• Nenhum resultado encontrado

1.3 Ordem e ordem social

1.3.3 A ordem social como sistema

Já se afirmou que a ordem social só pode ser definida à luz do entendimento dos elementos culturais e históricos que lhe dão corpo. O reconhecimento de que a ordem é produto de uma inabarcável complexidade causal, constituindo-se, portanto, de um fenômeno que deve ser colhido em sua inteireza, justificou a breve retrospectiva histórica empreendida, na qual se pontuou a sucessão dos principais eventos que contribuíram para a gênese, a transformação e a permanência do modelo de ordenação revolucionário burguês.

Sem prejuízo, tamanha complexidade fenomenológica oferece inegáveis dificuldades para uma análise científica isenta, que depende, invariavelmente, de noções operacionais para ser bem-sucedida. Por esse motivo, a fim de evitar uma compartimentação irresponsável no estudo da ordem, um esforço de simplificação conceitual se faz necessário. O recurso metodológico mais adequado, nesse sentido, equivale à compreensão da ordem social como sistema.

O conceito de sistema é abrangente, tendo sido objeto de investigações profundas na Filosofia e na Filosofia do Direito. Aqui se pretende, contudo, simplesmente traçar uma noção basilar da informação no âmbito de uma ordem social. Trata-se de esforço preliminar, para que daí se derive a investigação do regime jurídico da informação no mercado de valores mobiliários brasileiro.

ações preferenciais recém-emitidas. Os governos dos países afetados também efetuaram operações de salvamento envolvendo inúmeras instituições não-financeiras. Cf. THE NEW YORK TIMES. Economic stimulus – Jobs bills (Times Topics). Última atualização em 15 mar. 2012. Disponível em: <http://topics.nytimes.com/top/reference/timestopics/subjects/u/united_states_economy/economic_stimulus/i ndex.html>. Acesso em: 4 jul. 2012. Cf. também ALTMAN, Roger C. The Great Crash, 2008: a geopolitical setback for the West, Foreign Affairs, v. 88, n. 1, jan.-fev. 2009. Disponível em: <http://www.foreignaffairs.com/articles/63714/roger-c-altman/the-great-crash-2008>. Acesso em: 4 jul. 2011.

43

Sistema é vocábulo de origem grega. Em seu contexto clássico, syn-istemi aludia à ideia de “totalidade construída, composta de várias partes”. Com o tempo, a significação original agregou a ideia de organização. Ligada à noção de cosmos, originalmente concebida não como Universo, mas como ordem, ou antítese do caos, o sistema passa a designar uma totalidade ordenada. A referência clássica a sistema pelos gregos guarda semelhanças surpreendentes com o uso moderno do vocábulo. De forma isolada, contudo, ela não se presta inteiramente a finalidades acadêmicas, posto que a acepção helênica de sistema não foi alcançada de maneira intencional.52

Relata FERRAZ JR. que o termo apenas se generalizou com configuração mais

próxima da hoje estabelecida a partir de Nicolas MALEBRANCHE, no século XVII, e de

Christian WOLFF, no século XVIII. A idéia de WOLFF, de que o sistema é um nexus

veritatum, que pressupõe a correção e a perfeição formal da dedução, foi desenvolvida décadas depois por Johann Heinrich LAMBERT.53

LAMBERT inovou ao lançar uma conceituação abstrata de sistema, segundo a qual

este constitui “um todo fechado, onde a relação das partes com o todo e das partes entre si estão perfeitamente determinadas segundo regras lógicas de dedução”. Tal conceito se aproxima da ideia de um dispositivo mecânico, tal qual um relógio, que pode ser decomposto em partes e recomposto novamente, sem que o todo se perca.54

Finalmente, a noção fundamental de sistema que se conecta com os objetivos desta dissertação é lançada no século XVIII por KANT, segundo o qual aquele se traduz na noção de unidade e conexão de acordo com um princípio.

Afirma o filósofo:

Esta unidade pressupõe uma ideia – a ideia da forma de um todo (cognitivo), precedendo a cognição determinada das partes, e contendo as

52 F

ERRAZ JR., Tércio Sampaio. Conceito de sistema no Direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1976, p. 9.

53 F

ERRAZ JR.,Tércio Sampaio. Conceito de sistema no Direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1976,p. 11.

