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DEMOCRACIA TRANSNACIONAL E INTEGRAÇÃO REGIONAL:

C) Democracia cosmopolita.

Um dos mais destacados defensores da democracia cosmopolita é David Held. Ele destaca a necessidade de uma governança global estruturada em um modelo que represente uma continuidade da democracia liberal, pois esta se apresentaria como a melhor alternativa à decentralização do poder decisional que outrora residia exclusivamente no Estado nacional. Segundo Held, a global governance ganha relevo por ser um “sistema multi-estratificado, multidimensional e multi-ator”.31 O aspecto multi-estratificado se deve ao desenvolvimento e implementação de políticas públicas que, mesmo sendo próprias de agências supranacionais, regionais, estatais e até sub-estatais, possibilitam a formação de uma estrutura funcional que não considera o Estado como o centro referencial para a implementação de tais políticas; o caráter multidimensional é consequência da vinculação que se cria entre agência e matéria, permitindo que setores diversos, mas situados no mesmo nível de abrangência, tenham modelos de políticas públicas diferenciados em razão da matéria que devem abordar; e o aspecto multi-ator decorre do crescente número de agências, tanto públicas quanto privadas, que participam do desenvolvimento das agendas que definem as políticas públicas globais.32

O objetivo principal da democracia cosmopolita não é concentrar o poder decisório em alguma sorte de governo mundial, mas sim estabelecer um sistema eficaz que seja global e dividido em diversas estruturas internas com poderes decisórios específicos, ou seja, “um sistema de diversos e sobrepostos centros de poder moldados e delimitados por um direito democrático”.33

3.2. Democracia transnacional: utopia ou realidade?

Embora apresente pressimas teóricas que variam nas suas muitas concepções existentes, a progressiva transnacionalização dos processos decisórios parece ser uma realidade irrefutável. A democracia transnacional representa o mais novo momento de um longo percurso histórico na tradição liberal do Ocidente, ao invés de ser propriamente a antítese da noção de democracia representativa. Todavia, as visões cosmopolitas encontram

31

David Held, Global Covenant, cit., p. 112. 32

Ibidem. 33

dificuldades em provar como seria possível encontrar elementos culturais e históricos, como língua e valores sociais em comum, dentro daquilo que seria a sociedade global.34

A pressão feita pelos diversos processos de globalização nos obriga a pensar uma nova teoria da democracia. O estadunidense Bernard Berelson falava em repensar o “sistema de democracia”, em vez de seguir o rumo que as tradicionais teorias da democracia seguiam e continuar concentrando o foco no indivíduo.35 Participação e interesse costumavam ser vistos como requisitos do sistema democrático que deveriam naturalmente partir do cidadão, mas Berelson ressaltava, em meados do século passado, que algumas teorias e estudos “sugerem que um grande grupo de cidadãos menos interessados é desejável como uma ‘almofada’ (cushion) para absorver a intensa ação dos altamente motivados partidários. Isso devido ao fato de que os altamente interessados são na maioria os partidários e também os menos modificáveis.” 36

Se todos estivessem continua e altamente interessados, as possibilidades de uma solução gradual dos problemas políticos poderia restar comprometida pela excessiva vinculação às motivações políticas do grupo ao qual cada cidadão pertence.37

Nesse sentido, a democracia transnacional, além de seguir o padrão discursivo- procedimental da democracia liberal, oferece diversas esferas de interação política pelas quais os indivíduos podem manifestar os seus interesses altamente especializados e participar com maior ou menor intensidade das decisões que mais lhe interessarem. Dessa forma, o controle do poder ocorre de forma decentralizada e setorizada, afastando os perigos que a verticalização em estruturas supranacionais podem acarretar. John Dryzek é preciso ao afirmar que “controle decentralizado somente é democrático na medida que envolve em ação comunicativa indivíduos críticos e competentes, agindo como cidadãos e não como consumidores, inimigos ou autómatos. Democracia transnacional desta sorte não significa uma democracia eleitoral, e ela não está institucionalizada formalmente em organizações.”38

34

Nesse sentido, ver as crítícas pontuais de Will Kymlicka, “Citizenship in an era of globalization”, in Ian Shapiro and Casiano Hacker-Cordón (orgs.), Democracy’s Edges, Cambridge, Cambridge University Press, 2001, pp. 112-126; e Christoph Görg and Joachim Hirsch, “Is International Democracy Possible?”, cit., pp. 585-615.

35

Bernard Berelson, Paul Lazarsfeld, William McPhee (orgs.), Voting, Chicago, Chicago University Press, 1954, p. 312.

36

Bernard Berelson, “Democratic Theory and Public Opinion”, in The Public Opinion Quarterly, Vol. 16, n. 3, 1952, p. 317.

37

Cf. Ibidem. 38

John S. Dryzek, “Transnational Democracy in an Insecure World”, in International Political Science Review, Vol. 27, n. 2, 2006, p. 103.

Um refutação poderia ser feita nesse momento: uma decentralização decisional como essa não levaria à anarquia ou à burocratização das instâncias decisórias? Em primeiro lugar, o alto grau de complexização das relações sociais demanda pela primazia da especialidade no trato com as diversas matérias envolvidas. A verticalização decisional tem se mostrado, historicamente, a mais propensa à burocratização – basta recordar que os absolutismos monárquicos se tornaram famosos ao levar esse problema a todas pequenas práticas do cotidiano. Em segundo lugar, a primazia da especialidade nada tem em comum com anarquia ou algo do gênero, mas sim com a necessidade de responsabilização dos agentes políticos e técnicos envolvidos na administração e gestão das diversas matérias de interesse público. A responsabilidade aumenta na medida que o conhecimento técnico sobre a matéria em questão também aumenta. Em segundo lugar, todos os fautores dos modelos que propõem uma democracia transnacional verticalizada e centralizada nas mãos de organismos internacionais de pretensões universais parecem olvidar que a “ordem internacional sempre foi uma ordem estabelecida para e pelos Estados mais poderosos” (grifo nosso).39 Ressalte-se também que a mesma advertência feita por Dahl quanto à democracia em âmbito nacional pode ser aplicada para a transnacional: “durante severas e prolongadas crises as chances aumentam que a democracia seja derrubada por líderes autoritários que prometem o fim da crise por meio de vigorosos métodos ditatoriais. Os seus métodos, naturalmente, requerem que instituições e procedimentos democráticos básicos sejam postos de lado.”40

Em suma, dois requisitos surgem como essenciais para a democracia transnacional em contínua construção: (1) primazia do princípio da especialidade em relação às matérias envolvidas; e (2) decisões políticas centradas, primordialmente, nas esferas regionais. Essas estruturas regionais servem como instrumento para a promoção do debate político acerca de matérias que tocam a todos ou a grande parte dos países envolvidos, como ocorre, por exemplo, com a União Europeia – talvez o melhor exemplo de regionalização atualmente existente. Quanto às estruturas de governança especializadas, é crescente o número dessas estruturas, bem como a participação de agentes não-estatais nos seus processos decisórios. Veja-se o caso da Organização Internacional do Trabalho: participam de muitos dos seus

39

Anthony McGrew, “Models of Transnational Democracy”, cit., p. 507. 40

processos internos não apenas Estados, mas também organismos que representam as empresas e os trabalhadores.

Diversamente de um veículo de condução dos postulados neoliberais, a democracia transnacional ruma para se afirmar como uma continuidade da democracia liberal em escala global, oferecendo diversos canais, estruturas e instâncias decisórias em condições de promover a integração entre povos, países, culturas e indivíduos. Por ser consequência dos diversos processos de globalização, o seu maior desafio não é de ordem técnica, comunicativa ou procedimental, mas é sim impedir que se reproduza no seu interior a mesma hegemonia das grandes potências ocidentais atualmente existente nas relações internacionais.

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