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A participação ontológica na revelação do mistério

A ontologia não se limita a campos e áreas especificas da realidade, motivada pela sua preocupação ela suscita a pergunta pelo ser: Que significa ser? Por que há ser e não não-

ser? Em que estrutura todos os seres participam?58 Para Tillich a ontologia é uma análise

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Cf. JOSGRILBERG, R. S. In: Paul Tillich trinta anos depois. Revista Estudos da Religião, ano X, nº 10. Edi- tora do IMS. São Bernardo do Campo, SP 1995, p, 57.

57

Cf. TILLICH, 2005, p. 140.

58

Cf. Roos, Jonas. In: MUELLER, Enio R. Fronteiras e interfaces: o pensamento de Paull Tillch em perspectiva interdisciplinar. São Leopoldo: Sinodal, 2005, p. 149.

daquelas estruturas do ser com as quais o ser humano se depara em todo encontro com a realidade59, ela concentra seus esforços na:

Tentativa de responder às perguntas mais gerais acerca da natureza das coisas e sobre a existência humana. As perguntas mais gerais são aquelas que não se relacionam com um determinado campo da realidade, como natureza ou história, mas com o ser como tal, como ele serve de base para todas as áreas daquilo que é.60

Na revelação do mistério o ser humano receptor da revelação a recebe por meio de percepções que trazem à tona a totalidade da existência humana expressando a realidade por meio da cognição.61 A realidade como um todo é apenas parte da realidade; é a estrutura que torna a realidade um todo e, deste modo, um objeto potencial de conhecimento. Investigar a natureza da realidade é investigar aquelas estruturas, categorias e conceitos que são pressupostos no encontro cognitivo com cada setor da realidade. “Não pode ser diferente. Já que o conhecer é um ato que participa do ser ou, mais precisamente, de uma ‘relação ôntica’, toda análise do ato de conhecer deve se referir a uma interpretação do ser”62.

A revelação do mistério ocorre sob as condições da existência e a sua manifestação visa à cognição da razão humana. Por isso, Tillich afirma que na elaboração do conceito de revelação a teologia não deve produzir a sua própria epistemologia a partir de si mesma, antes ela deve se referir àquelas características da razão cognitiva que são relevantes para o caráter cognitivo da revelação. Essa ação teológica implica uma descrição detalhada dos conflitos da cognição existencial que pressuponha uma compreensão de sua estrutura ontológica, pois a tensão resultante dessa estrutura possibilita os conflitos existenciais e a conduz à pergunta pela revelação.63

O que torna a ontologia possível é o fato de existirem conceitos que são menos universais que o ser, no entanto são mais universais do que qualquer conceito ôntico, que designa uma esfera de seres. Esses conceitos são identificados por Tillich em quatro níveis distintos.

O primeiro nível, de apreensão e configuração, pressupõe uma estrutura sujeito- objeto, uma estrutura eu-mundo como articulação básica do ser. O eu precede lógica e experimentalmente todas as demais estruturas. O segundo nível da análise ontológica se

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Cf. TILLICH, 2005, p. 37.

60

TILLICH, P. Dinâmica da fé. Trad. Walter O Schlupp. 7ª ed. São Leopoldo: Sinodal, 2002, p. 59.

61

Cf. SOKOLOWSKI, Robert. Introdução à fenomenologia. Trad. Alfredo de Oliveira Morais. São Paulo: Loyola, 2004, p.75.

62

Cf. TILLICH, 2005, p. 36.

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concentra nos elementos que constituem a estrutura básica do ser, eles participam do caráter polar da estrutura básica impedindo que eles se transformem em conceitos altamente genéricos. Cada polo só tem sentido na medida em que se correlaciona com o polo oposto. Esses elementos se correlacionam em pares e os três principais deles são: a individualização e a universalidade, a dinâmica e a forma, a liberdade e o destino.

O terceiro nível, de conceitos ontológicos, expressa o poder do ser para existir e a diferença entre o ser essencial e o ser existencial. Tanto na experiência quanto na análise, o ser manifesta a dualidade do ser existencial e do essencial. Não há ontologia capaz de desconsiderar esse dois aspectos. O quarto nível concentra-se naqueles conceitos que tradicionalmente foram denominados por categorias, ou seja, as formas elementares do pensamento e do ser. Estes conceitos participam da natureza e da finitude, e podemos chamá-los estruturas do ser e do pensamento finitos.

