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ANÁLISE QUALITATIVA: AS REPRESENTAÇÕES DE PAIS E PROFESSORAS DA APBC SOBRE PLH

Língua inicial dos progenitores da APBC

CAPÍTULO 5 ANÁLISE QUALITATIVA: AS REPRESENTAÇÕES DE PAIS E PROFESSORAS DA APBC SOBRE PLH

O capítulo anterior apresentou os dados gerados a partir de metodologias quantitativas, com algumas considerações que julgo relevantes sobre os repertórios linguísticos das famílias envolvidas. Com isso, acredito haver uma base melhor para que o entendimento das representações da APBC sobre PLH possam ser aprofundadas no presente capítulo.

Para a análise das representações, a qual é feita principalmente a partir dos dados gerados nas entrevistas individuais e grupo focal, utilizei uma metodologia qualitativa. Como exposto inicialmente, o critério de inclusão dos participantes adultos nas entrevistas e grupo focal era que fossem pai ou mãe de uma criança sócia da APBC ou professores da instituição. Não se buscou selecionar um grupo homogêneo de participantes para a pesquisa, por exemplo, levando em consideração o sexo ou a língua inicial, de modo que houve a participação de dois entrevistados catalães (um homem e uma mulher). Nas entrevistas individuais, além do catalão, houve também um homem brasileiro. No grupo focal, aos 6 participantes que haviam sido entrevistados se somaram mais 3: um homem e uma mulher, não brasileiros, e um segundo homem brasileiro.

Neste capítulo, os dados foram organizados no cruzamento dos

componentes de dois eixos: “Políticas linguísticas” x “Português como língua de

herança”. O eixo das PLs está composto pelos três componentes das PLs de uma comunidade de fala identificados por Spolsky (2004; 2012): ideologias, práticas e intervenção. O segundo eixo, do PLH, está composto por aqueles que considero

serem os três pilares sobre os quais este campo de estudo se estrutura, conforme

abordado nos pressupostos teóricos: identificação, proficiência e afetividade.

Assim, a análise das representações se estrutura no cruzamento das categorias de cada eixo, por exemplo, i-a, i-b, i-c; ii-a, ii-b, etc., conforme ilustrado na Tabela 8.

Português como língua de herança (PLH) a) Identificação b) Proficiência linguística c) Afetividade Políticas linguísticas (PLs)

i) Ideologias i-a) Ideologias x identificação i-b) Ideologias x proficiência linguística i-c) Ideologias x afetividade ii) Práticas linguísticas ii-a) Práticas linguísticas x identificação ii-b) Práticas linguísticas x proficiência linguística ii-c) Práticas linguísticas x afetividade iii) Intervenção iii-a) Intervenção

x identificação

iii-b) Intervenção x proficiência linguística

iii-c) Intervenção x afetividade

Tabela 8 – Esquema da organização temática das representações da APBC sobre políticas linguísticas para português como língua de herança

Em relação ao eixo das PLs, optei por apresentar as categorias nessa

ordem – i) ideologias, ii) práticas linguísticas; iii) intervenções – por acreditar que

uma primeira análise das ideologias permite um olhar mais crítico e aguçado para as representações sobre práticas linguísticas (a categoria ii). Nos pontos i) e ii), predominam representações sobre o ambiente familiar. Na categoria iii), intervenções, para efeitos da análise me concentrarei nas representações que dizem respeito à atuação e espaços da APBC, pois considero que, entre as PLs dessas famílias, o fato de frequentar a associação consiste numa intervenção explícita em seus usos e práticas relacionados ao PLH. Na categoria iii) também ganham destaque as representações das professoras.

i-a) Representações de ideologias x identificação

A ideia de identificação relaciona-se, por um lado, com a discussão em torno de identidade: aquilo com o que o sujeito se identifica em oposição àquilo que é diferente dele (HALL, 2011; SILVA, 2012). Nas discussões de PLH, ela também é mencionada como “pertencimento”: o sentimento de ser parte de um grupo ou uma representação de grupo. Embora em muitos momentos da análise “identificação” e “pertencimento” sejam termos intercambiáveis, em outros a “identificação” pode se referir a um espaço: o que é, o que acontece nele, razão pela qual me inclino a utilizar preferivelmente este termo, mais apropriado no segundo contexto.

Ao longo das entrevistas individuais, duas ideias se destacaram em relação aos motivos pelos quais essas famílias desejam transmitir o PLH a suas crianças. A primeira é porque os entrevistados, inclusive os catalães, como Laia, no excerto 1, identificam os filhos como (também) brasileiros:

EXCERTO 1 – Laia, mãe de Tiago, 4 anos

PESQUISADORA: E por que que você resolveu que você teria que continuar com o português com ele?

LAIA: Porque senão ele teria perdido essa língua. Eu achei uma pena. [...] Eu cresci com duas línguas. Eu acho muito importante isso. [...] Para mim, que uma criança possa falar mais uma língua é uma riqueza. E vai ser uma porta aberta. Ele é brasileiro. Ele tem nacionalidade brasileira. Quem sabe se um dia ele vai querer ir morar no Brasil, trabalhar no Brasil. Então ele já tem uma base de português, vai ser mais fácil pra ele.

