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1.3 O BEM JURÍDICO-PENAL: CONCEITO E TITULARIDADE

1.3.3 Bem jurídico-penal: teorias quanto à titularidade – concepção

A tendência quanto à titularidade do bem jurídico reflete o modelo de Estado adotado.

É certo que na concepção do Estado Absoluto ou em regimes autoritários, houve a preponderância do interesse coletivo, que restou afastada na concepção do Estado Liberal, no qual existia a primazia dos direitos e garantias individuais.

Essa conotação coletiva restou repristinada na concepção do Estado Social através do mecanismo de garantias coletivas (Welfare State),156 com o objetivo de corrigir o individualismo exacerbado do sistema liberal.

155 SOUZA, Paulo Vinicius Sporleder de. Bem jurídico-penal e engenharia genética humana:

contributo para a compreensão dos bens jurídicos supra-individuais, p. 317.

156 Ivan Martins Motta chega a sustentar que com a evolução do Estado Liberal para o Estado Social

surgiram bens jurídicos especiais e assessórios, não essenciais e nem ligados diretamente à vida da pessoa humana (bens nucleares), mas necessários à manutenção da complexa vida social atual. (MOTTA, Ivan Martins. Erro de proibição e bem jurídico-penal, p. 123)

No âmbito do Estado Democrático de Direito, no que tange à titularidade dos bens jurídico-penais, acreditamos que a melhor posição é a da teoria monista pessoal de Hassemer, também sustentada entre nós pelo professor Luiz Régis Prado.157

Segundo essa concepção a noção de bem jurídico-penal exige, necessariamente, um conteúdo axiológico que seja reconduzível à pessoa humana158 e, ainda, que a norma incriminadora descreva em concreto os bens jurídicos a serem lesados, sob pena de ilegitimidade.159

Nesse sentido, a concepção monista não pessoal, com origem em Binding e atualmente sustentada por Jakobs, parece violar frontalmente o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, já que o ser humano não pode ser utilizado como mero instrumento.

Quanto à teoria dualista, defendida por Tiedemann, enseja o risco de confusão conceitual entre bens e as meras funções estatais (criação de falsos bens jurídicos), uma vez que essa linha sugere uma autonomia dos bens jurídicos supraindividuais, que podem subsistir independentemente de sua recondução à esfera do indivíduo.160

Ressalte-se, todavia, que a adoção da teoria monista pessoal, ao contrário do que se pretende afirmar,161 não exclui ou prejudica a possibilidade de intervenção penal legitimada por bens metaindividuais, apenas os limita às hipóteses em que seja possível sua recondução à esfera pessoal do indivíduo.

Essa concepção não abandona a intervenção penal justificada por bens jurídicos coletivos e difusos, mas os submete a “especiais mandatos de

157 HASSSEMER, Winfried. Lineamentos de uma teoria personal del bien jurídico. In: ______.

Doctrina penal: teoría y prática en las ciencias penales, p. 275-285. PRADO, Luiz Régis. Bem jurídico-penal e Constituição, p. 97. No mesmo sentido SOUZA, Paulo Vinicius Sporleder de. Bem jurídico-penal e engenharia genética humana: contributo para a compreensão dos bens jurídicos

supra-individuais, p. 315.

158 Nesse sentido, SALOMÃO, Heloisa Estellita. A tutela penal e as obrigações tributárias na

Constituição Federal, p. 91.

159 HASSEMER, Winfried. Lineamentos de uma teoría personal del bien jurídico. In: ______. Doctrina

penal: teoría y prática en las ciencias penales, p. 275-285.

160 Na mesma linha, pondera Ferrajoli que “nosso princípio da lesividade permite considerar ‘bens’

somente aqueles cuja lesão se concretiza em um ataque lesivo a outras pessoas de carne e osso”. (Cf. FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal, p. 439)

161 Cf. GRECO, Luís. Princípio da ofensividade e crimes de perigo abstrato: uma introdução ao debate

moderação”,162 pois devem estar integrados à satisfação pessoal de um indivíduo ou de um grupo deles.163

A adoção da teoria monista pessoal quanto à titularidade do bem jurídico é de extrema importância para este estudo, já que orienta a noção do conceito- dogmático de direito penal econômico.

Em síntese, adotando-se a teoria constitucional mista (quanto ao limite) e a teoria monista pessoal (quanto à titularidade), os dois pilares para um conceito de bem jurídico-penal adequado ao modelo de Estado Democrático de Direto são: (i) natureza de direito fundamental constitucional do valor protegido; e (ii) vinculação à satisfação de um interesse individual ou a ele reconduzível.164

Nesse diapasão, bem jurídico-penal, como um dos elementos do tipo (objeto de proteção), deve ser um “bem, interesse ou valor socialmente reconhecido a partir de uma necessidade humana, surgida da experiência concreta da vida”.165

Essa noção de bem jurídico espelha, portanto, a relação de disponibilidade de um indivíduo para com um valor pré-normativo, reconhecido constitucionalmente, diante de sua inegável relevância social, cujo interesse do

162 Sobre esse aspecto, o autor consigna que a inclusão de bens jurídicos coletivos ou do Estado não

desnatura o conteúdo estritamente pessoal desses bens, já que todas as normas de proteção de bem jurídico tem como destinatário final o ser humano. (TAVARES, Juarez. Teoria do injusto

penal, 2000, p. 182)

163 GODOI, Antônio Januzzi Marchi de. Do bem jurídico penal, p. 152.

164 Também sob esse enfoque, Juarez Tavares assevera que “a percepção de um bem jurídico passa,

portanto, por duas fases seqüenciais. A primeira, de corresponder ao processo de redução individual. A segunda, de elencar suas características ou propriedades de dispor acerca dos princípios normativos de sua delimitação. No caminho da primeira seqüencia, só poderá ser reconduzido como bem jurídico o que possa ser reduzido a um ente próprio da pessoa humana, quer dizer, para ser tomado como bem jurídico será preciso que determinado valor possa implicar, direta ou indiretamente, um interesse individual correspondente a uma pessoa determinada ou a um grupo de pessoas indistinguíveis[...] Na segunda seqüencia, tem-se que estabelecer aquilo que constitua as propriedades essenciais de um bem jurídico e elencar os princípios normativos que devam incidir sobre essas propriedades para delimitar-lhes o alcance e precisar-lhe o conteúdo[...] Com isso só será caracterizado como bem jurídico aquilo que possa ser concretamente lesado ou posto em perigo, mas de tal modo que a afirmação dessa lesão ou desse perigo, seja suscetível de um procedimento de contestação”. (TAVARES, Juarez. Teoria do

injusto penal, 2002, p. 217-218, 221)

165 GODOI, Antônio Januzzi Marchi de. Do bem jurídico penal, p. 143. Nesse sentido, para ele, bem é

“algo positivamente valorado em razão de sua necessidade”;, interesse seria “vínculo pisíquico- valorativo estabelecido entre bem e sujeito”; valor é o “resultado da apreciação da utilidade do bem relativamente ao interesse e à necessidade”, ou ainda “qualidade, atributo do bem, aferido por meio de um juízo humano de conclusão, em favor da utilidade constatada do bem, o converte em interesse”. (GODOI, Antônio Januzzi Marchi de. Do bem jurídico penal, p. 29, 31, 34)

Estado se revela mediante a tipificação penal de condutas que o afetam ou o expõem a risco concreto de afetação.166

Esse instituto desempenha, portanto, caráter limitador do poder punitivo, já que consiste em elemento essencial para a legitimação material da intervenção penal.

166 Juarez Travares, sobre a necessidade de relevância social, assevera que “a exigência de uma

delimitação da intervenção do Estado, igualmente no âmbito do processo de socialização, ou dessocialização, e não apenas no âmbito causal da produção de efeitos, deflui da necessidade de situar o bem jurídico, não apenas agora, como objeto de preferência ou de referência, mas sim como instrumento de discussão da legitimidade do próprio direito de punir.” (TAVARES, Juarez.

2 O PRINCÍPIO DA LEGALIDADE