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A democracia frente à pressão dos processos de mundialização das relações sociais

DEMOCRACIA TRANSNACIONAL E INTEGRAÇÃO REGIONAL:

2. A democracia frente à pressão dos processos de mundialização das relações sociais

Por se tratar de um fenômeno inovador, capaz de produzir uma aproximação intercultural nunca antes vista no curso da história da Humanidade, a globalização tornou-se um dos conceitos mais problemáticos e discutidos, tanto na economia, na ciência política, no direito quanto no âmbito político, devido a forte tendência de ideologização que ocorre em torno dos seus caracteres principais. A democracia liberal, ao limitar a sua dimensão cognitiva aos limites territoriais e de cidadania estabelecidos pelo Estado nacional, sofreu profundas influências dos diversos processos de globalização, não sendo possível destacar apenas um dos âmbitos deste fênomeno como aquele de maior relevância para essa desconstrução da noção de democracia liberal. Mais do que influenciar, a globalização, descrita enquanto processos econômicos, tecnológicos, políticos e culturais, coloca em

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A associação entre democracia direta e comunismo (e o socialismo) é no sentido de participação contínua e direta do povo nos processos decisórios mediados pelas coorporações de ofício, associações e outras formas de mediação que os regimes comunistas utilizavam para tentar ampliar sua legitimidade política e capacidade de participação da população. Para maiores informações, veja-se David Held, Models of Democracy, cit., pp. 96- 122.

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discussão a tradicional compreensão da democracia liberal, bem como as habilidades funcionais das suas instituições e procedimentos internos.12

Um primeiro aspecto é, certamente, o tecnológico-cultural. A informatização e virtualização das relações sociais e econômicas, ocorrida nas últimas duas décadas do século passado, permitiu que a “sociedade global” fosse finalmente percebida – ainda que de modo incipiente e controverso – no mundo: o fato de que qualquer indivíduo, em qualquer lugar do mundo, possa entrar em contato e estabelecer relações interpessoais com qualquer outro indivíduo do mundo, estabelece um ponto de referência para o real surgimento da globalização. Anthony Giddens, tendo definido a globalização como um processo de intensificação, em nível global, das relações sociais entre localidades situadas a milhares de milhas de distâncias, afirma que este é “um processo dialético porque tais acontecimentos locais podem se deslocar em uma direção anversa às relações muito distanciadas que os modelam.” 13

As aproximações entre culturas distantes geograficamente tornaram-se possíveis a partir do momento em que deixaram de existir barreiras físicas para a interação multicultural e que o atraso na comunicação entre elas foi reduzido a meros segundo. A interatividade em real time oportunizada a todos aqueles agentes que desejassem – e pudessem – se conectar fisicamente à rede mundial de computadores representou o momento derradeiro no surgimento da globalização: a possibilidade de interligar o mundo todo em um ambiente virtual onde distâncias geográficas são irrelevantes.

No entanto, se de um lado ocorre a aceleração da dinâmica das relações sociais em virtude da interatividade em real time oferecida pela Internet, desenvolve-se com igual vigor aquilo que Danilo Zolo denominou de “muro de Berlim imaterial”14

, isto é, uma barreira virtual que cria o mundo dos globalizados e o dos excluídos digitais. Se os processos de democratização na era digital dependem claramente de recursos físicos e tecnológicos para que possam ocorrer, talvez o maior desafio criado pela globalização seja, atualmente, o de permitir que todo esse imenso contingente de excluídos digitais possa se conectar à Internet e vir a ter a oportunidade de descobrir as incontáveis oportunidades oferecidas pela recém- nascida “sociedade global-digital”.

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Christoph Görg and Joachim Hirsch, “Is International Democracy Possible?”, in Review of International

Political Economy, Vol. 5, n. 4, 1998, p. 587. 13

Anthony Giddens, The Consequences of Modernity, Stanford, Stanford University Press, 1991, p. 64. 14

Um outro aspecto decisivo para a redefinição da noção de democracia decorre da transnacionalização de muitas – e cada vez mais importantes – decisões políticas. Em outras oportunidades sustentamos que a relativização da soberania estatal, tacitamente iniciada no século XX, sobretudo com a criação da Liga das Nações e, em seguida, da Organização das Nações Unidas, agravou-se progressivamente nas últimas décadas do século passado, de modo que, atualmente, tem se constituído por uma série de processos que buscam remover determinadas prerrogativas que historicamente caracterizaram o Estado moderno, como a autonomia jurisdicional, o controle dos mercados nacionais e a auto-suficiência para estabelecer políticas públicas.15

Quanto à autonomia jurisdicional, a chamada “expansão global do poder judicial” (global expansion of judicial power) – uma analogia a um fenômeno notadamente estadunidense, a “expansão do poder judicial” (expansion of judicial power), em que o poder judiciário interfere diretamente frente ao executivo, condicionando a criação de políticas publicas – foi apontada por Neal Tate e Torbjörn Vallinder, em meados dos anos 90 do século XX, como uma tendência a ser importada pelos demais países do mundo e, por último, incorporada pelo direito internacional, pois a democratização na América Latina, Ásia e África, somada ao desaparecimento da URSS, permitem que os Estados Unidos se tornem “o lar da judicialização da política” (the home of judicialization of politics).16

Segundo os referidos autores, trata-se de um fenômeno real que está mudando e mudará mais ainda a política global e o modo como esta será pensada no futuro.17 Com a evolução dos atuais e a criação de novos tribunais internacionais, incluindo os de arbitragem, vemos que as instâncias jurisdicionais supranacionais estão cada vez mais presentes, desempenhando o papel que outrora competia às instâncias judiciais nacionais. Quanto ao controle dos mercados nacionais, as exigências da lex mercatoria18 estão ampliando progressivamente as suas

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Ver os nossos “Globalização, soberania relativizada e desconstitucionalização do direito”, in Anderson V. Teixeira e Luís Antônio Longo (orgs.), A Constitucionalização do Direito, Porto Alegre, SAFE, 2008 e Teoria

Pluriversalista del Diritto Internazionale, Roma, Aracne Editrice, 2010. 16

Neal Tate; Torbjörn Vallinder (orgs.), The Global Expansion of Judicial Power, Nova Iorque, New York University Press, 1995, p. 02.

