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APONTAMENTOS SOBRE O CONCEITO DE GOVERNANÇA E SUA ADOÇÃO

3. Governança na União Europeia

Muito além de um fenômeno com características semelhantes ao descrito nas páginas anteriores deste trabalho, a Governança na União Europeia, ou, como é denominado por muitos, apenas Governança Europeia, consiste em fenômeno com características específicas, que não se adstringem à ideia geral do termo, mesmo que, importante remarcar, mantenha em grande medida os contornos já explanados.

Foi sobretudo no final da década de 1990 que o processo de integração começou a inspirar desconfiança nos habitantes dos Estados membros (Alfonso, 2004), especialmente ao aprofundamento do processo de integração europeu com a criação da união econômica e monetária e a absorção de um número cada vez maior de competências estatais pela UE. A “crise de confiança da cidadania” só será efetivamente combatida a partir de uma pro- atividade da Comissão Europeia, órgão executivo do bloco, que passará a atuar na reforma de três frentes principais: no fomento ao seu papel de “Administração Comunitária”; na arquitetura institucional da integração; na introdução e desenvolvimento de métodos de governança (Alfonso, 2004).

A necessidade de tamanha reestruturação dá-se principalmente porque a integração europeia não se traduz apenas em um mercado comum. Trata-se de verdadeira regulação política:

(...) Essa lição foi aprendida na década passada. Desde Maastricht, as competências da Comunidade aumentam, cobrindo muitos aspectos da vida cotidiana. É evidente que a construção de políticas europeias tem um

impacto em políticas substanciais.13 (Kohler-Koch, 1998, p. 1)

Diante da incursão da política da União Europeia em searas anteriormente intocadas, a questão que emergiu de imediato foi: “A integração europeia trará uma mudança na governança?” (Kohler-Koch, 1998, p. 1). Ao mesmo tempo em que a ignorância acerca das reais consequências da adoção de tal modelo integracional aumentava, principalmente quando da ocorrência de efeitos “não desejados”, os órgãos e instituições buscavam (e ainda buscam) aprofundar os mecanismos de harmonização.

Importante ressaltar que a União Europeia representa um paradigma de sistema político atípico, diferente de todo tipo de organização interestatal anteriormente concebida:

É parte da sabedoria comum que a Comunidade Europeia é um regime político ‘sui generis’, um sistema político que muito mais que uma

organização internacional e ainda não se encaixa na noção de Estado federado. A integração europeia nos leva, de fato, ‘Além do Estado Nação’,

em dois diferentes aspectos: 1. ampliando o campo da política para além das fronteiras dos outrora Estados Nações soberanos; 2. construindo um sistema político que não é e, no futuro previsível, não se tornará um Estado.14 (grifo nosso) (Kohler-Koch, 1998, p. 2)

A especificidade institucional do bloco europeu faz com que a tomada de decisões em altas instâncias se torne um ato particularmente cheio de nuances e imbricações. E isso se aplica também à trama legal do bloco. Na verdade, restam poucas dúvidas de que o arranjo institucional e o quadro normativo que dá suporte às decisões tomadas a nível supranacional estejam intrinsicamente ligados aos resultados propiciados pela adoção de determinados modelos de governança na União (Kohler-Koch, 1998).

Nesse contexto, uma vez mais, a governança aparece como instrumento hábil a fomentar práticas de democracia participativa. Porém, pode ser que dessa forma não o seja sempre, visto que:

Os arquitetos da União estão presos no dilema democrático da integração supranacional sem um plano disponível para sair dele. Quanto mais

salientes os problemas a serem decididos, maior a necessidade para mantê-los sob o controle do Estado Membro, e mais enfáticas as

13

No original: (...) This lesson has been learned in the last decade. Since Maastricht, Community competences have been enlarged, covering many aspects of daily life. It is evident that European policy-making has an impact substantive policies.

14

No original: It is part of the conventional wisdom that the European Community is a ‘sui generis’ polity, a political system which is far more than an international organisation and yet does not fit the notion of a federal state. European integration has, indeed, taken us ‘Beyond the Nation State’ in two different ways: 1. by extending the realm of the political beyond the borders of the once sovereign nation states; 2. by building up a political system which is not, in the foreseeable future, will not become a state

demandas por controle democrático15 (grifo nosso) (Kohler-Koch, 1998, p. 5)

Explica-se: quanto maiores quantitativa e qualitativamente os problemas a serem resolvidos pelas instituições da União Europeia, crescente também a necessidade de os Estados os identificarem e auxiliarem na busca de soluções. Ademais, a imprescindibilidade do controle democrático, e portanto meios de garantia de intragovernança, cresce à medida que a complexidade das questões aumenta.

