FACULDADE DE HUMANIDADES E DIREITO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO
O SENTIDO DO MISTÉRIO
NA TEOLOGIA SISTEMÁTICA DE PAUL TILLICH
POR
SANDRO GRACILIANO SOUZA SILVA
Universidade Metodista de São Paulo
Faculdade de HUMANIDADES e DIREITO
Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião
O SENTIDO DO MISTÉRIO
NA TEOLOGIA SISTEMÁTICA DE PAUL TILLICH
POR
SANDRO GRACILIANO SOUZA SILVA
Dissertação apresentada em cumprimento par-cial às exigências do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da Uni-versidade Metodista de São Paulo, para obten-ção do grau de Mestre, sob a orientaobten-ção do Prof. Dr. Etienne Alfred Higuet.
Paul Tillich, elaborada por Sandro Graciliano Souza Silva e será apresentada em (dia) de (mês) de 2012, perante a banca examinadora composta pelo Prof. Dr. Etienne Alfred Higuet (Presidente/UMESP), Prof. Dr. Cláudio Ribeiro (Titular/UMESP) e o Prof. Dr. Jorge Pi-nheiro (Titular/Faculdade Batista São Paulo).
________________________________________ Professor Dr. Etienne Alfred Higuet
Orientador e Presidente da Banca Examinadora
________________________________________ Professor Dr. Leonildo Silveira Campos Coordenador do Programa de Pós-Graduação
Programa: Ciências da Religião
Área de concentração: Linguagens da Religião
AUTOBIOGRAFIA
Sandro Graciliano nascido em 22 de janeiro de 1972. Era um sábado e segundo os
relatos da minha mãe era uma tarde chuvosa. Uma vez que cresci no período militar e num
bairro operário não foi possível evitar a partilha da magoa de meus amigos mais velhos por
serem privados da sua autonomia. O meu universo era pequeno, pois sou filho único, por
parte de mãe, de uma mãe solteira que aos vinte e seis, na década de setenta, optou por não
se casar com meu pai. Essa foi uma decisão amarga para ela que se tornou operaria e
confiou a minha criação aos meus tios que me amaram como um de seus filhos. A relação
de paternidade assumida pelos tios foi tão intensa que cresci possuindo duas mães e dois
pais, algumas vezes eu achava confuso ter dois pais e duas mães principalmente porque os
meus primos tornaram-se meus irmãos.
O bairro em que cresci foi construído pela empresa na qual meus pais trabalhavam,
era um bairro simples e nele havia dois campos de futebol e um parque, curiosamente após
ter me casado eu fui morar no mesmo terreno que foi cedido para a instalação do parque; às
vezes nos dia de sol, sentado na varanda, sou capaz de ver aquela “velha infância”
brincan-do na balança. Como tobrincan-dos os morabrincan-dores desse bairro de alguma forma participaram brincan-do
êxodo rural, ser operários era uma grande honra para eles, a alegria do sucesso era
visivel-mente estampada no rosto de cada um. Por este motivo ao quatorze anos foi a minha vez de
ingressar na vida operaria, eu fui estudar no SENAI (Serviço nacional de aprendizagem
os alunos era profundamente autoritária. Eu não os culpo, pois eles também viviam sob a
ditadura e também era o resultado do êxodo rural.
Faltando aproximadamente dois meses para concluir o curso de ajustador mecânico
eu decidi sair do SENAI, minha mãe chorou muito naquela noite, pois decidi estudar num
colégio técnico, eu ingressei na Escola Técnica Industrial Lauro Gomes (ETI –Lauro
Go-mes), lá eu aprendi a assumir e a participar das decisões e responsabilidades relacionadas às
minhas escolhas; eu aprendi que não precisava obedecê-las somente por que alguém
deter-minou. Assim, a minha primeira formação foi de Técnico de Laboratório Industrial. Ao
lon-go do curso eu fiz alguns estágios e quando concluí o colégio fui convidado a estagiar na
Petroquímica União S.A., no ano de 1994; hoje está empresa não existe mais, pois foi
in-corporada pelo grupo Braskem tornando – se uma de suas unidades básica de produção;
continuo trabalhando na mesma unidade até o presente momento. Até o final do primeiro
semestre de dois mil e dez (2010) eu trabalhei em horário de revezamento e assim estudei a
graduação de matemática por dois anos.
No ano de dois mil e três eu me casei com a Michaela. É com ela que eu percorro o
mundo em busca dos nossos sonhos e esperanças. Em dois mil e quatro iniciei a curso de
bacharel em Teologia na Universidade Metodista de São Paulo. Na graduação a minha fé
protestante adquiriu novas perspectivas, descobri a minha família de fé, a Igreja Metodista
de Mauá, e os meus amigos mais próximos passaram a me chamar de herege. Eu não sei
bem o motivo, mas as dúvidas passaram a fazer parte da minha convicção de fé e eu gostei
muito disso.
Quando cursava a graduação a questão do sofrimento me inquietava e por isso tentei
resolvê-la na elaboração do meu TCC intitulado por O sofrimento: um caleidoscópio de
interpretações. No decorrer da graduação eu passei a acreditar que a religião era muito mais complexa do que eu imaginava e por isso decidi fazer o curso de Pós-Graduação. Da mesma
maneira que as questões do sofrimento me deixavam inquieto, outra pergunta eclodiu no
meu ser; o meu atual interesse é saber como o ser humano reage na recepção do mistério.
Por isso, o meu projeto de mestrado é: O sentido do mistério na Teologia Sistemática de
Paul Tillich; o meu interesse por Tillich começou nas aulas de teologia sistemática e vem se afirmando cada vez mais na medida em que exploro a Ciência da Religião. No ano de dois
agos-to do mesmo ano, agora experimenagos-to o mistério de ser pai. Por causa dele, eu espero ser
Não precisamos de nada com mais urgência que da mis-são da vida, para que voltemos a afirmar e amar tanto a vida que protestemos contra a morte e contra todos os poderes que disseminam a morte. Não precisamos de uma nova religião ou de paz entre religiões, mas da vi-da, da vida integral, plena e indivisível. Porventura não é essa a natureza do evangelho: Deus, o Deus eterno, in-finito, está tão perto de ti que ele te ama e te aceita em seu amor assim como és?1
1
“Brindo a casa, brindo a vida, meus amores, minha família”. (Rappa)
A Deus, o fundamento e abismo do meu ser.
Ao IEPG – Instituto Ecumênico de Pós Graduação e a CAPES – Coordenação de
Aperfei-çoamento de Pessoal de Nível Superior por patrocinaram este projeto; a essa instituição e
aos professores e responsáveis que me recomendaram à bolsa de estudos expresso aqui a
minha gratidão.
Especialmente ao professor Etienne A. Higuet por me acolher em suas preocupações e por
tornar viável a realização deste projeto. A Ana Maria Fonseca que sempre esteve disposta a
me ouvir; ao meu amigo João Donizete de Paula que confiou em mim e me lembrou dos
meus planos no momento em que eu os tinha esquecido. Ao meu amigo Vitor Chaves, mas
para este eu dispenso comentários para expressar a sua importância.
A Igreja metodista de Mauá que pacientemente me acompanha e fortalece-me por meio de
suas orações.
A todos que me incentivaram a realizar este projeto.
em Ciências da Religião – Linguagens da Religião) — Universidade Metodista de São Paulo, São Bernardo do Campo, 2012.
