além disso, cabe ressaltar que, até os dias de hoje, as principais polêmicas políticas em torno da utilização da tecnologia do DNAr deram-se em torno das plantas ou alimentos geneticamente modificados.