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1.3 O BEM JURÍDICO-PENAL: CONCEITO E TITULARIDADE

1.3.2 Bem jurídico-penal: teorias quanto à titularidade

Quanto à titularidade do bem jurídico, foram desenvolvidas três principais teorias: (i) teoria monista pessoal; (ii) teoria monista não pessoal e; (iii) teoria dualista.141 Essas concepções têm origem histórica em Ihering,142 que elaborou uma

139 O autor também alerta que, diante de um conceito legitimante de bem jurídico, sequer a noção de

ultima ratio impediria o prejuízo da característica de fragmentariedade do direito penal, pois a

extensão da tutela de ultima ratio dependeria de uma decisão política criminalizante, sempre determinada por conjunturas do poder. (Cf. ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Derecho penal: parte general, p. 54)

140 Luis Greco defende que “definições de bem jurídico que o transformem em uma entidade ideal, em

um valor, em algo espiritual, desmaterializado, são indesejáveis, porque elas aumentam as possibilidades de que se postulem bens jurídicos à la volonté, para legitimar qualquer norma que se deseje” continua no sentido de que é “mais desejável trabalhar com um conceito de bem jurídico como realidade”, ressaltando, ainda, que “realidade não é o mesmo que realidade empírica, porque o mundo real não se esgota naquilo que se pode verificar por meio da investigação das ciências naturais: a honra, por exemplo, é uma realidade, apesar de não lhe ser essencial o aspecto empírico”. (GRECO, Luís. Princípio da ofensividade e crimes de perigo abstrato: uma introdução ao debate sobre o bem jurídico e as estruturas do delito. Revista

IBCRIM, p. 106)

141 Cabe ressaltar a crítica de Juarez Tavares sobre a classificação de bens jurídicos quanto ao seu

titular, que, segundo o autor seria “além de arbitrária, implica, desde logo, três conseqüências: A primeira, de impor a adoção de um sistema dualista, isto é, de que os bens possam ter origem tanto na órbita individual quanto coletiva ou estatal, conforme sua funcionalidade. A segunda, de incrementar um estado de proteção simbólica desses bens, principalmente quando se trate dos chamados bens coletivos. A terceira, de tornar obscuras suas propriedades, o que reforça sua confusão com as funções, na medida em que estas passem a ser interpretadas como interesses do Estado ou da comunidade em certa organização ou status”. (TAVARES, Juarez. Teoria do

teoria tripartida dos sujeitos passivos, dividindo-os entre indivíduos, Estado e Sociedade.

O indivíduo corresponde à pessoa humana, o Estado à entidade jurídica e sociopolítica organizada, tendo como qualidades soberania, povo e território, e a sociedade à identidade humana do Estado, pluralidade de indivíduos que vivem sob o mesmo governo e organização administrativa.

Para os adeptos da teoria monista pessoal, desenvolvida por Hassemer,143 a intervenção penal tem como sujeito passivo o indivíduo ou algum interesse a ele reconduzível.

Trata-se de uma concepção antropocêntrica, na qual a principal função do Estado é servir aos interesses dos cidadãos.

Hassemer144 ressalta que a intervenção penal, em hipótese alguma, pode se desvincular totalmente da esfera pessoal do ser humano, até porque o bem-estar dos cidadãos é a finalidade de uma concepção liberal e democrática do Estado.

Define o professor alemão os bens jurídicos como

intereses humanos que requieren protección penal. Esto indica, ante todo, que la protección de las instituciones sólo pueden llegar hasta el punto en que es condición de la posibilidad de protección de la persona.145

142 SOUZA, Paulo Vinicius de. Bem jurídico-penal e engenharia genética humana: contributo para a

compreensão dos bens jurídicos supra-individuais, p. 285.

143 HASSSEMER, Winfried. Lineamentos de uma teoria personal del bien jurídico. Doctrina Penal:

teoría y prática en las ciencias penales, p. 275-285.