SINOPSE
Esta pesquisa propõe-se a tematizar o mistério na Teologia Sistemática de Paul Tillich. Ela constata que o mistério é a manifestação do sagrado para o conhe-cimento do ser humano. Portanto, essa pesquisa conclui que o ser humano une - se ao divino a partir do conhecimento da revelação do mistério. Tillich afirma que o conhecimento existencial basea-se num encontro no qual uma nova signi-ficação é criada e reconhecida. A revelação do mistério é um conhecimento e-xistencial e na sua manifestação o ser humano portador da revelação passa a co-nhecer outra pessoa, ele conhece a sua história e participa da realidade na qual o mistério se revelou na sua totalidade. O mistério é a manifestação do sagrado, por isso a sua revelação causa no ser humano profundas mudanças. Na teologia sistemática de Tillich o mistério é descrito como uma marca da revelação, a sua primeira marca. No entanto ao nos aproximarmos do texto percebemos que ele é mais que uma marca para Tillich, o mistério é a manifestação do fundamento do ser, o mistério é a manifestação do divino que se comunica simbolicamente ao ser humano a partir da revelação final de Jesus como o Cristo.
gree in Sciences of Religion – Languages of Religion) — São Paulo Methodist University, São Bernardo do Campo, 2012.
ABSTRACT
This research intends to demonstrate the mystery on Paul Tillich’s Systematic Theology. It certifies that the mystery is the manifestation of the sacred for the human being knowledge. Nevertheless, this research concludes that the human being unites to the divine from the knowledge of the revelation of the mystery. Tillich says that the existential knowledge is based on an encounter in which a new meaning is created and recognized. The revelation of the mystery is an ex-istential knowledge and its manifestation in the human bearer of revelation comes to know another person, he knows his history and participates in the real-ity in which the mystery is revealed in its totalreal-ity. The mystery is the manifesta-tion of the sacred, for that its revelamanifesta-tion causes profound changes in the human being. In Tillich’s Systematic Theology the mystery is described as a mark of revelation, its first mark. However as we approach to the text we see that the mystery is more than a mark to Tillich, the mystery is the manifestation of the ground of being, the mystery is the manifestation of the divine that communi-cates symbolically to the human being from the final revelation of Jesus as the Christ.
Introdução . . . . .. . 16
CAPÍTULO I Os pressupostos racionais para a revelação do mistério . . . . . . 20
I.1 A importância do método da correlação para a revelação do mistério . . . . . 21
I.2 O significado do mistério para Tillich . . . 24
I.3 A participação racional na revelação do mistério . . . ... 29
I.3.1 Razão ontológica e razão técnica . . . . 30
I.3.2 Razão subjetiva e razão objetiva . . . 31
I.3.3 A profundidade da razão . . . ... 33
I.4 A participação existencialista na revelação do mistério . . . .. . 34
I.5 A participação ontológica na revelação do mistério . . . 38
I.6 Conclusão do capítulo . . . .. 45
CAPÍTULO II As dimensões do mistério na teologia sistemática . . . . 47
II.1 Os conflitos racionais na revelação do mistério . . . 48
II.1.1 Entre o relativismo e o absolutismo . . . 50
II.1.2 Entre o formalismo e o emocionalismo . . . . . . . .52
II.1.3 Entre a polaridade da razão autônoma e razão heterônoma . . . .54
II.2 A superação dos conflitos racionais pela revelação final do mistério . . . .. ..57
II.3 A revelação final e a sua abertura para a revelação do mistério . . . .. .. 60
II.4 As dimensões do mistério . . . 62
II.4.1 Mistério divino . . . 62
II.4.2 Mistério do ser . . . . . . 66
II.4.3 O mistério do não ser . . . 70
II.5 Conclusão do capítulo . . . . .71
CAPÍTULO III A participação do símbolo na linguagem do mistério para Tillich . . . 72
III.2 A Compreensão de Tillich sobre o símbolo . . . 76
III.3 A importância do estudo do símbolo para Tillich . . . .78
III.4 Os problemas na reflexão do símbolo de acordo com Tillich . . . .79
III.5 Linguagens similares ao símbolo . . . 80
III.6 A hermenêutica do símbolo em Tillich . . . .. .84
III.7 A linguagem simbólica do mistério em Tillich . . . ..87
III. 7. 1 Deus . . . .. 87
III.7.2 O Cristo . . . .. 88
III.7.3 A cruz . . . . 91
III.8 Conclusão do capítulo . . . 93
Considerações Finais . . . .. 95
Verificação do emprego da palavra mistério na 5ª edição da Teologia
Sistemática em português. Total de cento e quarenta e três vezes.
2Primeiro volume: total de cento e quinze vezes
• Primeira Parte - A razão e a revelação: total de noventa e sete vezes
A razão e a pergunta pela revelação: página 97
O sentido da revelação: páginas 1213 - 1244, 125, 128, 132 - 136, 139, 141, 157, 163 – 166 - total de noventa e seis vezes
9 Mistério do ser – total de vinte e duas vezes
9 Mistério divino – total de seis vezes
9 Mistério revelado/ revelação do mistério5 – total de quatorze vezes
9 Mistério da existência – total de três vezes
• Segunda Parte - O ser e Deus: total de dezoito vezes
O ser e a pergunta por Deus: página 195s. – total de seis vezes
9 Mistério do ser – total de uma vez
9 Mistério do não ser – total de quatro vezes
A realidade de Deus: páginas 223, 225, 257, 284 – total igual a quatro vezes.
Segundo volume: total de doze vezes
• Terceira Parte - A existência e o Cristo – total de doze vezes
Páginas 307, 382, 383, 439;
9 Mistério do ser – total de uma vez
9 Mistério divino – total de sete vezes
9 Profundo mistério – total de uma vez
2
O emprego da palavra mistério quando se refere aos cultos de mistério não está contabilizado; pois os cultos de mistério não participam ao objetivo da pesquisa.
3
Nesta página o mistério surge como marca da revelação. 4
Aqui Tillich aborda o tema do mistério. 5
Terceiro volume: total de dezessete vezes
• Quarta Parte – A vida e o Espírito: Total de onze vezes
Páginas 546, 649, 691, 722, 728, 729,
9 Mistério do ser – total de duas vezes
9 Mistério divino – total de duas vezes
9 Mistério da trindade – total de uma vez
9 Mistério do sagrado – total de uma vez
• Quinta Parte – A história e o reino de Deus: total de sete vezes Páginas 804, 824, 831, 847.
9 Mistério do divino – total de seis vezes
Cultos de mistério:
A dissertação: O sentido do mistério
Ao falar a respeito da revelação do mistério Tillich afirma que ela é a manifestação do
fundamento do ser para o conhecimento humano. Esta afirmação está clara e não precisa ser
expandida. Contudo, por meio de uma análise de sua obra é possível acrescentar algo mais a
esta afirmação. Em sua obra A coragem do ser ele afirma que “o conhecimento existencial é baseado num encontro no qual uma nova significação é criada e reconhecida” 6. Pois bem,
ao abrirmos esta frase percebemos que a revelação do mistério é um conhecimento
existen-cial, visto que ela ocorre para alguém numa situação concreta de preocupação; ademais, a
sua manifestação traz uma nova significação que é criada e reconhecida. Sendo assim,
po-demos extrair desta afirmação que o mistério potencializa um significado que já existe e que
também reúne, por meio do reconhecimento, isto é: do conhecer de novo, os que estão
sepa-rados. A revelação do mistério é um conhecimento existencial não apenas pelo fato de
ocor-rer numa situação concreta de preocupação, mas também por trazer junto com a sua
mani-festação à totalidade do ser para quem o mistério se revelou. Muitos pesquisadores
escreve-ram sobre o mistério e também sobre a sua linguagem simbólica, porém Tillich destaca – se
por estabelecer uma correlação entre a situação humana que formula a pergunta pela
revela-ção do mistério e a mensagem de fé contida na manifestarevela-ção do mistério que se revelou.
Para Tillich apenas o mistério que é de preocupação última é revelado para o ser
humano.7 Daí o interesse por essa pesquisa, descobrir como o ser humano responde (a partir
da óptica de Tillich) a revelação do mistério, pois nada é mais importante para o ser humano
se não aquilo que possui caráter último. Em outras palavras, descobrir como o ser humano é
6
Cf. TILLICH, P. A coragem do ser. Trad. Egle Malheiros. 6ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2001, p 98. 7
impelido a reagir quando se sente ameaçado pelas diferentes categorias da finitude. A
vida humana é regida pelas condições existenciais, o ser humano é constantemente
desloca-do em direção a condições finitas, quer seja para a autoafirmação da sua existência quer seja
para a negação da existência de seu próximo. Ao longo de sua obra Tillich aborda muito
bem o tema da finitude humana, as questões ontológicas norteiam o seu pensamento. Por
isso, a ideia de investigar o sentido do mistério a partir de sua Teologia Sistemática. O mé-todo escolhido por Tillich para construir a sua Teologia Sistemática, método da correlação, também é outro fator que contribui para o incentivo dessa dissertação, pois ele permite que
o tema do mistério seja abordado tanto de forma religiosa quanto de forma filosófica
tor-nando – o a sua reflexão ainda mais abrangente.
O vasto pensamento de Paul Tillich não contribuiu apenas para o enriquecimento da
área filosófica e teológica, o seu pensamento é discutido por outras disciplinas do
conheci-mento humano como, por exemplo, a psicologia. A importância dessa pesquisa se dá por
existirem poucas pesquisas que abordem o tema do mistério na Teologia Sistemática; na
maioria dos estudos realizados sobre o mistério ele é apresentado apenas como uma marca
da revelação; essa é a principal característica apresentada em sua TS. Nos sermões de
Tilli-ch é possível encontramos textos dedicados ao mistério, mas eles se referem apenas a
aspec-tos específicos e não tecem nenhum comentário sobre as demais dimensões do mistério.
Tillich é muito comentado por sua ontologia, por sua sistemática e por suas palestras; por
isso realizar uma pesquisa focada no sentido do mistério a partir da análise das diferentes
dimensões em que ele é apresentado na TS. é uma pesquisa original e desafiadora; ela abre
caminho para novas reflexões tanto sobre o sentido do mistério quanto sobre o sentido da
revelação. No futuro as novas pesquisas ganharão com a pesquisa atual porque ela já traçou
um caminho a seguir tornando mais fácil a eliminação e o estabelecimento de novos
crité-rios para dar seqüência ao tema do mistério. Da mesma forma, não é possível falar de
Tilli-ch sem lembrar que ele sempre teve um compromisso com a comunidade, tanto com a
co-munidade eclesiástica quanto com a secular; por isso para as pessoas de fé essa obra é
posi-tiva, porque mostra que o Deus dos cristãos é um Deus de união por meio do conhecimento
deixando claro que a sua manifestação tem por objetivo unir – se àquele para quem ELE se
revelou.
Por isso a importância dessa pesquisa; apontar o método utilizado por Tillich para
responder as questões existenciais. Tillich foi um dos maiores escritores filosófico e
gran-des contribuições para a reflexão cultural atual. Em seus textos Tillich gran-destaca a
impor-tância do pensamento autônomo bem como do seu movimento em direção ao pensamento
teonomo, apenas o ser humano consciente de seu lugar na sociedade é capaz de receber a
revelação do mistério e se colocar numa posição de enfrentamento àqueles que tentam de
todas as formas negar a existência do outro. Principalmente, essa pesquisa é importante
por-que dá o direito a pessoa receptora da revelação do mistério de racionalizar a sua
experiên-cia revelatória e auto - afirmar a sua existênexperiên-cia a partir dela.
O objetivo desta pesquisa é identificar o sentido do mistério na Teologia Sistemática
de Tillich. Para realizarmos nosso objetivo é necessário perguntarmos o que é o mistério? A resposta a essa pergunta implica a elaboração de outras perguntas que participam com a
mesma intensidade na descoberta do sentido do mistério. Por isso, nós investigaremos como
o mistério é compreendido pelo ser humano e de que maneira elabora - se a pergunta pela
sua revelação. Uma vez que identificamos quais são as condições para que o ser humano
receba tal revelação realizaremos uma distinção entre os diferentes aspectos do mistério que
se apresentam ao longo da Teologia Sistemática. Visto que a revelação do mistério possui um sentido especifico, então é necessário identificar a linguagem pela qual ele é
comunica-do ao ser humano.
Para a investigação do sentido do mistério na teologia sistemática de Tillich
adota-mos uma metodologia investigativa constituídas da seguintes ações: a primeira ação foi
rea-lizar um levantamento do aparecimento da palavra mistério na T.S. por meio do índice
re-missivo e da leitura de seu livro maior; a segunda ação foi verificar o que Tillich escreveu
sobre o mistério em suas outras obras; a terceira ação tomada foi verificar numa bibliografia
secundaria o que outros pesquisadores escreveram a respeito do mistério nas obras de
Tilli-ch; por fim ao compreender o sentido do mistério para Tillich estabelecemos o critério de
quais pressupostos racionais na descoberta do sentido do mistério participarão e como eles
estarão dispostos na dissertação.
Para identificar o sentido da revelação do mistério esta pesquisa esta dividida em três
capítulos. No primeiro capítulo intitulado Os pressupostos racionais para a interpretação do mistério apresentaremos a necessidade dos elementos racionais para a elaboração da
pergunta pela revelação do mistério, neste capítulo responderemos a pergunta o que é o
mistério e porque a construção da resposta precisa tanto da questão existencialista quanto da
ontológica. O segundo capítulo intitulado por As dimensões do mistério na teologia
analisará os conflitos entre os elementos estruturais da razão no momento em que é feita a
pergunta pela revelação do mistério e qual a sua importância nesta manifestação para a
pessoa que experimenta uma situação concreta de preocupação. O terceiro capítulo
intitulado por A participação do símbolo na linguagem do mistério apresenta a capacidade potencial do símbolo na comunicação do mistério, ele demonstra a necessidade de
compreensão da dinâmica do símbolo religioso frente a outros elementos de comunicação
cuja linguagem assemelham-se a linguagem do símbolo e que pela deficiência inerente da
CAPÍTULO I
OS PRESSUPOSTOS RACIONAIS
PARA A REVELAÇÃO DO MISTÉRIO
Este capítulo irá apresentar os pressupostos racionais para a revelação8 do mistério na
Teologia Sistemática de Paul Tillich. O mistério é essencialmente tudo aquilo que mantém o
seu caráter misterioso mesmo após ser revelado9. De acordo com Tillich o mistério
caracteriza uma dimensão que antecede a relação sujeito-objeto e é impossível expressar a
sua experiência por meio da linguagem comum visto que, a linguagem surgiu a partir do
esquema sujeito-objeto e está presa a esse esquema. Caso o mistério seja expresso por meio
de linguagem comum, ele necessariamente é compreendido de maneira equivocada e é
8
O tema da revelação não será explorado nesta dissertação, nós concentraremos nossos esforços na análise de apenas uma de suas marca, o mistério. No segundo capitulo deste trabalho abordaremos uma característica especifica da revelação, a revelação final como revelação final do mistério. Como alavanca do nosso objetivo conceituaremos a revelação como uma manifestação especial e extraordinária que retira o véu de algo que es-tá oculto também de forma especial e extraordinária. Cf. TILLICH, P. Teologia Sistemática. Trad. Getulio Bertelli e Geraldo Korndorfer. 5ª ed. São Leopoldo: Sinodal, 2005, p 121.
9
reduzido a outra dimensão, profanado.10 A demais, o verdadeiro mistério surge no
momento em que a razão é conduzida para além de si mesma11.
Tillich afirma que a teologia não deve produzir uma epistemologia própria a partir de
si mesma, mas se referir àquelas características da razão cognitivas que são relevantes para
o caráter cognitivo da revelação. Ele também afirma que a teologia tem o dever de fornecer
uma descrição da razão cognitiva sob condições existenciais e ter como pressuposto uma
compreensão da estrutura ontológica, pois é a estrutura polar da razão cognitiva que torna
possível seus conflitos existenciais e a conduz à pergunta pela revelação.12
O mistério é um correlato da revelação, ele é a sua primeira marca.13 Portanto, neste
capítulo apresentaremos as observações levantadas na Teologia Sistemática quanto ao uso da razão na elaboração da pergunta pela revelação, pois “a revelação é a manifestação do
mistério do ser para a função cognitiva da razão humana”14. Tillich considera-se um teólogo
existencialista, comprometido com a situação humana15, o fato da revelação do mistério se
dar para alguém dentro de uma situação concreta implica a necessidade de descrevermos de
que maneira o caráter existencialista contribui na compreensão do mistério. Uma vez que a
descrição dos conflitos da cognição existencial deve pressupor uma compreensão da
estrutura ontológica16, essa estrutura precisa ser apresentada, pois no momento em que o
mistério do ser surge em uma experiência reveladora, a totalidade da vida pessoal participa
da manifestação deste mistério.
I. 1 A importância do método da correlação para a revelação do
mistério
“A teologia é a explanação metódica dos conteúdos da fé cristã”17, esse método não é
algo absoluto no qual a realidade está aprisionada, mas um elemento da própria realidade,
ele deve descrever um aspecto decisivo do objeto ao qual ele se aplica. A própria relação
10
Cf. TILLICH, 2005, p. 121. 11
Cf. TILLICH, 2005, p. 122. 12
Cf. TILLICH, 2005, p. 107. 13
Cf. MCKELWAY Alexander J. The Systematic theology of Paul Tillich. New York: A Delta Book, 1964, p. 81.
14
Cf. TILLICH, 2005, p. 140. 15
Cf. TILLICH, P. Perspectivas da teologia Protestante nos séculos XIX e XX. Trad. Jaci Maraschin. 3ª ed. São Paulo, ASTE, 2004, p. 246.
16
Cf. TILLICH, 2005, p. 107. 17
cognitiva revela algo tanto sobre o objeto quanto sobre o sujeito da relação; ela revela o
caráter existencial e transcendente do fundamento dos objetos no tempo e no espaço. É
neste ponto que o método utilizado por Tillich, denominado método da correlação, vai ao
encontro do mistério, pois a revelação do mistério ocorre dentro de uma situação concreta
de preocupação.
Tillich propõe uma concepção hermenêutica da teologia entre dois pólos: o da
mensagem e da situação. Para ele o papel da teologia, a serviço da comunidade cristã, é
atender às necessidades desta comunidade verificando a afirmação da verdade de suas
mensagens interpretando esta verdade de uma forma que responda aos questionamentos de
cada geração na medida em que ela se renova. Ela deve transitar entre os limites da verdade
eterna de seu fundamento e a situação temporal em que esta verdade eterna deve ser
recebida. A situação não se refere ao estado psicológico ou sociológico em que vivem os
indivíduos ou grupos e sim às formas cientificas e artísticas, econômicas, políticas e éticas
em que expressam sua interpretação. Para Tillich a situação à qual a teologia deve falar com
relevância, não é a situação do individuo como individuo, bem como não é a situação do
grupo como grupo; mas sim a interpretação criativa da existência tal como se realiza em
todos os períodos históricos, sob todos os tipos de condições psicológicas e sociológicas. A
situação à qual a teologia deve responder é a totalidade da autointerpretação criativa do ser
humano num período determinado. O fundamentalismo e a ortodoxia rejeitam essa tarefa e,
ao fazê-lo, perdem o sentido de teologia.18
A teologia querigmática assemelha-se ao fundamentalismo e a ortodoxia na medida
em que ratifica a verdade imutável da mensagem cristã contra as exigências condicionadas à
situação. No entanto, ela fracassa no tempo presente em função da sua fixação numa
situação do passado. Pois, a situação não pode ser excluída do trabalho teológico e por isso
a teologia não pode descuidar do pólo da situação sem correr o risco de sérias
consequências. Apenas uma corajosa participação em todas as formas culturais que
expressam a interpretação da existência por parte do ser humano moderno é capaz de
superar a variação da teologia querigmática entre a liberdade implícita no querigma genuíno
e sua fixação ortodoxa. A teologia querigmática só é completa se estiver unida à teologia
apologética.19
18
Cf. TILLICH, 2005, p. 21. 19
A teologia apologética deve responder às perguntas implícitas na situação com o
poder da mensagem eterna e os meios concedidos pela situação cujas perguntas ela
responde. Mas, ela fracassa ao tentar responder aos enigmas científicos com respostas de fé.
Isso não significa que ela não deva considerar a advertência implícita na existência e na
reivindicação da teologia querigmática. Ela se perde caso não possua o querigma como
substância e critério de cada uma de suas afirmações.20
O fato de ambos os pólos não serem capazes de se abrirem uns aos outros faz com que
Tillich articule um método teológico onde a mensagem e a situação estejam relacionadas de
tal modo que nenhuma delas seja anulada. Esse método busca correlacionar as perguntas
implícitas na situação com as respostas implícitas na mensagem. Ele não deriva as respostas
das perguntas, como o faz uma teologia apologética auto-suficiente, mas tampouco elabora
respostas sem relacioná-las com as perguntas, como o faz uma teologia querigmática
auto-suficiente. Esse método correlaciona perguntas e respostas, situação e mensagem, existência
humana e manifestação divina.21
A pergunta existencial, ou seja, o próprio ser humano imerso nos conflitos de sua
situação existencial, não é a fonte da resposta reveladora formulada pela teologia. É
impossível derivar a auto-manifestação divina de uma análise da condição humana. Deus
fala à situação humana, ELE fala tanto a favor dela quanto contra ela. Embora o ser humano
seja a própria pergunta, ele não é a resposta.22 Apenas o mistério que é de preocupação
última aparece para o ser humano na revelação, e, o que ele revela é o fundamento do ser
manifesto na existência23. Nesta condição o método da correlação é responsável por
estabelecer um elo entre a pergunta pela revelação do mistério, decorrente de uma situação
concreta, e a resposta fornecida pelo querigma cristão.
Existem três modos distintos de abordar o método da correlação e Tillich reconhece a
validade de todas as formas no uso teológico.24
Ele pode designar a correspondência de diferentes séries de dados, como em registros estatísticos. Pode designar a interdependência lógica de conceitos, como em relações polares, e pode designar a interdependência real de coisas ou eventos em conjuntos estruturais.
20
Cf. TILLICH, 2005, p. 24. 21
Cf. TILLICH, 2005, p. 25. 22
Cf. TILLICH, 2005, p. 308. 23
Cf. TILLICH, 2005, p. 165 24
Se este termo é usado na teologia, todos os três sentidos têm aplicações importantes.25
O fato é que a relação divino – humana é uma correlação também em seu aspecto
cognitivo; e o mistério é a revelação dessa relação para a cognição humana. Se percebermos
a dinâmica do método da correlação nos tornamos aptos para compreensão do mistério na
teologia sistemática de Tillich.
I. 2 O significado do mistério para Tillich
Mistério não deve ser confundido com misticismo. O misticismo reúne o êxtase,
ek-stasis – que significa estar fora de si, profético com o entusiasmo, en – theosmania, palavra cujo significado é possuir o divino. Deste modo, no misticismo o individuo extasiado é
conduzido à união com o único absoluto Deus. Também não se deve comparar o mistério
com a religião de mistério onde a pessoa iniciada num dado mistério recebe um deus
especial que é, naquele momento, o único deus. Ao ser iniciada num determinado mistério a
pessoa passava a participar no deus mistério e em suas experiências, compartilhando desde
a dor de seu sofrimento à alegria de sua ressurreição.26
Essencialmente é um mistério aquilo que abandonaria a sua própria natureza caso
perdesse o seu caráter misterioso, mesmo após ser revelado. O mistério caracteriza uma
dimensão que precede a relação sujeito-objeto e não pode ser expresso por meio da
linguagem comum visto que, ela é oriunda do esquema sujeito-objeto e está atrelada a esse
esquema. Caso o mistério seja expresso por meio da linguagem comum ele necessariamente
seria compreendido de maneira equivocada, reduzido a outra dimensão, profanado. Por isto,
a violação do conteúdo dos cultos de mistério era uma blasfêmia que devia ser expiada com
a morte.27
Para Tillich apenas o mistério genuíno, que é de preocupação última, aparece para o
ser humano na revelação. O mistério é um correlato da revelação e como tal ele sofre as
mesmas peculiaridades que a revelação.
O termo revelação, cujo significado é remover o véu, é utilizado de modo tradicional para designar a manifestação de algo que está oculto e que não pode ser atingido pelas vias
comuns de obtenção de conhecimento. Popularmente esta palavra é empregada num sentido
25
TILLICH, 2005, p. 74. 26
Cf. TILLICH, 2004, p. 35. 27
mais amplo, entretanto mais vago: um pensamento ou um segredo é revelado a alguém,
um método científico é revelado para uma comunidade que o aguarda com expectativa. Em
todas as circunstancias a força da aplicação da palavra revelação e revelar procede do seu sentido próprio e mais restrito. Uma revelação é uma manifestação especial e extraordinária
que retira o véu de algo que está oculto de maneira especial e extraordinária. Este caráter
oculto é chamado de mistério.
Da mesma forma que a palavra revelação, a palavra mistério também é utilizada tanto no sentido mais amplo como num sentido mais restrito. No sentido mais amplo ela
contempla tanto histórias de mistérios quanto o mistério da matemática avançada. No
sentido mais restrito, do qual se deriva o poder dessa expressão, o termo indica algo que é
essencialmente um mistério, algo que perderia sua própria natureza caso perdesse o seu
caráter misterioso, ainda que seja revelado. “Mistério” no seu próprio sentido deriva da
palavra “muein”, “fechar os olhos” ou “fechar a boca”. Esse exercício de abrir os olhos e a boca é necessário para a apreensão e comunicação do objeto pondo à prova as próprias
percepções. Entretanto, o autêntico mistério é experimentado numa situação contrária à
atitude da cognição comum. Não há a necessidade de abrir os olhos, pois o verdadeiro
mistério transcende o ato de ver, de confrontar-se com objetos cujas estruturas e relações se
apresentam a um sujeito para que as conheça.
Tillich afirma que o mistério caracteriza a dimensão que precede a relação
sujeito-objeto. Portanto, há uma correlação entre o mistério e a razão, pois o conhecimento é uma
forma de união e, em qualquer ato cognitivo aquele que conhece e o objeto que é conhecido
estão unidos. O sujeito apreende o objeto, adapta-o a si mesmo e, ao mesmo instante,
adapta-se ao objeto28. Na revelação do mistério a pessoa receptora da revelação olha para si mesma e, ao mesmo tempo, olha para o mistério revelado. Necessariamente esse “olha” não significa estar com os olhos abertos, mas sim ter a percepção29 de si mesmo e do objeto que lhe é apresentado.
Dizer que houve uma revelação do mistério significa dizer que no meio de uma
experiência comum ocorreu à manifestação de algo que transcendeu o contexto habitual da
experiência. Com isso, na medida em que o mistério se manifesta na revelação é possível
28
Cf. TILLICH, 2005, p. 107. 29
adquirir um pouco mais de conhecimento sobre as suas características; a revelação do
mistério evidencia que tanto a realidade na qual ele se manifestou quanto à relação do ser
humano com o mistério revelado tornou-se uma questão da experiência30. Ambos os
elementos, realidade e relação, são elementos da cognição. Contudo, a revelação não
dissolve o mistério em conhecimento. E tampouco adiciona algo à totalidade do
conhecimento comum do ser humano, ou seja, ao conhecimento do ser humano sobre a
estrutura sujeito – objeto da realidade.
Tillich se mantém preocupado com a preservação e uso da palavra mistério, para ele é
preciso evitar seus usos equivocados e confusos. Em sua opinião não se deveria chamar de
mistério a algo que deixa de ser um mistério após ser revelado, da mesma forma não deveria
ser chamado de mistério qualquer coisa que possa ser descoberta por meio de uma
abordagem cognitiva metódica. Assim, aquilo que o ser humano não compreende hoje, mas
que será capaz de compreender no futuro não pode ser chamado de mistério.
O autêntico mistério surge no instante em que a razão é conduzida para além de si
mesma, a seu “fundamento e abismo”, àquilo que precede a razão, ao fato de que o ser é e o
não-ser não é, ao fato original de que há algo e não nada. É possível chamar essa situação de lado negativo do mistério, este lado surge em todas as funções da razão e se manifesta
tanto na razão subjetiva quanto na razão objetiva31. O lado negativo do mistério é um elemento vital da revelação que revela o elemento abismal no fundamento do ser; sem esse
lado o mistério não permanece um mistério.32 O outro lado do mistério, que contem também
o lado negativo, manifesta-se na revelação efetiva. No lado positivo o mistério se apresenta
também como fundamento e não apenas como abismo. O mistério apresenta-se como o
poder de ser que supera o não-ser. Ele surge como a preocupação última do ser humano e se
expressa por meio de símbolos e mitos que indicam a profundidade da razão33 e seu
mistério.
30
O termo experiência para Tillich significa o meio pelo qual as fontes “falam” ao ser humano, o meio pelo qual ele pode receber. Essas fontes não se limitam aos textos bíblicos, pois a “Palavra de Deus” não pode se limi-tar às palavras de um livro, da mesma forma o ato da revelação não se identifica a inspiração de um livro de revelações ainda que esse livro seja o documento da “Palavra de Deus” final. Em resumo a bíblia é o livro base, mas não é o único.
31
O item 1.3, deste capítulo, contém uma explanação sobre estas formas da razão. 32
Cf. TILLICH, 2005, p. 122. 33
Só há revelação do mistério para o ser humano se ele for de preocupação última.
Portanto, boa parte das idéias que tem suas origens nas pretensas revelações a respeito de
objetos e eventos situados na estrutura sujeito-objeto da realidade não são mistérios
autênticos e tampouco se baseiam em uma revelação autêntica. O conhecimento extraído de
fontes naturais não é material de revelação, e sim objeto de observação, intuição e
conclusão. Caso esse conhecimento reivindique para si status de revelação, ele deve ser
submetido à prova de métodos científicos que o validará a base destes métodos.
A revelação do mistério ocorre para alguém que está dentro de uma situação concreta
de preocupação. Ela toma posse de um individuo ou de um grupo por meio de um
individuo; a sua força revelatória só tem poder nesta correlação. Para Tillich as revelações
recebidas fora da situação concreta só podem ser apreendidas como relatos a respeito de
revelações que outros grupos afirmam haver recebido. Tomar ciência de tais relatos não os
torna reveladores para quem não pertence ao grupo que foi tomado. Não ocorre revelação
alguma se não há alguém que a receba como preocupação última.
De acordo com Tillich a revelação sempre é um acontecimento subjetivo e um
acontecimento objetivo em estrita interdependência. No momento em que alguém se sente
possuído pela manifestação do mistério; este é o lado subjetivo do acontecimento, quando
algo acontece por meio do qual o mistério da revelação se apropria de alguém; este é o lado
objetivo. Não há meios de separar esses dois aspectos. Se nada ocorre objetivamente, nada é
revelado. A partir do instante em que ninguém recebe subjetivamente o acontecimento, o
evento deixa de revelar algo. Para Tillich o acontecimento objetivo e a recepção subjetiva
são partes do evento total da revelação; para ele a revelação não é real sem o caráter
receptivo e não é real sem que algo seja dado. O mistério surge de maneira objetiva em
termos daquilo que chamamos conceitualmente de milagre e surge subjetivamente em
termos daquilo que é, em algumas situações, denominado de êxtase.
A realidade e a revelação do mistério do ser pertencem ao campo da experiência; a
mente experimenta essa experiência de forma objetiva por meio do milagre, algo que nos
causa assombro e que de modo algum é de natureza sobrenatural. O milagre mediador do
mistério da revelação não destrói a estrutura racional da realidade em que ele aparece, o fato
dele ser algo extraordinário não contradiz a estrutura racional da realidade, ele indica o
mistério do ser expressando sua relação com o ser humano de uma forma definida e na sua
ocorrência o ser humano o recebe em uma experiência extática. De modo subjetivo o
o espírito humano sob circunstancias extraordinária atinge um estado no qual a mente
transcende sua situação habitual, o estado de êxtase não é uma negação da razão e sim um
estado mental em que a razão está além da estrutura sujeito-objeto. No estado extático a
razão não nega a si mesma, ela continua sendo razão, não recebe nada irracional ou
anti-racional; mas transcende a condição básica da racionalidade finita, a estrutura
sujeito-objeto34.
Em toda revelação estão permanentemente presentes três marcas: o mistério, êxtase e
o milagre;35 O termo êxtase é muito utilizado por grupos religiosos que reivindicam ter
experiências religiosas especiais, dons extraordinários, revelações individuais e o
conhecimento esotérico. Apesar de ser equivocada a rejeição a priori de tais reivindicações
e também a negação de que esses grupos tenham experimentados um êxtase autêntico não se
deve permitir que usurpem esse termo. Os chamados movimentos extáticos experimentam
constantemente o risco de confundir superexitação com a presença do Espírito divino ou
com a ocorrência da revelação. Para que ocorra uma manifestação genuína do mistério algo
precisa ocorrer tanto de maneira subjetiva como objetiva. No estado de superexitação
religiosa algo ocorre apenas de modo subjetiva, em geral produzido artificialmente.
Portanto, não há nenhum poder revelador nesse estado. A superexitação é perfeitamente
explicada em termos psicológicos. O êxtase transcende esse nível apesar de ter um lado
psicológico. Ele revela algo sobre a relação do mistério de nosso ser e nós mesmos.36
Além do mistério e do êxtase, Tillich identifica outra marca a revelação, o milagre. O
significado do termo milagre, “aquilo que gera assombro” é muito pertinente para descrever
o aspecto objetivo de uma experiência revelatória. Contudo, o seu significado foi utilizado
de forma inadequada pela interferência sobrenatural que destrói a estrutura natural dos
eventos. Para superar esse mau uso do termo Tillich utiliza a palavra “sinal” e a expressão
“evento-sinal”.
Na manifestação do mistério do ser não há destruição da estrutura do ser que se
manifesta. No êxtase na qual o mistério é recebido não ocorre à destruição da estrutura
racional da mente que acolheu o mistério e da mesma forma o evento-sinal que foi
responsável pela mediação do mistério da revelação não destrói a estrutura racional da
realidade em que aparece. Da mesma maneira que o êxtase pressupõe o choque gerado pelo
34
Cf. TILLICH, 2005, p. 124. 35
Cf. MCKELWAY, 1964, p. 81. 36
não ser na mente, também os eventos-sinais pressupõem o estigma do não-ser. Tanto no choque como no estigma surge o lado negativo do mistério, o abismo. De acordo com
Tillich o evento-sinal que possibilita a manifestação do mistério do ser consiste em uma conjunção especial de elementos da realidade em correlação com uma conjunção de
especiais elementos da mente. Para ele os milagres não podem ser interpretados em termos
de uma interferência sobrenatural em processos naturais; caso essa interpretação fosse
verdadeira a manifestação do fundamento do ser aniquilaria a estrutura do ser.
De acordo com Tillich:
Quando o mistério do ser aparece em uma experiência revelatória, a totalidade da vida pessoal participa do mistério. Isto significa que a razão está presente tanto estrutural quanto emocionalmente, e que não há conflito entre esses dois elementos. O que constitui o mistério do ser e sentido é, ao mesmo tempo, o fundamento de sua estrutura racional e o poder de nossa participação emocional nele.37
Portanto, se o mistério do ser é constituído pelo fundamento de sua estrutura racional
e pelo poder da participação emocional do ser humano nele, então nós devemos verificar de
que maneira a razão contribui na revelação do mistério visto que, ela ocorre para a função
cognitiva da razão humana.38
I. 3 A participação racional na revelação do mistério
Sendo o ser humano um ser social, os eventos que constituem as suas emoções e a sua
idiossincrasia são respondidos por meio da sua sociabilidade. Suas respostas a revelação do
mistério seguem, ainda que em diversas maneiras, um padrão; pois o ser humano responde
aos seus sentimentos de acordo com um modelo social que ele apreendeu e configurou em
algum momento da sua existência39. A repetição de comportamento, espelhada nas pessoas
que exercem algum tipo de influência, ocorre dentro de um processo natural que ao longo
do tempo se desenvolve historicamente tornando-se algo fossilizado. Essas formas
fossilizadas de comportamento repetem-se de maneira automática ou mecânica. Mas, em
ambas as maneiras há um processo racional atuando de forma direta ou indireta.
O mistério caracteriza uma dimensão que precede a razão. Entretanto, para
discutirmos sobre ele necessitamos do argumento racional. Por isso, seguindo os moldes de
37
TILLICH, 2005, p. 163. 38
Cf. TILLICH, 2005, p. 140. 39
Tillich devemos verificar o significado dos conceitos pressupostos utilizados na sua
revelação a fim de usá-los com consistência lógica, evitando dessa maneira o perigo de
tentar preencher as lacunas lógicas com material devocional40. Sobre esta perspectiva
precisamos considerar o sentido empregado ao termo razão, pois na grande parte do
discurso religioso ele é empregado de forma indeterminada e vaga, forma que na maioria
das vezes se mostra depreciativa.
A razão não é algo finito. Assim, como todas as coisas e acontecimentos ela está
sujeita às condições da existência. Ela se contradiz a si mesma e está ameaçada pela
desintegração e autodestruição. Seus elementos se opõem uns aos outros. Contudo, na sua
vida efetiva a sua estrutura básica não se perde completamente. Caso isso acontecesse, tanto
a mente quanto a realidade se desintegrariam no exato momento em que passassem a existir.
A razão participa, implicando uma união e desunião, de modo permanente nas forças
essenciais e existenciais, forças de criação e de destruição.41 É nesta tensão polar entre os
seus elementos que a razão participa da revelação do mistério, pois a revelação do mistério
é uma manifestação especial e extraordinária de algo que transcendeu o âmbito comum e
durante essa manifestação a pessoa receptora de tal revelação experimenta esta tensão que
deságua sobre ela, quer seja por tradições ou quer seja por decisões arbitrárias que prestam
serviço à vontade de poder. A razão se relaciona com o mistério na sua forma ontológica e
técnica, ela atua no conhecimento da revelação tanto subjetiva como objetivamente e revela
a sua própria profundidade. Uma vez que o uso da razão é um pressuposto da revelação do
mistério é necessária uma aproximação desses conceitos. Pois, para Tillich a teologia deve
deixar claro o sentido em que utiliza os conceitos dos termos apresentados por ela a fim de
evitar equívocos.
I.3.1 Razão ontológica e razão técnica
É possível distinguir o conceito de razão entre um conceito ontológico e um conceito
técnico. O primeiro predomina na razão clássica e se estende desde Parmênides até Hegel. O
segundo, embora sempre permanecesse presente no pensamento pré - filosófico e filosófico,
tornou-se predominante desde o colapso do idealismo alemão clássico e com o
40
Cf. TILLICH, 2005, p. 119. 41
aparecimento do empirismo inglês. Para a tradição clássica a razão é a estrutura da mente
que capacita a apreender e transformar a realidade. Ela é efetiva nas funções cognitivas,
estéticas, prática e técnica da mente humana. A razão clássica é Logos, seja ela
compreendida de maneira mais intuitiva ou mais crítica. Sua natureza cognitiva é um
elemento entre outros, pois ela é cognitiva e estética, teórica e prática, distanciada e
apaixonada, subjetiva e objetiva.
O conceito ontológico da razão sempre está acompanhado, e às vezes substituído, pelo
conceito técnico da razão. Enquanto a razão no sentido de Logos determina os fins para em seguida determinar os meios, a razão no sentido técnico determina os meios e se limita a
aceitar os fins que lhe são dados desde “fora dela mesma”. A razão técnica, por mais sutil
que possa ser em seus aspectos lógicos e metodológicos, anula a natureza humana quando
está separada da razão ontológica, ela só é adequada e significativa como expressão da
razão ontológica e como sua companheira. Na manifestação da revelação do mistério não é
necessário que o ser humano decida entre um destes dois conceitos. Pois, na sua
manifestação ele recorre a métodos da razão técnica ao estabelecer uma linha de
pensamento coerente, lógica e corretamente derivada, aceitando a aplicação dos métodos
cognitivos aplicados pela razão técnica sem levar em consideração a confusão entre a razão
técnica e ontológica. Por isso, a manifestação do mistério não se abala com os ataques que a
razão técnica faz à mensagem cristã, pois ela se dá sob as condições da existência e para
responder as perguntas que lhe são direcionadas ela faz uso do método de correlação.
A razão ontológica é a estrutura da mente que a capacita a compreender e configurar a
realidade. Os filósofos são convictos que o logos, a palavra que apreende e configura a realidade, só pode fazê-lo porque a própria realidade tem o caráter de logos. É por meio da razão ontológica que o ser humano reage a revelação do mistério, pois ela surge dentro de
uma situação concreta de preocupação. Nessa situação a estrutura da razão ontológica
apresenta ao ser humano um histórico de apreensão e configuração que lhe permite superar
a ameaça causada pelo choque ontológico causado pela consciência de finitude apresentada
pelo não-ser.
I.3.2 Razão subjetiva e razão objetiva
Na revelação do mistério a pessoa receptora de tal revelação experimenta sentimentos
à situação concreta em que ela se encontra; o modo particular que essa pessoa reage à
revelação do mistério é guiado pela razão quer ela seja de modo subjetivo ou objetivo.
A maneira como a razão subjetiva se relaciona com a razão objetiva – a estrutura
racional da mente e a estrutura racional da realidade – são descritas de forma clássica em
quatro grandes tipos: O primeiro considera a razão subjetiva como um efeito da totalidade
da realidade sobre a mente, pressupõe-se que a realidade seja capaz de produzir uma mente
racional por meio da qual pode apreender e configurar a realidade; o segundo tipo considera
a razão objetiva uma criação da razão subjetiva atuante sobre uma matéria não estruturada
na qual ela se efetiva a si mesma; o terceiro afirma a independência ontológica e a
interdependência funcional da razão subjetiva e da razão objetiva, indicando para a mútua
realização uma da outra; o último tipo afirma uma identidade subjacente que expressa a si
mesma na estrutura racional da realidade.42
A razão subjetiva é a estrutura da mente que a capacita a apreender e configurar a
realidade sustentando-se em uma estrutura correspondente da realidade. A descrição do
“apreender e configurar” a realidade está baseada no fato de que a razão subjetiva sempre se
efetiva num eu indivisível que se relaciona com seu ambiente e seu mundo em termos de
reação e recepção. A mente recebe e reage. No instante em que a mente recebe
racionalmente apreende o seu mundo e ao reagir racionalmente configura o seu mundo.
Dentro desse contexto, o apreender tem a conotação de penetrar na profundidade, na
natureza essencial de algo ou um evento, de entendê-lo e expressá-lo; configurar tem a
conotação de transformar um material dado numa Gestalt, numa estrutura viva que tem o
poder de ser.
O conhecimento da revelação do mistério é um conhecimento existencial, que implica
participação e distanciamento. Portanto, esse conhecimento está sujeito as determinações
temporais e geográficas. Estas determinações passam por alterações ao decorrer do tempo e
isso faz com que a apreensão do objeto pelo sujeito da revelação do mistério molde – se em
favor da afirmação intelectual vigente. Deste modo o sujeito da revelação, o eu centrado,
observa a realidade fonte da revelação do mistério de acordo com a maneira que o seu meio
a transformou. É claro que por ser um eu centrado e indivisível a realidade também é vista pelo sujeito da revelação de modo particular, contudo esse particular reproduz um esquema
construído por toda a sua existência.
42
A razão subjetiva é a estrutura racional da mente, ao passo que a razão objetiva é a
estrutura racional da realidade que a mente pode apreender e de acordo com a qual pode
configurar a realidade. Ambas as razões são pressupostos para o conhecimento da revelação
do mistério. Não é possível chegar ao conhecimento da revelação sem elas. Pois, uma vez
que a revelação do mistério manifesta-se para o ser humano dentro de uma situação
concreta, a estrutura da realidade correspondente, que a pessoa receptora da revelação
utilizará para reagir, à revelação do mistério será alcançada por meio dela.
I.3.3 A profundidade da razão
A manifestação do mistério na revelação efetiva apresenta-o como fundamento e
abismo, como o poder de ser superando o não-ser. Ele apresenta-se como a preocupação
última do ser humano expressando-se por meio de símbolos e mitos que remetem a
profundidade da razão e seu mistério.43
A profundidade da razão é a expressão de algo que não é a razão, mas que a precede e
se manifesta por meio dela. A razão aponta para algo que surge na estrutura objetiva e
subjetiva, mas que as transcende em poder e significação. Poderíamos chamá-lo a
“substância” que aparece na estrutura racional, ou o “ser em si” que se manifesta no logos
do ser, ou o “fundamento” que é criativo em toda criação racional. Todos esses termos que
apontam para o que precede a razão têm caráter metafórico. Apesar de só ser possível uma
descrição metafórica da profundidade da razão, as metáforas podem ser aplicadas aos vários
campos onde a razão se efetiva.
No âmbito cognitivo a profundidade da razão é sua qualidade de indicar para a
verdade-em-si, isto é, ao poder infinito do ser e do ultimamente real, por meio das verdades
relativas em todos os campos do conhecimento. No meio estético, a profundidade da razão é
sua qualidade de apontar para a beleza-em-si, isto é para um sentido infinito e um
significado último, por meio das criações em todos os campos da intuição estética. Esta
dimensão da razão, a dimensão da profundidade, é uma qualidade essencial de todas as
funções racionais.
A profundidade da razão é aquela característica da razão que explica duas funções da
mente humana, o mito e o culto, cujo caráter racional não se pode afirmar nem negar,
43
porque apresentam estrutura independente que não pode ser reduzido a outras funções da
razão nem ser derivada de elementos psicológicos ou sociológicos pré-racionais. Ela se
manifesta de modo essencial na razão, mas está oculta na razão sob as condições da
existência.44
A razão, como estrutura da mente e da realidade, torna-se efetiva nos processos do ser,
da existência e da vida. O ser é finito, a existência é autocontraditória, e a vida é ambígua. A
razão efetiva participa destas características da realidade. Ela atua por meio das categorias
finitas, dos conflitos autodestrutivos, das ambiguidades e da busca por aquilo que não é
ambíguo, que perpassa os conflitos e a sujeição às categorias. Mesmo sendo finita a razão
possui consciência da sua profundidade infinita. Ela não é capaz de expressá-la por meio de
conhecimento racional, mas o conhecimento desta impossibilidade é conhecimento real.
Durante a manifestação do mistério o choque criado pelo conhecimento do não-ser resulta dessa consciência da profundidade infinita.
I. 4 A participação existencialista na revelação do mistério
A teologia de Tillich é uma teologia existencialista45. O método aplicado por ele
estabelece uma correlação entre uma pergunta existencialista e uma resposta contida em
uma mensagem de fé.
O existencialismo constitui a tentativa de fugir da autoridade imposta pelo
conhecimento controlador e do mundo objetivado produzido pela razão técnica; por ser
dependente do conhecimento controlador para dizer “sim” para qualquer coisa ele deve ou
se entregar a razão técnica ou formular a pergunta pela revelação. Ora, a revelação
reivindica produzir uma união completa com aquilo que se manifesta na revelação46, ou
seja, com o mistério do ser47. Não o bastante, apenas o mistério que é de preocupação última
para o ser humano surge na revelação, em outras palavras apenas o mistério que aponta para
o caráter existencial da experiência religiosa48 do ser humano aparece na revelação.
Quando Tillich recorre ao termo preocupação última ele busca representar a tradução
abstrata do grande mandamento “O senhor, nosso Deus, é o único Senhor. Amarás, pois o
44
Cf. TILLICH, 2005, p. 94. 45
Ele é pelo menos cinqüenta por cento existencialista. Cf. TILLICH, P. Perspectivas da teologia Protestante nos séculos XIX e XX. Trad. Jaci Maraschin. 3ª ed. São Paulo, ASTE, 2004, p. 246.
46
Cf. TILLICH, 2005, p. 113. 47
Cf. TILLICH, 2005, p. 140. 48
Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma, de todo o teu entendimento e
toda a tua força” (Mc 12. 39). Para ele a preocupação religiosa em si é de caráter último, ela
despoja todas as outras preocupações de uma significação última; transformando-as em
preliminares. A preocupação última é incondicional, independente de qualquer condição e
caráter, desejo ou circunstância.49
O termo preocupação indica o caráter existencial da experiência religiosa. Não é
possível falar de modo adequado do objeto da religião sem retirar, simultaneamente, seu
caráter de objeto. Algo que é último, só se dá a si mesmo na atitude de preocupação última.
É o correlato de uma preocupação última, contudo não é uma coisa superior chamada
“absoluto” ou “incondicionado”, sobre o qual se pudesse argumentar com fria objetividade.
O último é o objeto de uma entrega total que exige também a entrega total de nossa
subjetividade.
Preocupação última significa aquilo que determina o ser e o não-ser do ser humano. Apenas aquilo que tenha o poder de ameaçar e salvar o ser pode ser para o ser humano sua preocupação última.50
O termo “ser”, neste contexto, não indica existência no tempo e no espaço. Pois, a existência é continuamente ameaçada e salva por coisas e acontecimentos que não são de
preocupação última para o ser humano. Por isso, a palavra “ser” significa, neste contexto, a totalidade da realidade humana, a estrutura, o sentido e a finalidade da existência.51 É como
sentido e finalidade da existência que o ser se relaciona com a manifestação do mistério, pois diante desta manifestação o ser humano procura compreender o seu próprio ser e, ao
mesmo tempo, busca compreender o seu mundo e a potencialidade do seu ser diante da
realidade concreta em que ele está inserido52.
“Ser” exprime uma ação pura como tal, que as demais ações pressupõem e significam,
uma possibilidade de participação sempre relativa a um sujeito que age consumando. “Ser”
como verbo remete a uma relação de pertença lógica entre um sujeito e um predicado ou
remete à existência.53 O significado etimológico da palavra “existir”, em latim existire, é “estar fora de”. Ao surgir o questionamento do que se está fora se encontra a resposta que
49
Cf. TILLICH, 2005, p. 29. 50
Cf. TILLICH, 2005, p. 30 51
Cf. TILLICH, 2005, p. 31. 52
Cf. HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Trad. Marcia Sá Cavalcante Schuback. 4ª ed. Petrópolis: Vozes, 2009, p. 49.
53
se está fora do não-ser. Dizer que as coisas existem significa que elas têm ser, que estão fora do nada. No grego encontram-se duas formas de compreender o não-ser: como ouk on, isto é, como não ser absoluto, ou como me on, o não ser relativo. Existir, estar fora, aborda a ambos o sentido de não-ser. Assim, no instante em que se afirma que algo existe, afirma-se que é possível encontrá-lo, direta ou indiretamente, no corpo da realidade; ou afirma-seja, que
está fora do vazio do não-ser absoluto. No momento em que se afirma que tudo que existe está fora do não-ser absoluto, afirma-se que está, simultaneamente, no ser e no não ser, que não está totalmente fora do não-ser. Existir, então, significa está fora do seu próprio não-ser.54
A manifestação do mistério ocorre sob as condições da existência, a pessoa receptora
da revelação do mistério a recebe dentro de uma situação concreta de preocupação. A
manifestação do mistério sempre é um evento subjetivo e objetivo em estrita
interdependência que se apodera de um individuo ou de um grupo por meio de um individuo
e, só pode ser recebida na profundidade de uma vida pessoal, em suas lutas, decisões e
auto-entregas. Apenas nestas condições é revelado algo que ainda sim permanece um mistério e
quando ocorre este evento a pessoa receptora da revelação do mistério sente-se excluída
tanto do não-ser absoluto quanto do não-ser relativo.
Para Tillich não basta perguntar do que se está fora, também é preciso perguntar como
é possível que algo esteja fora do seu próprio não-ser. Em resposta a sua pergunta ele
responde que tudo, quer exista ou não, participa do ser. Tudo participa do ser potencial
antes que possa se tornar ser efetivo. Sendo ser potencial, está em estado de não-ser, é um
ainda não-é. Contudo, não é o nada. A potencialidade é o estado de possibilidade real, ou seja, é mais do que uma possibilidade lógica. A potencialidade é o poder de ser que, falando
de modo metafórico, ainda não se tornou efetivo. Sendo assim, ao se dizer que algo existe
significa dizer que esse algo abandonou o seu estado de mera potencialidade e se tornou
efetivo, que esse algo está fora da mera potencialidade, fora do não-ser relativo. Por isso que a revelação do mistério se dá para uma pessoa que vive uma situação limite que, via de
regra, é uma situação que expõem a sua finitude.
Para que algo se torne efetivo deve superar o não-ser relativo, o estado de me on. Ele não pode estar plenamente fora dele. Deve estar, simultaneamente, fora e dentro do me on. Algo que é efetivo está fora da mera potencialidade, contudo permanece nela. Não joga
54
exaustivamente o seu poder de ser no estado de existência. Nunca cessa suas
potencialidades. Permanece não apenas no não-ser absoluto, como revela sua finitude, mas também no não-ser relativo, como demonstra o caráter mutante de sua existência.
Em suma o termo existência pode significar estar fora do não-ser absoluto mesmo
permanecendo nele; pode significar finitude, a união do ser e não-ser. Da mesma forma,
existir pode significar estar fora do não-ser relativo ao mesmo tempo em que se permanece nele; pode significar efetividade, a unidade do ser efetivo e a resistência contra ele. Contudo, recorrendo a um sentido ou outro do não-ser, existir sempre significa estar fora do
não-ser.55
Essa ruptura no conjunto da realidade é uma das primeiras descobertas do pensamento
humano. As mentes pré-filosóficas anteriores a Platão experimentaram dois níveis de
realidade. Podemos chamá-los de nível de “essencial” e nível “existencial”. A existência, de acordo com Platão, é o reino da mera opinião, do erro e do mal. Ela necessita de verdadeira
realidade. O verdadeiro ser é o ser essencial, que está localizado no universo das ideias eternas, ou seja, nas essências. Para atingir o ser essencial o ser humano deve ergue-se
acima da existência. Sobre esse prisma, a existência do ser humano, seu estar fora da
potencialidade, é compreendido como uma queda daquilo que o ser humano é
essencialmente. O potencial é o essencial, e existir, ou seja, estar fora da potencialidade, é a
perda da verdadeira essencialidade. Não é uma perda total, visto que o ser humano ainda
permanece em seu ser potencial ou essencial.
O existencialismo dos séculos dezenove e vinte nasceu como protesto contra o
essencialismo. Os pensadores existencialistas atacaram a ideia essencialista como tal e, com
ela, todo o desenvolvimento moderno da atitude humana para consigo mesmo e para com o
mundo. Seu ataque foi e permanece sendo uma revolta contra a autointerpretação do ser
humano na sociedade industrial.
Todas as investidas existencialistas coincidem na afirmação de que a situação
existencial do ser humano constitui um estado de alienação da natureza essencial. Para os
existencialistas a reconciliação é objeto de antecipação e expectativa, contudo não é uma
realidade. A humanidade não está reconciliada, nem no individuo, nem na sociedade, nem
na vida como tal. Existência significa alienação e não reconciliação; é desumanização e não
expressão da humanidade essencial. A existência é o processo pelo qual o ser humano se
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