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Neal Tate; Torbjörn Vallinder (orgs.), op. cit., p. 515. 18

“A lex mercatoria é um tipo de direito que passou a ser consideravelmente institucionalizado, que responde ao fim de satisfazer as necessidades jurídicas do mercado, predispondo para os seus sujeitos seja de sempre novas modalidades de trocas contratuais, seja mesmo de modalidades de resoluções dos conflitos, que se insurgem ao longo da vida dos contratos. (...) é a mais completa forma de direito desterritorializado, precisamente porque corresponde a tentativa de abstrair o elemento territorial, tentando fazer se comunicarem

influências no contexto econômico internacional, terminando por gerar repercussões jurídicas com sanções similares as que são tradicionalmente aplicadas no âmbito da jurisdição nacional, como ocorre, por exemplo, com as decisões da Organização Mundial do Comércio, um dos órgãos mais prestigiados atualmente na esfera internacional.

A atividade regulatória e de fiscalização do cumprimento dos contratos parece ser o único resíduo de soberania econômica atribuída ao Estado, pois todo o resto já se encontra disperso em agentes que nenhuma natureza estatal possuem. O “Estado pedagogo” passou a ser o “Estado regulador”, o qual “não indica fins, mas estabelece regras e procedimentos e não exerce ele mesmo a atividade de execução, mas a confia à autoridade ou de regulação ou de adjudicação.”19

A recente crise econômica internacional expôs sem qualquer pudor a fragilidade que os processos decisórios nacionais e, por consequência, a soberania nacional, apresentam frente à economia internacional e ao predatório mercado de capitais especutativo. David Held destaca que o “projeto de globalização econômica deve ser vinculado aos manifestos princípios de justiça social; ele precisa enquadrar a atividade do mercado global.”20

Enfim, quanto à auto-suficiência para estabelecer políticas públicas, pode-se dizer que com a contínua transferência para a ordem internacional da competência decisória acerca de temas como guerra e paz, tutela ambiental, desenvolvimento econômico e repreensão ao crime internacional, o Estado nacional encontra-se cada vez mais compelido a exercer apenas funções periféricas e locais, isto é, desempenhando uma sorte de política de municipalidade, enquanto que as questões essenciais para a nação agora passaram a ser tratadas em nível internacional. A política interna ruma para se restringir a assuntos práticos altamente específicos em cada sociedade, constituindo-se em espaço adequado para discutir questões

sujeitos econômicos que pertencem a diversos países e a diversas ‘famílias’ e culturas jurídicas, em nome de um comum objetivo de troca que eles pretendem alcançar.” Maria Rosaria Ferrarese, Il diritto sconfinato, Roma- Bari, Laterza, 2006, pp. 79-80.

19

Sabino Cassese, La crisi dello Stato, Roma-Bari, Laterza, 2002, p. 40. 20

David Held, “O cosmopolistimo depois do 11 de setembro”, in Anderson V. Teixeira; Juarez Freitas (orgs.). Direito à democracia: ensaios transdisciplinares. São Paulo: Conceito Editorial, 2011, p. 57-69 ; e Id., Global

Covenant. The Social Democratic Alternative to the Washington Consensus, Cambridge, Polity Press, 2004,

trad. it. Governare la globalizzazione. Una alternativa democratica al mondo unipolare, Bologna, il Mulino, 2005, p. 40.

como aborto, eutanásia, direitos dos homossexuais, convivência multicultural, direitos dos animais, direitos das minorias e administração local do meio-ambiente.21

Um terceiro aspecto cabe também ser destacado: a pressão da opinião pública mundial e dos diversos grupos de pressão internacionais ou transnacionais – em especial, organizações não-governamentais, associações culturais ou religiosas, grandes redes de jornalismo com cobertura global, movimentos culturais erráticos etc.

Nesse sentido, assume grande significado a proposta teórica cosmopolistista de Jürgen Habermas, onde a compreensão da condição do indivíduo nas relações internacionais parece estar, propriamente, no seu sentido democrático que estabelece a superação das referências nacionais – de cidadania e de território – como um momento inicial capaz de realizar a inclusão dos indivíduos e povos que se encontram fora do debate político internacional. Ele afirma que inclusão “significa que a comunidade política se abre ao inserimento dos cidadãos de qualquer extração, sem que estes ‘diferentes’ devam se assemelhar a uma suposta uniformidade étnico-cultural.”22

Trata-se de uma construção multicultural, dinamizada pela incessante aparição de novas subculturas determinadas por novas relações interculturais, que “reforça uma tendência – já presente nas sociedades pós-industriais – que vai em direção à individualização dos sujeitos e à projeção de ‘identidades cosmopolitas’.”23

É precisamente na inserção desses novos atores na política internacional – seja diretamente ou mediante a representação dos seus interesses – que vemos ocorrer a passagem da democracia liberal para a transnacional.24

3. O espaço público e as novas esferas de decisão política: rumo à transnacionalização