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Nosso legislador constituinte, desde de 1934, seguindo a tendência do direito constitucional moderno, ampliou suas dimensões tradicionais e incluiu, expressamente, no âmbito do texto normativo fundamental, normas referentes à ordem econômica e financeira.391

decidir sobre a necessidade de regulação normativa. Já as outras impõem limites a essa discricionariedade: são representadas pelos princípios jurídicos constitucionais. (CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição dirigente e vinculação do legislador: contributo para a compreensão das normas constitucionais programáticas, p. 246-287, 479)

390 Nesse sentido, o professor Manoel Pedro Pimentel defende o direito penal econômico como um

ramo qualificado do direito econômico, asseverando: “Se pretendemos falar sobre o Direito penal econômico, certamente devemos, em primeiro lugar, abordar a questão relativa à existência de um Direito econômico, do qual a parte penal seria um ramo qualificado”. (PIMENTEL, Manoel Pedro.

Direito penal econômico, p. 7). No mesmo sentido, TIEDEMANN, Klaus. Derecho penal económico: introducción y parte general, p. 77.

391 No texto da Constituição Federal de 1988, a matéria está prevista, especificamente, em seu “Título

VII – A Ordem Econômica e Financeira”, que se subdivide em quatro capítulos: (i) “Princípios Gerais da Atividade Econômica”; (ii) “Política Urbana”; (iii) “Política Agrícola e Fundiária da Reforma Agrária”; e (iv) “Sistema Financeiro Nacional”. Todavia, a Constituição também trata da ordem econômica em diversos outros dispositivos.

O Brasil endossou, portanto, a tese de uma Constituição Política e Econômica392 que consiste no

conjunto de preceitos e instituições jurídicas que, garantindo os elementos definidores de um determinado sistema econômico, instituem uma determinada forma de organização e funcionamento da economia e constituem, por isso mesmo, uma determinada ordem econômica.393

Nesse diapasão, nosso texto constitucional, mais especificamente seu art. 170, estabelece como fundamentos da ordem econômica, a “valorização do trabalho humano” e a “livre iniciativa”.394

A valorização do trabalho humano consiste em conferir ao trabalho e a seus agentes (trabalhadores) tratamento peculiar, com o objetivo de promover a conciliação entre o latente conflito daqueles que detêm o capital (ou meios de produção) e aqueles que são remunerados pela sua força transformadora (intelectual ou física).395

Conforme assevera o professor José Afonso da Silva, a noção de valorização do trabalho humano “tem o sentido de orientar a intervenção do Estado, na economia, a fim de fazer valer os valores sociais do trabalho”.

392 No âmbito deste estudo, não vamos refletir sobre as diversas concepções do conceito de

Constituição econômica, já que sequer a doutrina especializada firmou posição pacífica sobre o tema. Nesse sentido, cf. SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo, p. 790. Criticando algumas teorias econômicas da Constituição, cf. CANOTILHO, José Joaquim Gomes.

Constituição dirigente e vinculação do legislador: contributo para a compreensão das normas

constitucionais programáticas, p. 50-59.

393 GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988, p. 77.

394 Esses elementos são, ainda, segundo o art. 1º, inciso IV, da Constituição, fundamentos da própria

República Federativa do Brasil. A doutrina diverge sobre a nomenclatura dos quatro enunciados constantes do artigo 170 (valorização do trabalho humano, livre iniciativa, existência digna e ditames da justiça social), há quem sustente sua característica de princípio, há quem os subdivida em fundamentos (dois primeiros) e como objetivos (os dois últimos). (TAVARES, André Ramos.

Direito constitucional econômico, p. 127-128). Neste estudo, apesar de utilizarmos a segunda

nomenclatura, não excluímos o caráter normativo principiológico de todos eles.

