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Neste segundo capítulo, destacamos as funções desempenhadas pelo princípio da legalidade no Estado Democrático de Direito.

O princípio da legalidade é, antes de tudo, uma norma. Entretanto, na categoria de normas, além dos princípios encontram-se as regras. Assim, para facilitar a compreensão do tema, faz-se necessário estudar o significado de norma (gênero), princípios e regras (espécies).

A norma “pressupõe a idéia de normalidade, ou seja, a conformidade com um padrão determinado que, ‘estatisticamente’, é o que se repete na maioria das vezes ou determinado padrão normalmente tolerado pela sociedade”.167

Normas são, portanto, diretrizes orientadoras do atuar humano, oriundas das mais diversas fontes, podendo ser naturais, sociais ou jurídicas.

Enquanto as normas naturais são imutáveis, cabendo ao homem apenas conhecê-las, as normas sociais168 têm como características principais a abstração e a generalidade, uma vez que todos os indivíduos que fazem parte de determinado corpo social devem por elas ser atingidos.169

Para efeitos deste estudo, serão consideradas, especificamente, as normas jurídicas, cuja definição necessita ser sólida o suficiente para determinar um significado e, ao mesmo tempo, compatível com a função de abranger o maior número possível de problemas referentes ao conceito em si.

167 SCHMIDT, Andrei Zenkner. O princípio da legalidade penal, p. 33.

168 Estas se subdividem em: (i) religiosas – deveres de cada um diante da divindade; (ii) éticas –

deveres de cada diante do semelhante; e (iii) jurídicas – necessidade de sua observância para o equilíbrio social, sendo garantidas por uma sanção e emanadas do poder público.

169 A diferença entre as normas morais (religiosas e éticas) e as jurídicas, se dá pela forma como a

obrigação atua e pelo resultado da sua inobservância. Enquanto as normas morais geram uma obrigação principal de pensamento e secundária de conduta, obrigam a consciência do indivíduo primariamente, as normas jurídicas têm por finalidade impedir ou impor determinada conduta, independentemente de adesão subjetiva, valorando, primariamente, o agir, e não o pensar. Quanto às consequências, enquanto as normas morais se circunscrevem à atuação interna do indivíduo, implicando a restrição à liberdade interna, as normas jurídicas atuam sobre a liberdade externa, impondo uma reprimenda ou sanção que nada influenciará quanto à vontade do agente. (Cf. SCHMIDT, Andrei Zenkner. O princípio da legalidade penal, p. 33-39)

Pretendendo atender a tais requisitos, Robert Alexy sustenta um “conceito semântico” que pressupõe o reconhecimento da diferença entre norma e enunciado normativo. Para o conceito semântico, norma é o significado do enunciado normativo que, por sua vez, é a expressão da norma.170

Sustenta o autor alemão que toda norma pode ser expressa por um ou mais enunciados normativos e, ainda, que existem normas que podem ser expressas sem a necessidade de um enunciado normativo (cita o exemplo de um semáforo de trânsito). Assim, o conceito de norma precede o conceito de enunciado normativo.171

Alexy defende que, para identificar a norma representada pelo enunciado normativo, deve-se recorrer, de forma pragmática, às modalidades deônticas representadas pelo dever, proibição e permissão.

Exposto o conceito semântico de norma, necessário, ainda, distinguir suas estruturas teóricas, estabelecendo os conceitos de princípios e regras.172 O critério mais utilizado é o da generalidade, segundo o qual princípios são normas com grau de generalidade mais amplo em comparação às regras.

Todavia, a doutrina também se vale de outros requisitos, tais como: (i) determinabilidade dos casos de aplicação; (ii) forma de seu surgimento (normas criadas ou desenvolvidas); (iii) caráter explícito de seu conteúdo axiológico; (iv) referência à ideia de direito e à importância para ordem jurídica; (v) serem razões para as regras ou as próprias regras; e (vii) constituírem normas de argumentação ou de comportamento.173

Para Alexy, os critérios tradicionais levam a três caminhos: (i) impossibilidade de diferenciação diante da diversidade de critérios existentes; (ii) diferenciação possível, mas somente no que tange ao grau de generalidade; e (iii)

170 Para o autor, o conceito semântico é o mais adequado ao Direito (ALEXY, Robert. Teoria dos

direitos fundamentais, p. 54-60). Em posição similar o professor Humberto Ávila afirma que

“Normas não são textos nem o conjunto deles, mas os sentidos construídos a partir da interpretação sistemática de textos normativos. Daí se afirmar que os dispositivos se constituem no objeto da interpretação; e as normas, no seu resultado”. (ÁVILA, Humberto. Teoria dos

princípios da definição à aplicação dos princípios jurídicos, p. 30)

171 Sob esse prisma, é fato que não existe correspondência direta entre a norma e o dispositivo, já

que nem sempre que houver uma norma haverá um dispositivo e nem sempre que houver um dispositivo haverá uma norma. Aliás, poderá haver vários dispositivos e apenas uma norma ou, ainda, várias normas em um único dispositivo.