144 Critica o autor o giro legitimante do conceito segundo algumas correntes funcionalistas, giro este

ocasionado pelo problema da criminalidade moderna (inclusive a econômica), que trata essencialmente de interesses difusos, mediante a edição de delitos de perigo abstrato. Para Hassemer, essas circunstâncias implicam a dissolução do conceito de bem jurídico, dificultando a crítica sobre tutelas penais excessivamente amplas. Estabelece o autor que uma conduta que ameace um bem jurídico é necessária, mas não suficiente, para a criminalização. O professor alemão acrescenta, dentre outros, os critérios da subsidiariedade (não haver outro meio de solução ao conflito), da danosidade social (afetar a todos e não só à vítima do fato) e da taxatividade dos tipos O professor alemão, embora reconheça a importância de uma experiência social dos valores orientada pela Constituição, não estabelece um critério concreto para individualização dos bens que seriam dignos da tutela penal; portanto, neste aspecto, não vincula suficientemente o legislador no momento da opção pela criminalização. (HASSSEMER, Winfried. Lineamentos de uma teoría personal del bien jurídico. In: ______. Doctrina Penal: teoría y prática en las ciencias penales, p. 275-285)

145 HASSEMER, Winfried. Lineamentos de una teoría personal del bien jurídico. In: ______. Doctrina

Todavia, a teoria pessoal de Hassemer não afasta a possibilidade de bens jurídicos supraindividuais (ou universais),146 apenas os limita àqueles que sejam reconduzíveis à esfera pessoal dos indivíduos, necessários a propiciar ao homem o acesso às possibilidades vitais ao seu desenvolvimento.147

Ainda sobre os bens supraindividuais, sustenta Hassemer que sua legitimação deve ser especial, mediante mandatos especiais de reserva, e sob esse prisma são hierarquicamente inferiores aos bens jurídicos individuais. Aduz o autor que cuanto más difícil sea conciliar legítimamente una amenaza penal con un interes

humano, tanto más cuidadoso se debe ser con relación a si se debe amenazar penalmente y cómo.148

Também o professor Luiz Régis Prado, não obstante exigir que a transgressão ao bem jurídico seja relacionada à esfera individual, admite a existência de bens supraindividuais e os classifica em: (i) bens jurídicos institucionais, nos quais a tutela supraindividual é intermediada por uma pessoa jurídica de direito público (administração pública); (ii) bens jurídicos coletivos, afetam um número determinável de pessoas (saúde pública); (iii) bens jurídicos difusos, caráter plural, atingem um número indeterminado de pessoas (meio ambiente).149

Já para a teoria monista não pessoal, com origem em Binding,150 o sujeito passivo dos delitos é sempre o Estado ou a coletividade como um todo indivisível.

146 Los bienes jurídicos universales tienen fundamento sólo en la medida en que se corresponden con

los intereses – conciliados – del individuo. El fundamento de esta tradición es una conceptición liberal del Estado, que no es un fin en sí mismo, sino que solamente debe fomentar el desarrollo y aseguramiento de las posibilidades vitales del hombre. (HASSEMER, Winfried. Lineamentos de

una teoría personal del bien jurídico. In: ______. Doctrina penal: teoría y prática en las ciencias penales, p. 275-285)

147 Nesse sentido, pondera o autor que un concepto personal del bien jurídico no rechaza la

possibilidad de bienes jurídicos generales o estatales, pero fucionaliza estos bienes desde la persona: solamente puede aceptarlos con la condición de que brinden la possibilidad de servir a intereses del hombre. (HASSEMER, Winfried. Lineamentos de una teoría personal del bien

jurídico. In: ______. Doctrina penal: teoría y prática en las ciencias penales, p. 275-285)

148 HASSEMER, Winfried. Lineamentos de una teoría personal del bien jurídico. In: ______. Doctrina

penal: teoría y prática en las ciencias penales, p. 275-285.

149 Todavia, sempre ressalta o autor que “tanto os bens jurídicos coletivos como os difusos têm como

ligação ou referência o indivíduo, por menor que seja (aspecto complementar), que se apresenta mais intensa, menos tênue (bens coletivos), ou menos intensa, mais tênue (bens difusos), dependendo do nível dessa ligação (relação de proximidade). Na verdade, o que fica aqui sufragado é que o indivíduo como pessoa, o cidadão, deve ser sempre o destinatário maior de toda norma jurídica, há de ser a referência última em qualquer bem jurídico”. (PRADO, Luiz Régis.

