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Módulo I: Abertura: apresentação do curso e das/os participantes; O contexto de ensino de português como língua de herança (POLH):

CAPÍTULO 2 – PRESSUPOSTOS TEÓRICOS: DAS POLÍTICAS LINGUÍSTICAS FAMILIARES À CIDADANIA PLURILÍNGUE

3.5 Os usos linguísticos na Catalunha hoje

3.5.2 De perto: o contexto micro

Para aprofundar no universo individual dos falantes de catalão e considerando uma abordagem relevante para o universo da APBC, me centrarei em dois estudos recentes sobre famílias linguisticamente mistas, no caso, com cônjuges falantes de catalão e castelhano, que procuram explorar as motivações e pautas de transmissão linguística aos filhos: o de Boix-Fuster (2009a), com 79 entrevistas realizadas entre 1993 e 2006 na região

metropolitana de Barcelona, e o de Ballarín Garoña (2011), com 38 participantes mulheres, na Catalunha.

Os dois parecem confirmar a tendência de os falantes iniciais de catalão utilizarem o castelhano em determinadas situações, a tal ponto que a expectativa de adaptação a uma situação de bilinguismo cai sobre o falante de catalão, que deve saber adaptar-se ao castelhano, e não o contrário. Assim, não é de surpreender que, nos casais mistos catalano-castelhano, 75% dos falantes iniciais de catalão passem a usar o castelhano com o cônjuge e que em quase todos os casais a interação inicial tenha ocorrido em castelhano (BALLARÍN GAROÑA, 2011). Embora Boix-Fuster (2009a) corrobore que o castelhano seja a língua de interação inicial usada pela maioria dos casais mistos de sua pesquisa, ele destaca que essa escolha não necessariamente define os usos linguísticos do casal no futuro, havendo casos de mudança de língua.

Boix-Fuster (2009a) destaca que o castelhano, para seus sujeitos de pesquisa, é a língua mais conhecida e a língua privada mais disseminada e, se a difusão do uso e conhecimentos do catalão continuam, como indicam Vila i Moreno e Sorolla Vidal (2013), o resultado desses processos seria um

bilinguismo assimétrico – praticamente todos os falantes de catalão sabem

castelhano, mas nem todos os falantes de castelhano sabem catalão –, com

uma tendência à manutenção do uso espontâneo destas duas línguas principais. Em relação aos estratos sociais, o estudo de Boix-Fuster (2009a) aponta que o castelhano é a língua dominante na socialização familiar dos informantes de classes baixas, enquanto que o catalão é a língua levemente dominante nas classes médias. Nos setores populares, o castelhano é a língua hegemônica no ambiente laboral e nas relações entre vizinhos e, para os participantes da pesquisa de classes populares que falam habitualmente catalão, o contato com o castelhano sempre foi intenso – sendo possível dizer que predomina nos espaços públicos. Na opinião de Boix-Fuster (2009a), essa presença constante do castelhano nos espaços públicos e como língua

hegemônica – dos meios de comunicação, das relações intergrupais – é um

dos fatores para que os falantes de catalão se sintam menos seguros ao usar o catalão que ao usar o castelhano. Deve-se reconhecer, assim, o castelhano como língua hegemônica na Catalunha.

Em qualquer caso, os filhos destes casais mistos conhecem ambos os idiomas, pois estão expostos tanto ao catalão como ao castelhano em outros ambientes, que não seja em casa, com destaque para o escolar. Além disso, há indícios de que podem, mais adiante, optar por falar catalão – e não castelhano – com os próprios filhos: segundo dados da Generalitat, os filhos de casais com um dos progenitores nascido na Catalunha e outro em outras regiões da Espanha, os quais usam o catalão nas interações com os progenitores em 23,2% dos casos, optam por falar catalão com os filhos em 60,2% dos casos (CATALUNHA, 2015a).

Ainda nesse contexto, para que o catalão se torne a língua principal da família quando o casal é misto, os dados de Boix-Fuster (2009a) indicam que um dos cônjuges deve vir de família falante de catalão e deve haver “pressão familiar suficiente” quanto aos usos linguísticos para que o outro cônjuge falante de castelhano se insira nesse contexto, o que elucida a existência de PLFs que promovem os usos do catalão em contextos de bilinguismo com o castelhano. Se a influência catalanizadora não se restringe ao contexto familiar, mas ocorre também em outros meios, como o profissional e as redes de amizades, é mais provável que as competências e usos em catalão do cônjuge que tem o castelhano como língua inicial não se restrinjam a habilidades passivas (entender a língua), mas que ele comece a utilizá-la também como falante, podendo chegar a definir que esta será a língua na qual se relacionará com seus filhos. Ballarín Garoña (2011) corrobora essa posição.