O evento da revelação do mistério traz com sigo diferentes percepções sobre a natureza humana, essas percepções se referem à relação do ser humano com aquilo que o preocupa de maneira incondicional, o fundamento e o sentido do seu ser.64 Dentro desse evento o ser humano experimenta a si próprio como detentor de um mundo a qual pertence. A estrutura ontológica básica emana da análise desta relação dialética complexa. A auto- relação está implícita em toda experiência. Há algo que contém e algo que está contido, e ambos os elementos são um. A questão não é saber que existem eus, e sim saber que o ser humano está consciente da auto-relação. É esta consciência que faz com que o ser humano diante da manifestação do mistério se oriente pela estrutura eu-mundo, estrutura que é responsável por apresentar todas as situações onde a sua potencialidade esteve ameaçada pelo não-ser. Diante da revelação do mistério o ser humano não é um eu sem forma e vazio. Antes ele é um eu centrado. Um eu indivisível que pode ser destruído, mas não pode ser dividido65.

Deus é o sujeito da revelação do mistério.66 O seu conhecimento é, direta ou indiretamente, conhecimento de Deus. Na revelação do mistério Deus é, ao mesmo tempo, sujeito e objeto da manifestação do mistério, pois como o ser-em-si Deus jamais pode se tornar um objeto para o conhecimento ou ação humana por outro lado, porque o ser humano

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Cf. TILLICH, 2005, p. 142.

65

Cf. TILLICH, P. A coragem do ser. Trad. Egle Malheiros. 6ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2001, p. 68.

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é um eu centrado deve-se pressupor em toda relação à existência de um objeto.67 O ser humano se relaciona com seu ambiente ou, no caso da plena individualização, com seu mundo estruturado. Ele participa dessa estrutura, ao mesmo instante, em que está separado.

A individualização está intimamente ligada à participação. No momento em que a individualização atinge a sua forma perfeita que nós chamamos de pessoa, a participação por sua vez atinge a sua forma perfeita e nós a denominamos por comunhão. O ser humano participa de todos os níveis da vida, contudo ele só participa de forma plena daquele nível de vida que é ele mesmo. Comunhão é participação em outro eu igualmente centrado e igualmente individual. Sobre este prisma, a comunhão não é algo que um indivíduo possa ter ou deixar de ter. A participação não é algo acidental para o individuo; é essencial. Não existe individuo se não houver participação, da mesma forma não há ser pessoal sem que haja um ser comunitário.68

O que torna o eu um eu é o fato de existir um mundo, um universo estruturado, ao qual o eu está inserido e, ao mesmo tempo, está separado. Eu e o mundo são correlatos, e assim individualização e participação.69 A participação possui a mesma importância para a revelação que a individualização, pois se durante o evento revelatório do mistério o ser humano individualizado toma conhecimento de si mesmo a partir de sua relação com universo estruturado, a sua participação no evento revelatório do mistério se dá por meio do reconhecimento da existência de um outro eu centrado, ele passa a reconhecer o outro como pessoa e, se ele não pretende destruir essa pessoa precisa entrar em comunhão com ela. Assim, a participação se relaciona com a revelação do mistério de duas formas: primeiro porque a revelação do mistério é passada para uma dada comunidade por meio de individuo e segundo porque ela como revelação final revela a auto-doação e, isto só é possível porque o outro é considerado como pessoa.70

Se diante da manifestação do mistério o ser humano centrado participa do universo estruturado por meio da estrutura racional da mente e da realidade é necessário considerarmos que: além da realidade ser apenas parte de um todo, a sua apreensão e configuração é distinta ao longo da existência. Portanto, a análise dos pressupostos da

67 Cf. TILLICH, 2005, p. 276. 68 Cf. TILLICH, 2005, p. 186. 69 Cf. TILLICH, 2001, p. 69. 70 Cf. TILLICH, 2005, p. 144.

revelação do mistério deve incluir também a análise da dinâmica e forma, ou seja, da potencialidade do ser diante da existência.71

O ser é um elemento da totalidade da existência e não pode separar – se dela. Essencialmente o ser torna-se um ser sob as condições existenciais. Na medida em que ele experimenta a realidade estruturada ele se torna aquilo que ele é. Ser algo” significa ter uma forma. Sejam essas formas especiais ou gerais, no ser concreto elas nunca estão separadas.

No evento revelatório do mistério o ser humano experimenta as ambiguidades da totalidade da existência. Nestas experiências as formas ocultam o seu verdadeiro ser tornando-se necessário descobri-las sob a superfície das impressões, dos sentidos, das aparências cambiantes e das opiniões infundadas72. Por isso, quando está diante do não-ser manifesto na revelação do mistério o ser humano busca a autoafirmação do seu ser por meio da exposição do verdadeiro ser das formas que lhe são apresentadas. É neste processo de autoafirmação que o ser humano atinge um caráter potencial afirmando a si próprio como participante do objeto do qual ele é negado, da infinitude.73 Tudo que perde a sua forma perde também o seu ser. Não deveria existir o contraste entre forma e conteúdo, pois a forma que torna uma coisa aquilo que é, é seu conteúdo, sua essência, seu poder definido de ser. A forma de um elemento é aquilo que o torna um elemento, aquilo que lhe dá o caráter geral de “elemento”; desse modo, a forma da árvore lhe confere o caráter de árvore.

Quando se fala em revelação do mistério deve-se ter em mente que ela se manifesta na totalidade da vida humana e ocorre sob condições da existência, portanto está sujeita às forças culturais. Uma vez que a cultura é a forma da religião74, a separação de forma e conteúdo se torna um problema na atividade cultural do ser humano. Pois, a religião revela a profundidade da vida espiritual oculta pela finitude humana.75 Assim, nesta relação à religião aponta para os elementos infinitos e o ser humano envolto por uma preocupação concreta manifesta no mistério passa a experimentar o outro elemento da polaridade da forma, a dinâmica.

Toda forma conforma algo, esse algo é chamado de “dinâmica”. Não é possível pensar em dinâmica como algo que é e tão pouco como algo que não é. A dinâmica é o me on, a potencialidade do ser, que é não-ser em contraste com o puro não-ser. A polaridade 71 Cf. TILLICH, 2005, p. 188 e 189. 72 Cf. TILLICH, 2005, p. 187. 73 Cf. TILLICH, 2005, p. 90, 114 e 187. 74

Cf. TILLICH, P. Teologia da cultura. Trad. Jaci Maraschin, São Paulo: Fonte Editorial, 2009, p. 88.

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dinâmica e forma surge na experiência imediata do ser humano como a estrutura polar de vitalidade e intencionalidade. Vitalidade significa o poder que mantém o ser vivo com vida e crescimento. O élan vital da substância viva é o impulso criador de novas formas em tudo o que vive. Por meio da vitalidade o ser humano é capaz de criar um mundo que perpasse o mundo dado, ela confere poder para o ser humano criar o domínio técnico e espiritual.76

A vitalidade do ser humano contrasta com sua intencionalidade e está condicionada a ela. O termo “intencionalidade” quer dizer estar relacionado com as estruturas significativas, viver nos universais, apreender e configurar a realidade. A intenção, neste contexto, não significa a vontade de agir para atingir um propósito; significa viver em tensão com, e para, algo objetivamente valido. A dinâmica do ser humano não representa uma atividade sem direção, caótica; é uma atividade direcionada; ela transcende a si mesma direcionada por conteúdos significativos. Ela permite que o ser humano receptor da revelação do mistério transcenda a sua realidade concreta e finita em direção ao absoluto; deste modo, se num determinado instante o ser humano se sente ameaçado pelo não-ser o elemento dinâmico potencializa o ser humano de tal forma que o não-ser é superado.

A revelação do mistério aparece para o ser humano dentro de uma situação de preocupação concreta, como revelação efetiva ela revela ao ser humano receptor de tal revelação a autoentrega77, para isso é necessário que a pessoa receptora tenha consciência de si mesma e do meio ao qual está inserida, não se trata de uma consciência vazia, que não gera atitude. É exatamente o oposto. O fato dela observar o meio que a circunda faz com ela decida enfrentar os riscos que lhe são apresentados. Portanto, a análise dos elementos ontológicos pressupostos na revelação do mistério precisa avançar um passo. Ela precisa entender o significado desse “enfrentar os riscos”; por isso nesse momento verificaremos uma outra polaridade manifesta na revelação do mistério, a liberdade e o destino.

A liberdade, em polaridade com o destino, constitui o elemento estrutural que torna possível a existência, pois transcende a necessidade essencial do ser sem destruí-la.

O que torna o ser humano um humano é a liberdade, porém só existe liberdade em uma interdependência polar com o destino. A palavra “destino” é incomum a este contexto. Normalmente se fala em liberdade e necessidade. Entretanto, a necessidade não é um elemento, ela é uma categoria. Ela se opõe à possibilidade e não a liberdade. Sempre que se

76

Cf. TILLICH, 2005, p. 189.

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contrapõem liberdade e destino entendem-se os em termos de determinismo mecanicista e se concebe a liberdade em termos de contingência indeterminista. Nenhuma dessas interpretações é capaz de apreender a estrutura do ser da mesma forma que o ser humano experimenta. O ser humano experimenta a estrutura do indivíduo como portador da liberdade inserida nas estruturas mais amplas às quais fazem parte a estrutura individual. A liberdade não significa a liberdade de uma função, a “vontade”, e sim do ser humano, ou seja, daquele ser que não é uma coisa, mas um eu pleno e uma pessoa racional. A liberdade é experimentada como deliberação, decisão e responsabilidade. “Responsabilidade” designa a obrigação da pessoa com liberdade de responder, quando questionado, sobre suas decisões. Apenas a pessoa livre pode responder por si quando questionada, pois os seus atos não são determinados por alguma razão estranha e tão pouco por apenas parte dela, antes eles são determinados pela totalidade centrada de seu ser. Sendo assim, apenas uma pessoa livre está apta para assumir uma posição diante do não-ser manifesto na revelação do mistério, primeiro para si mesmo e depois para a comunidade em que ela está inserida.78

A liberdade é o correlato do destino. Destino é aquilo do qual surgem às decisões do ser humano. É a base indefinidamente ampla do eu centrado do ser humano; é a concretude do ser que torna todas as decisões do ser humano próprias a ele. No instante em que o ser humano decide por algo é a totalidade concreta de tudo que constitui o seu ser que decide. Assim, no instante em que a pessoa recebe a revelação do mistério ela tem a percepção de toda sua existência, desta forma ela analisa as situações que a conduziram a este momento, analisa a situação em que está inserida e decide comunicar o querigma contido na sua realidade para a comunidade em que está inserida. Pois, o destino não é um poder estranho que determina aquilo que irá acontecer ao ser humano. É a própria pessoa, tal como dada, formada pela natureza, pela história e por ela mesma. O destino do ser humano é a base de sua liberdade.

Apenas aquele que possui liberdade possui um destino. A palavra “destino” remete para algo que irá acontecer a alguém; ela possui conotação escatológica. Isto a qualifica para estar em polaridade com a liberdade.79 A perda do destino para o ser humano significa perder o sentido do próprio ser, pois o destino não é uma fatalidade absurda e sim uma necessidade unida a um sentido.

78

Cf. TILLICH, 2005, p. 191 a 193.

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Em correlação com a revelação efetiva o destino e sentido do mistério é a auto- doação, pois a pessoa portadora da revelação do mistério deve entregar a sua finitude, não só a sua vida, mas também seu poder, seu conhecimento e sua perfeição finita. Ao fazê-la, ela afirma ser a portadora da revelação efetiva. Torna-se completamente transparente ao mistério que revela.80

No instante em que o mistério do ser se manifesta, ele o faz para a função cognitiva da razão humana; De fato o ser humano tem a possibilidade de decidir a favor ou contra a razão; ele tem a capacidade de transcende-la em sua criatividade, bem como de destruí-la, opondo-se a toda razão. O que confere ao ser humano essa capacidade é o poder do seu eu centrado, em cujo núcleo estão conjugados todos os elementos do seu ser.81 A manifestação do mistério do ser não pode ser compreendida a partir de uma linguagem sagrada fornecida por meios sobrenaturais para o conhecimento humano. A sua compreensão parte de uma linguagem humana, que é baseada no encontro entre o ser humano e a realidade, em evolução ao longo dos anos, utilizada para as carências cotidianas, para expressão e comunicação, literatura e poesia, bem como para revelar a preocupação última82.

Deus é o sujeito da revelação do mistério, ELE é o ser-em-si que está além da polaridade de finitude e auto-transcendência infinita. Uma vez que o ser humano está sujeito as categorias da finitude, ele necessita usar as categorias de relação – causalidade e substância – para expressar a relação do ser-em-si com os seres finitos. Pois, é possível interpretar o termo “fundamento” de ambas as formas, como a causa dos seres finitos e como sua substância. Sendo Deus o fundamento do ser, ELE é o fundamento da estrutura do ser. Deus não está sujeito a essa estrutura; a estrutura se fundamenta NELE. Deus é essa estrutura, e ao mesmo tempo é impossível falar DELE de outro modo que não seja em termos desta estrutura.83