395 Essa proteção é instrumentalizada mediante o exercício de uma função de preservação das

relações de trabalho, pelo Estado, de modo que elas se deem de forma justa e equilibrada, sem abuso de quaisquer das partes. (GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de

Já a livre iniciativa, segundo o mesmo autor, “consagra uma economia de mercado, de natureza capitalista, pois a iniciativa privada é um princípio básico da ordem capitalista”.396

O contexto da livre iniciativa reconhecida constitucionalmente abrange, portanto, todas as formas de organizações econômicas individuais ou coletivas, valorizando a própria noção de propriedade privada, liberdade contratual e comercial e de indústria.397

A liberdade de iniciativa como valor constitucional é reforçada, ainda, pelo dispositivo do parágrafo único do art. 170 da Constituição.

O texto constitucional reafirma a faculdade dos indivíduos de criar e explorar qualquer atividade econômica independentemente de autorização do poder público, a não ser que haja lei dispondo de forma diversa.

Esse dispositivo, portanto, vincula a intervenção do Estado, limitadora da atividade econômica privada, ao princípio da legalidade.

396 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo, p. 788. O autor faz essa

afirmação, mas ressalva a primazia da valorização do trabalho humano, lembrando que a economia de mercado deve ser exercida no interesse da justiça social. Favoráveis à tese de que a Constituição adotou o modelo capitalista, VIDIGAL, Geraldo. A ordem econômica. In: ______. A

Constituição brasileira de 1988: interpretações, p. 373 et seq.; REALE, Miguel.

Inconstitucionalidade de congelamentos. Folha de S. Paulo, p. A3; REALE, Miguel. Constituição e economia. O Estado de S. Paulo, p. 3, 24 jan. 89; REALE, Miguel. O Estado no Brasil. Folha de S.

Paulo, p. A.3, 19 set. 1989; SOUZA, Washington Peluso Albino de. O direito privado na ordem constitucional. Conferência na Associação dos Advogados de São Paulo, 15 maio 1989; FERRAZ

JÚNIOR, Tércio Sampaio. A economia e o controle do Estado. O Estado de S. Paulo, p. 50, 4 jun. 1989. Em sentido contrário, FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. O Estado onipresente. Folha

de S. Paulo, p. A-3, 10 dez. 1987 (apud GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988, p. 179-192). Raul Machado Horta ressalta a utilização de princípios e soluções

contraditórias no corpo da Constituição, ora no sentido do capitalismo liberal, ora do intervencionismo (HORTA, Raul Machado. Direito constitucional, p. 230). Eros Roberto Grau expõe a opção por um sistema capitalista, porém orientado por um modelo aberto, que pode ser descrito como um modelo de bem-estar, que deve ser interpretado de forma dinâmica adequando- se às mudanças da realidade social. (Cf. GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988, p.179-188, 348)

397 Nesse contexto, a livre iniciativa “significa que é através da atividade socialmente útil a que se

dedicam livremente os indivíduos, segundo suas inclinações, que se procurará a realização da justiça social e, portanto, do bem-estar social”. (FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves.

Comentários à Constituição brasileira de 1988, p. 3 apud TAVARES, André Ramos. Direito constitucional econômico, p. 239). A liberdade de iniciativa abrange, sinteticamente, as seguintes

características: (i) reconhecimento da propriedade privada dos bens de produção e consumo; (ii) reconhecimento de que a atividade privada (ou empresarial) será exercida com a finalidade de lucro; (iii) reconhecimento da concorrência como melhor estrutura de mercado para eficácia do modelo econômico; e (iv) crença de que a intervenção estatal no âmbito econômico deve ser excepcional e pontual. (TAVARES, André Ramos. Direito constitucional econômico, p. 241)

Sobre o tema, pondera o professor André Ramos Tavares:

O postulado da livre-iniciativa, portanto, tem uma conotação normativa positivada, significando a liberdade garantida a qualquer cidadão, e uma outra conotação que assume viés negativo, impondo a não-intervenção estatal, que só pode se configurar mediante atividade legislativa que, acrescente-se, há de respeitar os demais postulados constitucionais e não poderá anular ou inutilizar o conteúdo mínimo da livre-iniciativa [...] Toda a legislação infraconstitucional, portanto, no sistema brasileiro vigente, deve observância ao livre exercício da atividade econômica, sem o que não se respeitará a liberdade de iniciativa econômica.398