Para os falantes de catalão como língua inicial que passam a usar o castelhano nas relações familiares, não há realmente um esforço por aprender o castelhano, pois eles já o conhecem previamente. Em outras palavras: é necessário um esforço muito maior para que os falantes monolíngues de castelhano adotem o catalão do que para que os falantes bilíngues de catalão adotem o castelhano.

A influência no predomínio do castelhano sobre o catalão, no entanto, se define não só na rede familiar, mas nas relações sociais fora de casa. Os círculos sociais na pré-adolescência (entre 13 e 15 anos) podem ter

mais influência que o ambiente – o bairro onde predomina o castelhano ou o

mistos, no caso) adotará como principal (BOIX-FUSTER, 2009a; BALLARÍN GAROÑA, 2011).

Com relação às representações, em linhas gerais, o panorama é

complexo e heterogêneo – ou talvez superdiverso (BLOMMAERT, 2013;

VERTOVEC, 2007): entre as expectativas dos progenitores em relação ao uso destas duas línguas pelos filhos no futuro, “o mais coerente é a incoerência” (BOIX-FUSTER, 2009a, p. 157), pois elas em nada correspondem às práticas linguísticas familiares (por exemplo, famílias desejosas que seus filhos usem o catalão em mais âmbitos no futuro, quando não o fazem entre suas práticas linguísticas do presente). Parece predominar o pragmatismo (comunicar-se, adaptar-se) em detrimento de uma prática coerente com as convicções ideológicas (BOIX-FUSTER, 2009a; CALDAS, 2012), sendo que a língua que os pais usam com os filhos não é escolhida de forma coerente, mas de acordo com um conjunto de fatores do contexto (BALLARÍN GAROÑA, 2011), o que corrobora a discussão de que geralmente as PLFs carecem de planejamento explícito (CALDAS, 2012; BASTARDAS-BOADA, 2016).

Outra incoerência aparece, por exemplo, na percepção – uma

ideologia vigente – de que há poucas horas dedicadas ao ensino do castelhano na educação primária (a carga horária é similar à de uma língua estrangeira) como algo negativo e que ameaçaria a aquisição dos conhecimentos

necessários em castelhano – o que não é real, já que as competências em

língua castelhana da população da Catalunha são maiores que em língua catalã (CATALUNHA, 2015a).

Em relação à diversidade de usos e conhecimentos, o estudo de Boix-Fuster (2009a) revela uma variedade de realidades linguísticas nas famílias mistas da região metropolitana de Barcelona – fruto, poder-se-ia dizer,

de diferentes PLFs – e, por extensão, nos usos linguísticos sociais: pessoas

que tentaram aprender o catalão, mas não foram capazes, por se sentirem discriminadas e ridicularizadas ao tentá-lo; catalães falantes de catalão como língua inicial que se sentem linguisticamente discriminados como minoria em

locais de alta proporção de falantes de castelhano – e vice-versa; falantes de

catalão como língua inicial que, simbolicamente, se identificam mais com o

castelhano – por origens familiares ou pressão do meio social – e passam a

castelhano como língua inicial; casais que se conhecem em castelhano e mais tarde adotam o catalão; falantes de catalão como língua principal, filhos de migrantes que têm o castelhano como língua familiar; adultos filhos de famílias mistas que alternam constante e indiscriminadamente o catalão e o castelhano ao se expressarem; representantes de famílias tradicionais catalãs de classes mais altas que passaram por um processo linguístico de castelhanização, para os quais a língua funciona como um indicador de ascensão social. Há que se considerar ainda os falantes iniciais de castelhano de origens populares de classes baixas, cujo passado familiar de privações está associado às ondas migratórias dos anos 1960-1970, os quais associam o uso do castelhano a essas limitações e preferem afirmar sua identidade como bilíngues, o que seria, também, um indicativo de ascensão social; pais que falam em catalão com os filhos, mas em castelhano entre o casal; filhos falantes de catalão, que potencializam as competências de pais falantes de castelhano na língua catalã (num processo de catalanização de baixo pra cima, que também demonstra a influência das crianças nas PLFs); pais que têm o catalão como língua inicial, mas optam por falar em castelhano com os filhos para compensar a pouca exposição que os filhos recebem ao castelhano no sistema escolar, entre outras nuances desse mosaico linguístico.

Em síntese: embora seja possível afirmar que a maioria dos falantes de catalão são bilíngues, e que a maioria da população da Catalunha tem algum grau de conhecimento do idioma catalão, não há um perfil de falante bilíngue. Mais adequado seria pensar que esses falantes distribuem suas competências num continuum para cada uma das línguas de seu repertório (BUSCH, 2012), lembrando que as competências de um falante bilíngue não resultam na soma das competências de dois falantes monolíngues, como ilustra Maher (2007) na Figura 9, a seguir.

Figura 9 – Universo discursivo do sujeito bilíngue (MAHER, 2007, p. 77)

3.6 Língua, política e processos de identificação na