• Nenhum resultado encontrado

DEMOCRACIA TRANSNACIONAL E INTEGRAÇÃO REGIONAL:

1. A parábola da democracia liberal

No curso da longa história da noção de democracia no Ocidente podemos encontrar diversas vertentes suas que a colocam como um dos conceitos mais debatidos no âmbito das ciências sociais. Na compreensão genérica de democracia direta da Antiguidade grega encontravam-se incluídas todas as demais formas específicas de implementação daquele conceito em cada polis, o que demonstra não ser a mesma compreensão de democracia direta (ou “pura”, como dizem alguns autores) o modelo padrão aplicado uniformente na Antiga Grécia. Da mesma forma, a democracia liberal assumiu condição central no pensamento político ocidental desde o início da Modernidade, constituindo-se em grande gênero dentro do qual muitas das diversas concepções de democracia passaram a se enquadrar. Isto posto, tomaremos como nosso ponto de partida teórico o fato de ter a democracia liberal exercido, desde o início da Modernidade, a função de gênero onde grande parte das democracias ocidentais foram – e continuam sendo, em muitos casos – espécies.

Elementos essenciais do gênero democracia liberal são: (1) vinculação ao liberalismo político2, (2) existência do sufrágio universal, (3) adoção da regra da maioria como standard

1

Doutor em Teoria e História do Direito pela Università degli Studi di Firenze (IT), com estágio de pesquisa doutoral junto à Faculdade de Filosofia da Université Paris Descartes-Sorbonne. Estágio pós-doutoral em Direito Constitucional junto à Università degli Studi di Firenze. Mestre em Direito do Estado pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC/RS). Professor do Programa de Pós-Graduação em Direito (Mestrado/Doutorado) da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS). Editor-chefe da RECHTD – Revista de Estudos Constitucionais, Hermenêutica e Teoria do Direito. Professor visitante na Universidad de la

República de Uruguay. Advogado e consultor jurídico. Contato: andersonvteixeira@hotmail.com Outros textos

em: www.andersonteixeira.com 2

Entenda-se aqui liberalismo politico como uma teoria política abrangente, inclusiva e que parte de princípios procedimentais, como a igualdade e a liberdade, para orientar os sistemas políticos que a ele se vincularem. Por se tratar de um conceito profundamente ligado ao pensamento de Rawls, veja-se a sua definição: “I think of political liberalism as a doctrine that falls under the category of the political. It works entirely within that domain and does not rely on anything outside it. The more familiar view of political philosophy is that its

nas eleições e (4) presença do Estado moderno como elemento definidor de território e povo. Quanto à vinculação ao liberalismo político, dá-se de modo limitado e concentrado no princípio da igualdade e do respeito ao pluralismo; não estabelece uma agenda política, apenas estipula princípios formais a serem seguidos. Quanto à existência do sufrágio universal, trata-se de princípio elementar da ideia de democracia liberal, pois, caso contrário, poderia inclusive assumir outra forma de regime, como autocracias, aristocracias ou totalitarismos ditatoriais. Quanto à regra da maioria, constitui-se em referência padrão para a tomada de decisão nos processos democráticos; pode ser excetuada por referências baseadas na proporcionalidade, por exemplo. A própria existência da minoria serve para afirmar imediatamente a maioria e, em última instância, todo o sistema, tanto que Robert Dahl chega a afirmar que por democracia se entende um “sistema de decisão política no qual os líderes correspondem, em certa medida, às preferências dos não-líderes.”3

Quanto à presença do Estado como elemento definidor de território e povo, a democracia liberal encontrou já no Absolutismo Monárquico da baixa Idade Média e início da Modernidade a delimitação do espaço de decisão política dentro dos confins do Estado, reduzindo a difusão do poder em células autônomas (feudos, ducados, principados etc), como ocorria na alta Idade Média, sobretudo após a cisão do Império Romano no séc. V; a concentração de poder e a verticalidade política que o Absolutismo propunha não significavam uma mera centralização no cume da escala de poder: aumentou também a dependência do poder estatal em relação às formas cooperativas pelas quais se desenvolviam as relações sociais, o que representou um forte impulso ao surgimento e aprimoramento de novas formas de se exercer e limitar o poder estatal.4 Ainda como elemento essencial da noção de democracia liberal devemos destacar a existência de oposição pública, regularmente

concepts, principles and ideals, and other elements are presented as consequences of comprehensive doctrines, religious, metaphysical, and moral. By contrast, political philosophy, as understood in political liberalism, consists largely of different political conceptions of right and justice viewed asfteestanding. So while political liberalism is of course liberal, some political conceptions of right and justice belonging to political philosophy in this sense may be conservative or radical; conceptions of the divine right of kings, or even of dictatorship, may also belong to it. Although in the last two cases the corresponding regimes would lack the historical, religious, and philosophical justifications with which we are acquainted, they could have freestanding conceptions of political right and justice, however implausible, and so fall within political philosophy.” John Rawls, “Political Liberalism: Reply to Habermas”, in The Journal of Philosophy, Vol. 92, n. 3, 1995, p. 133. 3