Por outro lado, a legitimidade da governança europeia resta, antes e mais importante que qualquer outro fator, na “aceitação disseminada de que a construção de políticas europeias não é apenas um dever intergovernamental” (Kohler-Koch, 1998, p. 5)16. É certo que, assim como na governança global e na governança local, o paradigma europeu tem uma multiplicidade de atores na sua realização, o que o torna ainda mais lídimo, principalmente pelo alcance, por meio da maior participação e controle, dos reais objetivos dos canais de governança:

A atitude permissiva dos governos e a capacidade de resposta dos atores sociais se baseiam no entendimento comum (...) de que a união de representação funcional, regulação tecnocrata, e deliberação institucionalizada aumentarão a legitimidade da governança europeia.17 (Kohler-Koch, 1998, p. 5-6)

A governança na União Europeia, contudo, segue com um extenso rol de questionamentos bastante relevantes. Um deles se traduz num aparente paradoxo: modelos de governança construídos para regimes políticos plurais podem subjugar a representação política determinada usualmente pelo voto de cada cidadão. Em termos precisos:

Em sistemas de governança com processos plurais de construção política como os Estados Unidos mas também a UE (...), o problema para a legitimidade democrática levantado por consultas de interesse ‘com o povo’ é que estas podem interferir na participação política ‘pelo povo’ ou na representação cidadã ‘do povo’ atendendo demandas de interesse antes dos

15

No original: The architects of the Union are stuck in the democratic dilemma of supranational integration with no blueprint available to get out of it. The more salient the issues to be decided, the greater the need to keep them under member state control, and the more emphatic the demands for democratic accountability. 16

No original: (...) a widespread acceptance that European policy-making is not just an intergovernamental affair.

17

No original: The permissive atitude of governments and the responsiveness of societal actors rests on a shared (...) understading that a mix of functional representation, technocratic regulation, and institutionalised deliberation will increase the legitimacy of European governance.

desejos e bem-estar dos votantes.18 (Schmidt, 2004, p. 989)

A questão consiste essencialmente em saber se há, e em que medida, certa supervalorização dos interesses de quem os procura diretamente em detrimento daqueles pleiteados pelos representantes eleitos. No âmbito da União Europeia, trata-se de perquirir se os membros do Parlamento Europeu não têm seus pleitos depreciados em decorrência de maior capacidade de pressão dos atores da governança no bloco.

E tal “problema de legitimidade democrática” ganha especial contorno ao se constatar que os parâmetros de consulta direta com indivíduos, organizados em grupos ou não, não seguem ditames estabelecidos pelo povo. Ou seja, a forma pela qual os instrumentos de governança europeia são utilizados (em que questões, para decidir quais pleitos, com que objetivos) não passam pelo crivo popular. Exatamente por isso “a complexidade absoluta de quaisquer dessas consultas pode levar a um tipo de opacidade no que diz respeito a quem é responsável pelas decisões e quem se beneficia (delas)” (Schmidt, 2004, p. 990).19

À obscuridade de interesses que podem estar por detrás de métodos de governança na União Europeia, a solução vem sendo, ao que parece, buscada precipuamente pela Comissão. Tal instituição age no sentido de mobilizar os cidadãos dos Estados Membros para tomarem conhecimento e atuarem junto àqueles que possuem voz nas instituições do bloco. Trata-se de:

(...) mobilizar cidadãos e mesmo criar grass roots* em grupos de interesses (e.g., de mulheres e consumidores) no nível da UE para contrabalancear os mais poderosos e já presentes grupos de negócios juntamente com um aumento em transparência.20 (Schmidt, 2004, p. 991)

Têm-se ainda como problemas de legitimidade das decisões oriundas, ou que pelo menos delas sofrem influência, das instâncias de governança na União Europeia: falta de transparência na construção decisória, principalmente em decorrência do grande número de reuniões de especialistas previamente selecionados pela Comissão; controle, vez que tais

18

No original: In governance systems with pluralist policymaking processes such as United States but also the EU (...), the problem for democratic legitimacy raised by interest consultation ‘with the people’ is that it can interfere with political participation ‘by the people’ or citizen representation ‘of the people’ by catering to the demands of interests rather than the wishes and welfare of voters.

19

No original: (...) the sheer complexity of any such consultation system can lead to a kind of opaqueness with

regard to who is reponsible for decisions and who benefits (...) 20

No original: (...) to mobilise citizens and even to create ‘grass roots’ interest groups (e.g., of women and consumers) at the EU level to counterbalance more powerful and already present business groups along with an increase in transparency.

experts, e portanto suas crenças e linhas teórico-científicas, geralmente não passam pelo crivo de nenhum órgão ou instituição do bloco; e acesso, pois os grupos de controle e participação das políticas e decisões do bloco têm sua criação e funcionamento ainda determinados pela Comissão.

Nesta complexa perspectiva resulta que: “(...) governança com algumas pessoas e possivelmente não para todas as pessoas significa compensar a falta de governo pelo e do povo”.21 (grifo nosso) (Schmidt, 2004, p. 991)

4. O Livro Branco como instrumento para a efetivação da governança na União