54 F

ERRAZ JR.,Tércio Sampaio.Conceito de sistema no Direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1976,p. 12.

44 condições que determinam a priori o lugar de cada parte, e sua relação com as demais partes de todo o sistema. Essa ideia, pois, demanda completa unidade cognitiva do entendimento – não a unidade de um agregado contingente, mas de um sistema conectado de acordo com certas leis. Não se pode afirmar com propriedade que esta ideia é a concepção de um objeto; ela é meramente a concepção da unidade completa das concepções de objetos, na medida em que esta unidade está disponível para o entendimento como uma regra.55

A concepção de KANT, como se pode notar, difere daquela defendida por

LAMBERT. Enquanto LAMBERT preconiza uma ideia de sistema que se estende às partes (ou melhor, dizendo à luz do ensinamento de TELLES JUNIOR, às estruturas), sendo elas mesmas, isoladamente, sistema, o sistema para KANT precede às partes por via de uma ideia fundamental.

A noção kantiana foi ecoada, mais recentemente, por STAMMLER, para quem o sistema é “uma unidade totalmente coordenada”, e por CANARIS, que, após percorrer um

longo caminho teórico para a determinação do termo, concluiu que a ordem e a unidade são qualidades inafastáveis do conceito geral de sistema.56 Assim, fica evidente que, como para a ordem, as noções de ordenação e unidade são indispensáveis como fundamento do sistema.

No entanto, como restou claro do exercício preliminar desenvolvido nos itens anteriores, enquanto perquirir sobre a natureza da ordem, e sobre a natureza e transformações da ordem social, em particular, é tarefa que extrapola as finalidades últimas desta dissertação, o recurso metodológico ao conceito de sistema dá cabo de tais dificuldades e autoriza uma investigação melhor orientada da informação naquele contexto. Tal recurso permite que se reproduza a riqueza da realidade inerente à noção de

55 “This unity presupposes an idea—the idea of the form of a whole (of cognition), preceding the determinate

cognition of the parts, and containing the conditions which determine a priori to every part its place and relation to the other parts of the whole system. This idea, accordingly, demands complete unity in the cognition of the understanding — not the unity of a contingent aggregate, but that of a system connected according to necessary laws. It cannot be affirmed with propriety that this idea is a conception of an object; it is merely a conception of the complete unity of the conceptions of objects, in so far as this unity is available to the understanding as a rule.” (Tradução livre.) KANT, Immanuel. The critique of pure reason. [S.l.]: Project Gutenberg, 2007. Disponível em: <http://www.gutenberg.org/cache/epub/4280/pg4280.html>. Acesso em: 4 jul. 2011.

56 C

ANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do Direito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2008, pp. 11-12.

45

ordem social por meio da referência a um conceito operacional cuja significação é de mais fácil delimitação.

Em resumo, as seções anteriores trataram de facilitar a compreensão da gênese da ordem burguesa quando do rompimento com o modelo de ordenação feudal. Referiu-se de modo bastante breve que, a partir de fins do século XVIII, o discríminen da propriedade fundiária foi substituído por outro, a moeda, entendida como a verdadeira materialização dos ideais de liberdade e igualdade que orientaram as revoluções burguesas.57 Dali por diante, embora a proliferação das tensões sociais inerentes à extrapolação da ortodoxia liberal tenha forçado a ordem a se transformar – sob o risco de seu desaparecimento –, a nova proposta de ordem ainda assim manteve-se em pé, organizando as relações sociais na maior parte do mundo de modo bastante semelhante. Este é o modelo organizacional que, em última análise, ainda hoje prevalece ordenando as interações humanas.

Nesse sentido, é lícito afirmar simplificadamente que a ordem social se revela como um fenômeno sistêmico: um sistema passível de transformações, mas relativamente constante de padrões de interação e relacionamento, norteado por interesses identificáveis, cujo caráter comum identifica a ordem e aproxima suas estruturas. A ordem social implica um conjunto persistente de relações humanas – dentre as quais incluem-se relações ditas “de poder” – e valores, sendo, por isso mesmo, um sistema axiológico – o próprio Direito.

É a noção basilar da informação e seu papel no âmbito de uma ordem social, em geral, e na ordem burguesa vigente, em particular, que se quer no próximo item investigar.