O texto constitucional traz, ainda, como objetivos da ordem econômica, “assegurar a todos uma existência digna, conforme os ditames da justiça social”.399

O conteúdo desses preceitos, normas programáticas, consiste em fornecer aos indivíduos igualdade de condições para o aproveitamento das oportunidades oferecidas pelo sistema econômico adotado.400

Somente poderá ter uma vida digna no capitalismo de economia de mercado aquele cidadão ao qual foi dada a possibilidade de preparação para desenvolver suas habilidades e talentos individuais.

Nesse diapasão, o papel primordial do Estado, para proporcionar aos seus cidadãos uma vida digna, consiste na efetiva implementação de políticas públicas de promoção da formação humana, destarte, no âmbito da sua atuação, e não intervenção.

Quanto à exigência de que a existência digna deve ser pautada pelos ditames de uma justiça social, há um consenso mínimo sobre o seu significado de reconhecer a necessidade da melhor repartição das riquezas, com a consequente diminuição das desigualdades sociais.401

398 TAVARES, André Ramos. Direito constitucional econômico, p. 240-241. No mesmo diapasão,

valorizando os fundamentos da livre iniciativa, cf. FONSECA, João Bosco Leopoldino da. Direito

econômico, p. 51.

399 A dignidade de pessoa humana, além de, como direito individual, juntamente com o direito à vida e

à liberdade, integrar o núcleo central dos direitos humanos, também é expressa como fundamento da República Federativa do Brasil, nos termos do art. 1º, inciso III, da Constituição.

400 Eros Roberto Grau sustenta que uma ordem econômica capaz de promover a dignidade humana

deve viabilizar “o acesso de todos não apenas às chamadas liberdades formais, mas, sobretudo, às liberdades reais”. (GRAU, Eros Roberto A ordem econômica na Constituição de 1988, p. 197- 198)

401 GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988, p. 224-225, e TAVARES,

Também esse aspecto será empiricamente verificado no âmbito da atuação, e não da intervenção estatal. Somente a prestação de serviços públicos de qualidade pode, efetivamente, ajudar a atingir, de forma sustentável, a melhor distribuição de renda.

Dentre os princípios gerais da atividade econômica constitucionalmente previstos, destacam-se: (i) a soberania nacional, que deve ser tanto política quanto econômica e que visa levar o Estado a uma posição de independência quanto aos demais, é um princípio fundamental do direito internacional; (ii) a defesa da propriedade privada, que é o fundamento para o princípio da liberdade de iniciativa; (iii) a função social da propriedade, que consiste no limite à utilização da propriedade privada e traça parâmetros para adequada política urbana e justa política agrária; (iv) a livre concorrência, que é pressuposto básico para o funcionamento do modelo econômico adotado;402 (v) a defesa do consumidor, que reconhece a importância de proteção ao consumidor como um dos elos essenciais à cadeia própria da economia de mercado; (vi) a defesa do meio ambiente, que limita o uso da propriedade considerando os interesses difusos e coletivos referentes à preservação de um planeta equilibrado; (vii) a redução de desigualdades regionais e sociais, norma objetivo que visa erradicar a pobreza, mediante melhor distribuição de renda entre as diversas classes e regiões, promovendo o bem-estar comum em um contexto de desenvolvimento no âmbito nacional; (viii) a busca do pleno emprego, também norma programática, que visa ao desenvolvimento econômico com a criação e a extensão de oportunidades de trabalho, melhorando, assim, a atividade produtiva e gerando riquezas; e (ix) o tratamento diferenciado a empresas nacionais de pequeno porte, cujo objetivo é fomentar a indústria nacional, bem como desburocratizar e democratizar o exercício da atividade econômica.403

A exposição sintética dos princípios orientadores da ordem econômica confirma que a Constituição valoriza, como regra, a autonomia da iniciativa privada para exploração das atividades econômicas.