172

Sobre a importância dessa distinção cf. ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais, p. 85.

173 Cf. ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios da definição à aplicação dos princípios jurídicos, p. 35-

existência de uma diferença gradativa e qualitativa entre regras e princípios (tese adotada pelo autor).

Nesse sentido, para o autor, princípios são “normas que ordenam que algo seja realizado na maior medida possível dentro das possibilidades jurídicas e fáticas existentes”, são “mandamentos de otimização”. As regras “são normas que são sempre ou satisfeitas ou não satisfeitas”, são “determinações no âmbito daquilo que é fática e juridicamente possível”.174

Na sua concepção, os princípios não têm um mandamento definitivo, apenas indicam prima facie uma direção de comportamento, que exprime razões que podem ser afastadas por razões antagônicas. As regras exigem que seja feito exatamente aquilo que elas ordenam, possuem uma determinação da extensão de seu conteúdo no âmbito das possibilidades jurídicas e fáticas, bem como têm caráter mais definitivo.

No que tange à distinção entre conflitos175 de regras e colisões de princípios, sugere o autor que no primeiro caso deve haver a criação de uma cláusula de exclusão ou exceção, de modo que a aplicação de uma elimine a outra (eliminando o conflito) ou, ainda, que uma delas seja declarada inválida.

Já para o caso de colisão entre princípios, um deles terá de ceder sem, entretanto, ser estabelecido que o princípio cedente deva ser declarado inválido, tampouco que nele seja incluída uma cláusula de exceção.176 É questão de valoração.

Conclui Alexy que “conflitos entre regras ocorrem na dimensão da validade, enquanto as colisões entre princípios – visto que só princípios válidos podem colidir – ocorre, para além dessa dimensão, na dimensão do peso”.177

Na concepção de Roland Dworkin,as regras são aplicadas ao modo de tudo ou nada (all-or-nothing). Para o autor, se está preenchida a hipótese de

174 ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais, p. 90-91.

175 Conflito é a situação em que duas normas, aplicadas de forma isolada, levam a resultados

incompatíveis entre si.

176 Nessa linha, para Alexy o sopesamento de princípios deve ser feito sob as três máximas da

proporcionalidade, ou seja, adequação, necessidade (mandamento do meio menos gravoso) e proporcionalidade em sentido estrito (sopesamento propriamente dito – relativização em face das possibilidades jurídicas). A definição sobre qual princípio deve ter precedência será determinada pelo caso concreto, no qual se estabelecerá uma “lei de colisão”, esclarecendo as “condições sob as quais um princípio prevalece sobre outro”. É possível até mesmo que em circunstâncias distintas a colisão entre os mesmos princípios seja resolvida de forma diversa. (ALEXY, Robert.

Teoria dos direitos fundamentais, p. 121)

incidência de uma regra, ou ela é válida e deve ser aplicada, sendo sua consequência normativa aceita, ou deve ser considerada inválida. Portanto, no caso de colisão de regras, uma delas deverá, necessariamente, ser considerada inválida.178

Já com relação aos princípios, entende o filósofo americano que eles não determinam absolutamente a decisão, apenas contêm fundamentos que devem ser confrontados com fundamentos oriundos de outros princípios.

Conclui Dworkin que os princípios, ao contrário das regras, possuem uma dimensão de peso, sendo certo que na hipótese de colisão o de peso maior deve prevalecer sem que quaisquer deles perca sua validade.179

As análises de Robert Alexy e Roland Dworkin diferem das tradicionais, porque não se baseiam em mera distinção de grau, mas consideram a estrutura lógica de cada categoria.

Humberto Ávila critica todos os critérios de distinção entre regras e princípios expostos, que ele classifica como: (i) critério de caráter hipotético- condicional, o fato de as regras possuírem uma hipótese e uma consequência que predeterminam a decisão e os princípios, apenas, indicarem o fundamento a ser utilizado pelo aplicador para, em momento posterior, encontrar a regra para o caso concreto; (ii) critério do modo final de aplicação, que corresponde às regras serem aplicadas de forma absoluta (tudo ou nada) e princípios de modo gradual (mais ou menos); (iii) critério de relacionamento normativo, ideia de antinomia entre as regras que consiste em verdadeiro conflito, solucionável com a declaração de invalidade de uma delas ou a criação de uma exceção, ao passo que a colisão entre os princípios seria solucionável mediante ponderação, que atribui uma dimensão de peso para cada um deles; e (iv) critério de fundamento axiológico, a considerar os princípios, ao contrário das regras, como fundamentos axiológicos da decisão a ser tomada.180

O autor propõe a superação do modelo bipartido de regras e princípios e sugere a adoção de uma estrutura tripartite, com o acréscimo da categoria de postulados, cuja finalidade é instrumentalizar a aplicação dos princípios e regras.181

178 DWORKING, Roland. Levando os direitos a sério, p. 23-126. 179

DWORKING, Roland. Levando os direitos a sério, p. 23-126.

180

ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios da definição à aplicação dos princípios jurídicos, p. 39-61.

Para ele, a dimensão das regras seria comportamental; a dos princípios, finalística; e a dos postulados, metódica, uma vez que

as regras são normas imediatamente descritivas, primariamente retrospectivas e com pretensão de decidibilidade e abrangência, para cuja aplicação se exige a avaliação da correspondência, sempre centrada na finalidade que lhes dá suporte ou nos princípios que lhes são axiologicamente sobrejacentes, entre a construção conceitual da descrição normativa e a construção conceitual dos fatos.

Já os princípios

são normas imediatamente finalísticas, primariamente prospectivas e com pretensão de complementaridade e de parcialidade, para cuja aplicação se demanda uma avaliação da correlação entre o estado de coisas a ser promovido e os efeitos decorrentes da conduta havida como necessária à sua promoção.182

Os postulados, por sua vez, são “normas sobre aplicação de outras normas”, consistem em “metanormas” ou “normas de segundo grau”.183

Humberto Ávila184 ressalta a importância das regras para a “segurança das pessoas” e para a “eficiência das decisões”, que não seriam “normas de segunda categoria” e rechaça a orientação de obediência às regras simplesmente centrada na ideia de autoridade. Estabelece, assim, uma conexão entre as regras, os princípios e, via de consequência, os valores por estes representados.185

Sobre esse ponto, tanto Alexy186 quanto Ávila,187 embora ressaltem que os conceitos de valor e princípio não se confundem, já que enquanto o primeiro deve ser considerado no plano subjetivo e axiológico (algo bom) e o segundo deve ser

182 ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios da definição à aplicação dos princípios jurídicos, p. 79. 183 ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios da definição à aplicação dos princípios jurídicos, p. 124. 184 O autor leciona que um mesmo dispositivo, diante da interpretação e das peculiaridades de cada

caso concreto, pode instituir uma regra ou um princípio, hipótese que ele denomina de “alternativa inclusiva”. (ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios da definição à aplicação dos princípios

jurídicos, p. 90)

185 Tanto que admite a superabilidade das regras em razão de “valores prestigiados pelo próprio

ordenamento jurídico”. A nosso sentir, a orientação referente aos valores pode ser desempenhada justamente pelos princípios que, portanto, em determinadas hipóteses, constituem o fundamento para a superabilidade da aplicação das regras. (ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios da

definição à aplicação dos princípios jurídicos, p. 114)

186

ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais, p. 153.

analisado sob o prisma deontológico (dever, proibição, permissão ou direito),188 reconhecem que os princípios espelham valores.

Destarte, para os autores, a noção de princípio exprime uma finalidade, um conteúdo desejado, um estado a ser atingido189, representativo de um valor que, no contexto de um Estado de Direito, vincula, de forma inequívoca, toda a atividade estatal. É sob esse enfoque a noção de princípio adotada pelo nosso estudo.

A norma jurídica não pode ser justificada pela simples autoridade, mas deve estar fundamentada tanto em raízes axiológicas (representadas pelos princípios), quanto a aspectos formais de validade (representados pelas regras).

São essas vinculações que orientam a dupla conotação da legalidade penal, sobre a qual passamos a dissertar.