Bem jurídico-penal e Constituição, p. 97)

150 BINDING, Karl. Die normen und ihre Übertretung. Eine Untersuchung über die Rechtmässige

Handlung und die Arten des Delikts. Bd. I Normen und Strafgesetze, p. 340-341 apud SOUZA, Paulo Vinicius de. Bem jurídico-penal e engenharia genética humana: contributo para a compreensão dos bens jurídicos supra-individuais, p. 293-294.

Para essa teoria, todos os bens jurídico-penais têm a natureza metaindividual e, assim, são de titularidade coletiva.

Nessa linha, Jakobs, quanto à titularidade dos bens jurídicos, sustenta que a questão deve ser analisada sob três ângulos: (i) quem é o favorecido final da função protetora; (ii) quais bens merecem e necessitam proteção e; (iii) quem tem a capacidade de dispor do bem.

Quanto ao favorecido final da função protetora, segundo Jakobs, será sempre o Estado.151 Para estabelecer quais bens merecem e necessitam de proteção da norma, sustenta o autor que essa verificação deve partir do interesse público geral e esclarece:

Pode-se questionar de que ponto de vista se deve partir para estabelecer quais bens merecem e necessitam proteção, não importando a quem eles pertençam. Esse ponto de vista é sempre o público, geral, mesmo que se trate da proteção de bens privados, pois quando algo é elevado à categoria de bem jurídico de uma norma jurídico-penal, isso significa, por definição, que sua proteção se converte em função pública. 152

Quanto a quem tem capacidade de dispor do bem, o autor defende que, independentemente do favorecido final ou da titularidade do bem, sua disponibilidade, em última análise, está ligada ao Estado, por isso pondera:

Acima de tudo, os bens que devem servir ao indivíduo apenas podem ser administrados em comum, de forma que, mesmo em uma abordagem individualista do reconhecimento de bens, não há como evitar a capacidade para dispor do Estado.153

Já para a teoria dualista, admitida por Tiedemann,154 enquanto os bens individuais se referem à pessoa, a titularidade dos bens metaindividuais se divide, em síntese, entre: (i) institucionais, ligados ao Estado; (ii) coletivos, conjunto de pessoas adstrita a determinada classe ou categoria, delimitação do número de interessados por um vínculo jurídico; e (iii) difuso, reunião das pessoas em virtude

151 “A própria proteção do indivíduo (vida, liberdade, etc.) apenas é necessária, porque a sociedade

precisa de membros capazes de agir; [...]”. (JAKOBS, Günther. Tratado de direito penal: teoria do injusto penal e culpabilidade, p. 66)

152

JAKOBS, Günther. Tratado de direito penal: teoria do injusto penal e culpabilidade, p. 66.

153

JAKOBS, Günther. Tratado de direito penal: teoria do injusto penal e culpabilidade, p. 67.

de fatos genéricos, eventuais e mutáveis, formando grupo fluído e indeterminado não alicerçado em qualquer vínculo jurídico de base.

Para Tiedemann, as classes de bens jurídicos individuais e metaindividuais não são contraditórias, ao contrário, se complementam. Para o autor o que ocorre é uma questão de preponderância. Nos bens jurídicos individuais prepondera o interesse pessoal e nos não individuais, o interesse social.

Sustenta, ainda, parte da doutrina que os bens jurídicos podem ser classificados quanto ao seu caráter pessoal e não pessoal, o que significa que os bens jurídicos pessoais decorrem da esfera essencial da pessoa – aquilo que a pessoa é (vida, integridade física, psíquica); e os não pessoais decorrem da esfera periférica da pessoa – aquilo que a pessoa tem (patrimônio, inviolabilidade do domicílio).155

Para quem adota essa subdivisão, ela é aplicável, atendendo aos mesmos critérios dos bens jurídicos de titularidade individual e metaindividual, somente ponderando que neste último contexto o ser humano não é considerado individualmente, mas de forma plural e genérica, como coletividade e humanidade.