Robert Dahl, “Hierarchy, Democracy and Bargaining in Politics and Economics”, in Heinz Eulau et al (org.),

Political Behavior, Glencoe, Free Press, 1956, p. 7. 4

constituída e reconhecida pelo regime. Embora Robert Dahl coloque este elemento como característica-chave do conceito em tela5, entendemos que a vinculação ao liberalismo político é um pressuposto teórico que engloba, por natureza, a necessidade de existir oposição pública, pois o liberalismo está assentado no princípio da igualdade, o qual determina que “cada pessoa deve ter um igual direito ao mais extensivo quadro de iguais liberdades básicas compatível com um quadro similar de liberdades para os outros.”6

As sociedades democráticas, tanto nos modelos da Antiguidade grega quanto nos modelos representativos pós-Rousseau ou deliberativos pós-Mill, são notadamente marcadas por amplos processos de decisão e consulta pública mediante os quais o povo toma conhecimento das razões que fundamentam as decisões políticas e delas participam, direta ou indiretamente.7 Na democracia liberal essa característica é reforçada pela necessidade de tratamento igualitário dos indivíduos e grupos sociais, bem como pela existência de uma organização estatal onde o exercício do poder ocorra alternada e eletivamente. A democracia se encontra tão vinculada ao paradigma estatal que podemos ver Dahl afirmar que “instituições democráticas estão menos propensas a se desenvolver em um país sujeito a intervenções por outro país hostil ao governo democrático naquele país.”8

O referido autor estadunidense coloca esta – a ausência de controle externo hostil à democracia – como uma das três condições essenciais para a democracia.9

Após surgir como limitação ou alternativa ao Absolutismo Monárquico da baixa Idade Média, a democracia liberal atingiu durante o século XX, sobretudo na segunda metade deste, o seu ápice evolutivo: a queda dos regimes totalitários, os processos de democratização ocorridos, em especial, na Europa continental e nas Américas, transformaram a democracia liberal em regime político e, mais do que isso, em bem fundamental das sociedades ocidentais. Mesmo durante a Guerra Fria e a bipolarização política do mundo, tal regime espraiava-se, mediante as suas diversas variantes (democracia representativa, democracia deliberativa, democracia participativa etc), por aqueles países que compunham o eixo

5

Registre-se que Dahl amplia a toda e qualquer noção de democracia a necessidade de existir oposição pública. Cf. Robert Dahl, Polyarchy. Participation and opposition, New Haven/Londres, Yale University Press, 1971, pp. 1-16.

6

John Rawls, A Theory of Justice, Cambridge, Harvard University Press, 2003, p. 53. 7

Cf. Graeme Duncan e Steven Lukes, “The New Democracy”, in Political Studies, Vol. XI, n. 2, 1963, p. 158. 8

Robert A. Dahl, On Democracy, New Haven-London, Yale University Press, 1998, p. 147. 9

As outras duas são: “(1) control of military and police by elected officials; (2) democratic beliefs and political culture.” Ibidem.

capitalista, transformando-se em antítese ao modelo de democracia direta apresentado em diversos países pertencentes ao eixo comunista.10 Com a dissolução da União Soviética o efeito imediato foi a universalização da noção de democracia (de matriz liberal) como uma sorte de “valor-fonte” da política, um bem supremo a ser buscado por toda a Humanidade.

A queda da União Soviética e o consequente fim da bipolarização política produziu, inclusive, conclusões exageradas e míopes, como a de Francis Fukuyama, o qual chamou este processo histórico de “fim da História”11

, ou seja, seria o triunfo derradeiro da democracia liberal sobre todos os demais sistemas e ideologias que com ela já ousaram concorrer. Todavia, diversamente do que se podia pensar, ao invés de produzir um “fim”, vemos uma série de fatores corroborados pelos diversos processos de globalização que se consolidaram nas últimas décadas do século passado e no início do atual século marcar o “início” de uma nova história das relações internacionais, da política, do direito internacional e da própria noção de democracia. É a globalização mudando o que tradicionalmente nos acostumamos a entender por democracia.