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Módulo I: Abertura: apresentação do curso e das/os participantes; O contexto de ensino de português como língua de herança (POLH):

CAPÍTULO 2 – PRESSUPOSTOS TEÓRICOS: DAS POLÍTICAS LINGUÍSTICAS FAMILIARES À CIDADANIA PLURILÍNGUE

2.3 A origem da expressão “língua de herança” e suas definições

A origem da expressão ‘língua de herança’ (LH, ou heritage language, em inglês) remonta ao final da década de 1970, quando começou a ser utilizada no Canadá (VAN DEUSEN-SCHOLL, 2014) para se referir às línguas diferentes das oficiais, faladas pelos imigrantes que chegaram e continuaram a usá-las em seu cotidiano, em alguns casos transmitindo-as por várias gerações. Nos EUA, o termo se popularizou a partir de meados da década de 1990. Em outros pontos do mundo, por exemplo, no Reino Unido, as LHs são chamadas de ‘línguas comunitárias’ (community languages – ver (SOUZA, 2010a; 2010b). Mesmo no Brasil há uma expressão para se referir às línguas mantidas pelos imigrantes, utilizada principalmente em relação aos idiomas trazidos com as ondas de imigração do século XIX e princípio do século XX: “línguas de imigração” (ALTENHOFEN, 2004).

Quando se trata de definir o que são línguas de herança17, duas

descrições são constantemente mencionadas: Valdés (2000; 2001) as considera como línguas diferentes da língua da sociedade, faladas na família, no ambiente doméstico, e cujos aprendizes apresentam algum grau de bilinguismo, falando ou apenas entendendo a língua de herança; já Van Deusen-Scholl (2003) tem uma definição mais ampla, pois considera como LH aquela que abarca um grupo que inclui desde nativos fluentes a não falantes da LH, os quais podem estar a gerações de distância do familiar emigrante, mas que se sentem culturalmente ligados à língua e têm um vínculo cultural com a comunidade que se comunica por esse idioma.

Embora Valdés (2000; 2001) e Van Deusen-Scholl (2003) relacionem as LHs às comunidades de imigrantes que chegam a um novo país, “língua de herança” também pode ser usado para se referir aos idiomas nativos que perderam terreno com os movimentos de colonialismo e neocolonialismo,

17 A própria expressão “língua de herança” é discutível: essa “língua”, como se verá, não é algo

que vem pronto, mas que deve ser construído. Nesse processo, que pode durar toda a vida, as fronteiras sobre o que pertence a uma ou outra língua de um repertório linguístico plurilíngue pode ser tênue ou difusa. “Herança”, por sua vez, apesar de remeter a um “legado”, também pode levar ao (mal) entendimento de que tal “patrimônio” é recebido pronto. Como as próprias áreas de estudo vem se consolidando com os nomes de “Língua de Herança” ou “Português Língua de Herança”, estas são as expressões utilizadas ao longo da tese.

como as línguas indígenas ou ‘línguas da terra’ (KING, 2000; LIMA- HERNANDES e CIOCCHI-SASSI, 2015a; 2015b) – uma conotação diferente da que utilizo, pois como Valdés (2000; 2001) e Van Deusen-Scholl (2003), relaciono o PLH à imigração, no caso, a brasileira, geralmente para os chamados países desenvolvidos. Em todo caso, na LH ocorrem processos de identificação entre seus falantes e isso só é possível porque a própria LH é um

discurso construído por meio de uma série de práticas sociais – e culturais –

compartilhadas. Abordarei mais detalhadamente a relação entre a língua e os processos de identificação dos falantes de PLH na seção 2.4.

Seja em contexto de “língua da terra” ou de língua de imigração,

pensar as competências linguísticas dos falantes de LH é pensar competências díspares, tanto individualmente como em relação a um grupo de falantes. Como propõe Lynch (2008), as competências dos aprendizes de herança podem ser distribuídas num continuum que compreende desde um alto grau de

proficiência (como o de um falante “nativo” com alta escolaridade) aos não

falantes (mas que se sentem vinculados à língua). Visto desse modo, o conceito de continuum permite retomar algumas ideias da perspectiva complèxica (MASSIP e BASTARDAS, 2015), como a dos sistemas difusos (MUNNÉ, 2015): ser falante de língua de herança é pertencer a um conjunto cujos limites não são nítidos; é estar em algum ponto entre 0 (não ser falante da língua) e 1 (ser um falante). É, portanto, buscar alternativas a uma visão composta por conjuntos cujos limites são bem definidos, como em 0 e 1, a da lógica binária que só permite um ou outro valor.

Pensando em como caracterizar o falante de herança, há entendimentos diferentes sobre que aspectos priorizar. O critério de Valdés (2000; 2001) tem como norteador a proficiência linguística: é necessário algum grau de proficiência (falar ou entender) para pertencer à comunidade de fala; já Van Deusen-Scholl (2003) valoriza o sentimento de identificação com tal grupo: não é fundamental saber a língua, sendo que o sentir-se culturalmente ligado a ela é o que caracterizaria o aprendiz de LH. Embora se costume pensar o falante de herança como o descendente de um falante desta língua, tipicamente os filhos ou netos, proponho que neste grupo sejam também considerados, no caso das famílias mistas de PLH deste estudo, por exemplo,

os progenitores não-brasileiros: estes também podem ter algum grau de proficiência na LH e um vínculo cultural com a comunidade de fala.

Além desses dois norteadores, o de proficiência e o de identificação, proponho acrescentar a afetividade aos fatores que vinculam o falante de herança ao grupo. Assim, o falante de herança também está caracterizado por viver experiências emocionalmente significativas na LH, como as formas cognitivas de vinculação afetiva (DANTAS, 1992), sendo que, para ele, as palavras da LH podem ser corpóreas e emotivas e processadas por canais afetivos (PAVLENKO, 2005). Em He (2010) é possível encontrar a descrição desse vínculo – não apenas cultural, mas também emocional – feita por Jason, um aprendiz de chinês como língua de herança:

A língua falada em casa é o chinês. Meus pais são chineses. Eles sempre me elogiaram e me deram broncas em chinês ... O meu chinês é muito ruim. Eu não sei ler e só consigo escrever meu nome. Mas quando eu penso na língua chinesa eu penso em minha mãe, meu pai e minha casa. É a língua da minha casa e do meu coração. (HE, 2010, p. 66)

Entender que a comunidade de fala de uma LH está fortemente caracterizada pelos vínculos emocionais construídos na LH, que se identifica pelas práticas culturais compartilhadas nessa língua e se distribui num continuum de proficiências linguísticas variáveis ajuda a romper com dicotomias que não necessariamente funcionam na hora de definir seus

falantes. Assim, usar termos como “língua materna x estrangeira”, “língua

nativa x não-nativa” “sujeito bilíngue x monolíngue” para referir-se à sua proficiência talvez não sejam adequados. Da mesma forma, em termos de identidade, a oposição “brasileiro x inglês” (ou qualquer outra que faça referência a identidades nacionais) não necessariamente é a adequada para que um falante de PLH expresse sua identidade, pois como argumenta Souza (2010b), é possível que ele se identifique como ambos.

Em qualquer caso, uma LH reflete deslocamentos, que podem ser, por um lado, espaciais e geográficos, relacionados à imigração ou colonialismo, ou, por outro, na variedade de usos e prestígio, quando esta é uma língua autóctone que perde terreno. Portanto, por definição, pensar as línguas de

herança será sempre pensar uma língua minoritária num contexto de bi ou plurilinguismo.

Em meu entendimento, para os efeitos deste trabalho, quando me refiro ao “português como língua de herança” faço alusão especificamente à língua portuguesa em sua variante brasileira, utilizada por brasileiros emigrados, os membros de sua família nuclear e seus descendentes

estabelecidos fora do Brasil18, a qual está relacionada aos deslocamentos

provocados por uma onda de emigração para grandes centros urbanos com início na década de 1980 – o que justifica, a meu ver, não chamá-la de “língua de imigração”, um termo que faz referência a imigrações ocorridas em outro momento histórico, associadas a atividades econômicas rurais, de línguas trazidas para o Brasil. Nessa perspectiva, me interessa refletir sobre o que o termo “aprendiz” significa. Muito utilizado na literatura de LH em inglês (cujo equivalente é “learner”) para se referir a este grupo, o “aprendiz” não é

necessariamente “aluno”, num contexto de aprendizagem em sala de aula;

tampouco é, necessariamente, “falante”, pois é possível que, nesse continuum, não chegue efetivamente a falar a LH.

Antes de me aprofundar no que seriam algumas características do PLH como língua, acredito ser de fundamental importância entender o PLH como fenômeno ou movimento social, pois o trabalho das chamadas “iniciativas” (JENNINGS-WINTERLE e LIMA-HERNANDES, 2015), expressão utilizada para se referir a grupos da sociedade civil organizados para promover o PLH por meio de encontros ou cursos de língua e cultura, entre elas a APBC, se insere nesse contexto. Parte disso consiste em rastrear quando o termo PLH começou a ser usado e os discursos que se configuraram em torno dele.

18

Reitero que o contexto de PLH no mundo não é exclusivamente brasileiro e compreende outras comunidades provenientes de regiões onde se fala a língua portuguesa (e algumas variantes crioulas), como Portugal, Açores, Cabo Verde etc. As iniciativas que trabalham com PLH às vezes reúnem diversas nacionalidades, em outros casos, não – o que depende, em parte, das especificidades da sociedade de acolhida. Por exemplo, na Finlândia, onde há um programa nacional que oferece ensino na “língua materna”, crianças portuguesas, brasileiras, cabo-verdeanas etc. frequentam as aulas juntas (PIIPO, 2016). Vale destacar, ainda, importantes contribuições às pesquisas de PLH, por exemplo, por pesquisadores portugueses, como Melo-Pfeifer (2016). Para efeitos de minha pesquisa, no entanto, optei por centrar-me nas especificidades do contexto brasileiro.