A segunda ideia está relacionada ao fato de a criança ter o pai ou mãe brasileiro, sendo a língua um meio de o filho conhecer a cultura de origem do progenitor, com a qual ele, o progenitor, se identifica. O fato de que mães brasileiras relacionem sua identidade nacional ao uso do português, o que torna relevante a transmissão desta língua aos filhos, já foi relatado por Souza (2015) num estudo com mães brasileiras em Londres, Inglaterra. Por extensão, e no caso do presente estudo, saber a língua daria às crianças a possibilidade de se identificar com aquilo que o pai e a mãe são, conferiria acesso a práticas linguísticas e culturais que se realizam no Brasil, em português, o que melhoraria o diálogo intergeracional, como exemplifica Luísa:

EXCERTO 2 – Luísa, mãe de Olívia, 3 anos

LUÍSA: E também com relação à cultura, aonde eu nasci, eu sou a mãe dela, então eu gostaria que ela conhecesse um pouco dessa cultura, [...] eu acho que o português abre as portas dela pra isso. Para ir ao Brasil e poder se comunicar com as pessoas, de saber como é o meu modo de ser e de pensar também, entrar no meu universo de mãe, acho que é importante.

É interessante notar que não são apenas os progenitores brasileiros que podem considerar importante que as crianças conheçam a parcela brasileira de sua história pessoal. Para Jordi, por exemplo, pai catalão, saber português equivale a conhecer as raízes, a cultura de origem da mãe de seus filhos e compreender o percurso migratório familiar:

EXCERTO 3 – Jordi, pai de Daniel, 8 anos, e Pedro, 4 anos

PESQUISADORA: E por que seus filhos têm que saber falar português, na sua opinião?

JORDI: Raízes. Se não conhece de onde vem, nunca vai conseguir ir pra lugar nenhum. Tem que saber de onde vem, você é fruto não só dos seus pais. É fruto de gerações, de todas as famílias. Tem que

compreender a cultura pra entender as decisões que tomou a sua família pra você chegar onde chegou.

Assim, conhecer e poder usar a língua seria importante, no entendimento dos entrevistados, não apenas porque isso garante acesso a um recurso comunicativo, mas também, e principalmente, porque é algo que permite às crianças se identificarem com aspectos de brasilidade de sua história pessoal e familiar. Isso porque, como diria Mendes (2015, p. 87), “Mais do que um instrumento, a língua é um símbolo, um modo de identificação”.

Representações como as dos excertos 1 e 3, de que conhecer a LH permite se identificar com o país de origem dos pais e não a falar seria “uma pena”, foram reportadas anteriormente na pesquisa de Curdt-Cristiansen (2009) com progenitores chineses cujos filhos também frequentavam uma escola de LH no Quebec, no Canadá, de forma bastante semelhante:

Por que as crianças têm que aprender chinês? Parece algo tão natural, tipo, se as crianças são chinesas, se elas não aprenderem um pouco de chinês, será uma pena tão grande! – sra. Lin [...]

Só depois que você encontrar suas raízes você poderá se estabelecer num lugar, se identificar com a sua própria cultura [chinesa]. – sra. Zhou

(CURDT-CHRISTIANSEN, 2009, p. 365-366)

Tal paralelo sugere que essas representações não seriam exclusivas aos participantes deste estudo, mas podem ser comuns aos pais e mães engajados numa PL familiar que promova a transmissão de uma LH.

Cabe lembrar, no entanto, que embora os falantes de herança possam se identificar como brasileiros, apesar de morarem em Barcelona, ou como chineses, apesar de morarem em Montreal, tal identificação se dará por processos de construção de uma identidade plurilíngue. Por sua vez, a identidade plurilíngue traz suas especificidades, já que difere do paradigma do cidadão nacional monolíngue (JAFFE, 2012).

No caso da Catalunha, a constatação de que os filhos se identificam com aspectos da brasilidade, algo bastante fomentado e desejado por parte dos entrevistados – os pais promotores das PLs familiares para transmissão do PLH –, não significa que esta seja a única via para que as crianças construam suas identidades. Parece não ser preciso renunciar à identificação com outros grupos e referentes culturais que são parte de seu universo para acomodar a identidade de

herança trazida pelo PLH – aliás, o próprio fato de se falar uma LH já implica entender códigos culturais de mais de uma cultura (VAN DEUSEN-SCHOLL, 2003): a de herança, que passou por deslocamentos geográficos, coexiste num mesmo espaço que outra(s) cultura(s) majoritária(s), e, por conta disso, os falantes de LH se encaixam no que seriam os sujeitos híbridos e pós-modernos descritos por autores como Burke (2003), García Canclini (2013) ou Hall (2011).

Essa conciliação de identidades pelos falantes de herança pode ser observada neste episódio relatado por Camila: nele, a filha utiliza o castelhano para interagir com outras crianças, porém marca seu pertencimento e identificação com a família ao se apresentar como falante das línguas do pai e da mãe:

EXCERTO 4 – Camila, mãe de Dora, 7 anos, e Luís, 3 anos

A Dora, quando ela ia no parque, que ela tava começando a falar, ela se aproximava de uma criança e falava assim: “Hola. Mi madre es

brasileña y my padre es francés.” [“Oi. Minha mãe é brasileira e meu

pai é francês”] [risos] “Y yo hablo portugués. Puedo hablar contigo

también” [“E eu falo português. Eu posso falar com você também”] e aí ela começava a relação.

Note-se que, nessa representação, para Dora, o português coexiste com o francês e com o castelhano e com seus “modos de identificação” – sendo que a identificação com o grupo de falantes de português não se dá a partir de um referente do cidadão nacional monolíngue, ou seja, do brasileiro monolíngue residente no Brasil, espaço em que o português é língua majoritária.

Assim, embora em alguns momentos os participantes declarem de forma taxativa que os filhos são brasileiros, ou seja, que os identificam como tal, sendo que nos quatro excertos anteriores essa identificação aparece vinculada à questão linguística, em outros os discursos dessas famílias revelam claramente que a brasilidade entra como uma parte da identidade que essas crianças poderão construir. Por exemplo: