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3 CONSTRUÇÃO DEMOCRATICA E SAÚDE NO BRASIL

3.3 A participação no contexto do debate democrático

O vocábulo participação tornou-se bastante freqüente na mídia e nos espaços públicos do Estado Moderno, geralmente associado a uma maior conscientização do cidadão na busca por novos espaços de discussão. Entretanto, o uso generalizado do conceito acabou fazendo perder o seu conteúdo axiológico e, atualmente, se apresenta como um conceito polissêmico, que possibilita várias interpretações.

Participação é uma das palavras mais utilizadas no vocabulário político, científico e popular da modernidade. Dependendo da época e da conjuntura histórica, ela aparece associada a outros termos, como democracia, representação, organização, conscientização, cidadania, solidariedade, exclusão, etc. (GOHN, 2003, p. 14).

Segundo Maria da Glória Gohn (2003) diversos teóricos se debruçaram na discussão do “sentido atribuído à participação”, podendo ser identificados três níveis de discussão: i) o conceitual; ii) o político e iii) o da prática social. O embate no campo conceitual “apresenta um alto grau de ambigüidade e varia segundo o paradigma teórico em que se fundamenta”. O segundo, devido ao cunho político, é associado a processos de democratização, “mas também pode ser utilizado como um discurso mistificador em busca da mera integração social de indivíduos, isolados em processos que objetivam reiterar os mecanismos de regulação e normatização da sociedade, resultando em políticas sociais de controle social”. No último nível, a participação assume o papel de instrumento viabilizador das conquistas sociais. “Tratam-se das ações concretas engendradas nas lutas, movimentos e organizações para realizar algum intento” (2003, p. 14). A discussão da participação será tratada nesse tópico em nível conceitual.

Para Demo (1988), participação é entendida como conquista, e não como concessão ou como algo preexistente. Segundo o autor, se a participação não vem como um processo de conquista, se estaria diante de uma participação tutelada pelo lado dominante, desprovido de qualquer caráter de autopromoção. Da mesma forma, “não

pode ser entendida como algo preexistente porque o espaço de participação não cai do

céu por descuido, nem é o passo primeiro” (p. 18). Ao contrário, observa-se ao longo da história, a organização das sociedades em dois lados polarizados – dominantes e dominados – onde não se vislumbra um espaço naturalmente destinado à participação.

A concretização da participação está intimamente ligada com a questão de poder, uma vez que participação é uma outra forma de poder.

Quem acredita em participação, estabelece uma disputa com o poder. Trata- se de reduzir a repressão e não de montar a quimera de um mundo naturalmente participativo. Assim, para a realização da participação, é preciso encarar o poder de frente, partir dele, e, então, abrir os espaços de participação, numa construção arduamente levantada, centímetro por centímetro, para que também não se recue nenhum centímetro (DEMO, 1988, p. 20).

Demo, ao afirmar que a participação é o eixo político central das políticas sociais, reconhece seu caráter instrumental, no sentido de ser um caminho para a obtenção de determinados fins. Essa concepção de participação como instrumento, como metodologia, segundo o autor, tem o escopo de evitar a “exasperação da

participação pela participação” (1998, p. 67), sem negar, entretanto, que a participação também é um fim em si mesmo.

Nesse argumento de participação enquanto metodologia, Demo estabelece um rol de objetivos visados pela participação:

a) autopromoção: no contexto da política social, significa a superação do

assistencialismo, e dos efeitos residualistas, compensatórios e emergenciais, através da autogestão ou da co-gestão da satisfação de suas necessidades pelos próprios destinatários da política;

b) realização da cidadania: através do reconhecimento de direitos e deveres,

no sentido de elaborar condições favoráveis ao surgimento do cidadão consciente e participante, que ao vislumbrar injustiças, sabe propor estratégias de reação com vistas ao alcance de um Estado harmônico;

c) implementação de regras democráticas de jogo: é a participação como

exercício democrático, com o objetivo de formar verdadeiros cidadãos, que discutam e participem ativamente do processo político. Demo (1988, p. 71) afirma que “é tarefa de extrema criatividade formar autênticos representantes da comunidade e mantê-los como tais”.

d) controle do poder: inicialmente destaca que esse controle deve ser feito

pela base, e não pelo próprio poder através de leis. Entretanto, coloca a fragilidade desse controle ser feito exclusivamente pelo voto, e afirma que são necessárias outras formas mais efetivas de controle, onde destaca a rede de organização da sociedade civil;

e) controle da burocracia: a participação através da sociedade organizada

visa combater a cultura do mau serviço à comunidade e outros vícios diretamente ligados à burocracia pública, através da conscientização de que os serviços públicos, e em conseqüência, a burocracia pública é mantida com o trabalho dessa sociedade, e que por isso tem direito - e vai exigi-lo – ao atendimento de qualidade;

f) negociação: é prática essencial numa sociedade democrática, onde conflitos

e divergências devem ser constantemente negociados, significando até mesmo a possibilidade de se rever pactos sociais. “Negociação significa o tratamento de divergências sobre o pressuposto de oportunidades equalizadas” e o que se pretende com a negociação dessas divergências é a “acomodação delas em patamares que permitam a convivência e a realização relativa dos interesses específicos” (DEMO, 1988, p. 77);

g) cultura democrática: o autor elege esse objetivo, ao lado do controle de

poder, como os pontos principais que devem ser alcançados pela participação. Segundo ele, “cultura democrática significa democracia como cultura de um povo, ou seja, como marca característica de sua organização e sobrevivência. Passaria a ser algo tão vital, como o oxigênio para a vida” (DEMO, 1988, p. 79).

Nesse contexto de participação como um processo de conquista travado pela sociedade civil frente ao Estado, temos ainda o conceito de participação cidadã, forjado por Elenaldo Teixeira, em sua obra O local e o global: limites e desafios da

participação cidadã (2001). Nela, o autor defende um papel mais ativo para a sociedade

civil, face às novas relações entre Estado, mercado e a própria sociedade. Esse conceito será utilizado como referência teórica desta dissertação.

Participação cidadã: processo complexo e contraditório entre sociedade civil, Estado e mercado, em que os papéis se redefinem pelo fortalecimento dessa sociedade civil mediante a atuação organizada dos indivíduos, grupos e associações. Esse fortalecimento dá-se, por um lado, com a assunção de deveres e responsabilidades políticas específicas e, por outro, com a criação e exercício de direitos. Implica também o controle social do Estado e do mercado, segundo parâmetros definidos e negociados nos espaços públicos pelos diversos atores sociais e políticos (TEIXEIRA, 2001, p. 30)

A participação cidadã defendida por Teixeira concebe uma sociedade civil forte e autônoma, mas em constante relação com os demais atores – Estado e mercado -, na busca por uma melhor dinâmica política, que se dará com a extinção de privilégios corporativistas e clientelistas. Para tanto, o autor defende uma necessária articulação entre os mecanismos institucionais já existentes em nosso sistema representativo e os mecanismos de participação semi-direta criados pelas organizações e movimentos sociais, ao longo do processo democrático, ao mesmo tempo em que reconhece ser esse

também “o grande desafio da teoria política econômica” (idem, p. 31). Essa concepção coaduna-se com a abordagem de Benevides (1994), que também já defendia essa articulação como forma de aperfeiçoamento do sistema representativo.

Teixeira estabelece também as diferenças entre o conceito de participação cidadã e outras concepções. Primeiramente ele afirma que a participação cidadã não pode ser confundida com a participação social e comunitária, uma vez que aquela não se resume “a mera prestação de serviços à comunidade ou à sua organização isolada” (2001, p. 31), nem se trata de “simples participação em grupos ou associações para defesa de interesses específicos ou expressão de identidade” (2001, p. 31). Também se difere da participação popular, - expressão freqüentemente associada às ações reivindicativas desenvolvidas por movimentos sociais, ou ainda expressão vinculada aos governos e organismos internacionais, como estratégia para legitimar esses mesmos governos e seus programas, com o claro objetivo de manipulação ideológica, pois o objetivo maior é interagir com as instituições já existentes na construção de um novo Estado, a partir de um debate público entre os diversos atores.

O autor esclarece ainda que sua construção teórica se propõe a requalificar o conceito de participação que se apresenta bastante desvirtuado, estabelecendo assim um conceito mais preciso.

Dessa forma, para maior precisão do conceito, propõe-se, como sugere Telles (1994:52), “requalificar a participação popular nos termos de uma participação cidadã que interfere, interage e influencia na construção de um senso de ordem pública regida pelos critérios da equidade e justiça” (TEIXEIRA, 2001, p. 32).

Teixeira também assevera que para alcançar a participação cidadã é necessário congregar esforços para contemplar dois elementos contraditórios presentes na conjuntura política: “o fazer ou tomar parte” e a “cidadania” (2001, p. 32). O primeiro elemento se refere à participação no processo político-social de diversos indivíduos, grupos e organizações, com valores e interesses que poderiam ser identificados como demandas pessoais, mas que atuam num locus de heterogeneidade; já o segundo elemento remete ao sentido cívico de cidadania, “enfatizando as dimensões de universalidade, generalidade, igualdade de direitos, responsabilidades e deveres” (idem,

p. 32), o que acarretaria o comportamento solidário dos indivíduos, e o reconhecimento da existência de grupos excluídos que precisam ter seus direitos assegurados.

Vale ressaltar que um dos pontos mais conflitantes, diz respeito à participação no processo de tomada de decisão, não só porque exige uma reconfiguração do papel do cidadão, não mais restrito à participação via processo eleitoral, mas este se apresenta de uma forma mais ativa, o que significa uma desconstrução da concepção homogênea da via representativa como único modelo capaz de conduzir à estabilidade do sistema democrático. Também, porque consiste no desafio de conjugar mecanismos de democracia direta e semidireta, pois o objetivo da participação cidadã não é negar o papel do Estado ou de suas instituições, e sim redefini-los.

Da mesma forma, o autor destaca a dimensão educativa da participação, bem como o papel de controle social e político do Estado pela sociedade civil. Essas dimensões nos remetem a idéia de que a participação é capaz de construir um novo cidadão, e, por conseguinte, uma nova sociedade civil, mais forte, mais responsável e mais ciente de sua força transformadora, resgatando assim a cidadania exercida no período da história antiga.

3.4 A heterogeneidade da sociedade civil e seu papel no processo de construção