402 Ao reconhecer a livre concorrência como princípio constitucional impositivo (art. 170, inciso IV),

nosso texto constitucional confirma a opção por uma economia de mercado, bem como sinaliza qual deve ser o objeto pontual da intervenção estatal no campo econômico. A livre concorrência consiste em princípio de relevância para todo o sistema e modelo econômicos adotados, já que não se pode falar em capitalismo ou em economia de mercado eficientes, sem a garantia de uma competição sadia entre os diversos agentes econômicos.

Ocorre que, segundo esses mesmos princípios, há o reconhecimento de que, para que esse modelo funcione e atinja seus objetivos, em algumas hipóteses, deve o Estado intervir.404

Em razão disso, o texto constitucional, mais especificamente nos seus arts. 173 e 174, excluindo as doutrinas liberais absolutas, permitiu a intervenção do Estado na economia tanto de forma direta quanto indireta.405

A intervenção direta se dá com a exploração da atividade econômica pelo Estado, que se torna um dos agentes de mercado a concorrer com os demais, ressalvada as hipóteses de monopólio da União previstas no art. 177.

A intervenção direta será permitida somente quando necessária ao interesse da segurança nacional ou ao relevante interesse coletivo, conforme estabelecido em lei.406

Na intervenção indireta, o Estado atua como entidade normativa e reguladora da atividade econômica, para reprimir o abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros.407

A intervenção indireta, uma vez que visa concretizar os ideais da ordem econômica, está vinculada materialmente à política econômica adotada pelo contexto constitucional.

Essa intervenção, em última análise, terá a finalidade de manter um ambiente suficientemente estruturado para que o modelo capitalista de economia de

404 Sobre o contexto econômico que autoriza a intervenção do Estado, cf. MANKIW, Gregory.

Introdução à economia, p. 154.

405 Na intervenção direta, está o Estado a funcionar como Estado-sujeito-de-direito. Ocorre, em geral,

por meio de instituições jurídicas de natureza privada (empresa pública e sociedade de economia mista). Já nas hipóteses de intervenção indireta, atua o Estado como Estado-ordem-jurídica, tendo em vista que vai editar preceitos normativos reguladores da atividade econômica, que vinculará todos os agentes econômicos, inclusive o Estado-sujeito-de-direito nas áreas em que ele atuar.

406 São conceitos amplos e indeterminados, desprovidos de taxatividade normativa, permitindo

discricionariedade do poder público em sua interpretação. Têm um sentido mínimo de que deve o Estado limitar sua intervenção direta àquelas atividades reconhecidamente inconvenientes de exploração pela iniciativa privada, sob pena de risco à própria razão de ser do Estado (segurança nacional) ou à interesses estratégicos, que se sobrepõem aos individuais “em nome da própria sobrevivência da liberdade individual e da sociedade” (TAVARES, André Ramos. Direito

constitucional econômico, p. 284). O interesse público, portanto, não existe por si só, de forma

autônoma e abstrata, mas apenas como o conjunto dos interesses individuais, indispensável à manutenção destes.

407 Nessa linha o Estado pode exercer as funções de fiscalização, incentivo e planejamento (este

vincula apenas o poder público, sendo meramente indicativo para a iniciativa privada), sempre com o objetivo de concretizar os princípios constitucionais da ordem econômica.

mercado funcione, de modo a promover concretamente um ambiente econômico livre e justo, promotor dos valores da dignidade humana.408

Em síntese, a política econômica da nossa Constituição foi a de limitar a intervenção do Estado às hipóteses em que necessária ao funcionamento do modelo econômico adotado, que prioriza a liberdade de iniciativa sobre o dirigismo estatal.409

Essa conclusão será de suma importância, pois, ao se reconhecer o caráter de subsidiariedade da intervenção cível no âmbito econômico, com muito mais razão essa intervenção deverá ser subsidiária quando se pretender recorrer ao direito penal.