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CAPÍTULO I CONCEPÇÕES E POSIÇÕES POLÍTICAS SOBRE O ABORTO

1. Onde há dúvida, há liberdade!

1.2 A permissão seletiva: uma ponderação de direitos

Posição assumida por muitos religiosos, profissionais de saúde, juristas, legisladores e mesmo por grupos engajados na defesa dos direitos da mulher, é também uma posição comum entre as mulheres e na população em geral. Várias religiões adotam a posição moderada. Com base em diferentes princípios, na perspectiva protestante, muçulmana, judaica, hinduísta,

budista e chinesa encontram-se justificativas para as condições em que o aborto pode ser realizado (FAÚNDES & BARZELATTO, 2004). Segundo Papaleo (1993) ela é socialmente a posição mais aceita pela maioria das pessoas, instituições e países.

Essa visão tende a ser dominante na formulação de leis, pois na maior parte dos países com legislação permissiva há alguma restrição à sua prática. Citando a Divisão de População das Nações Unidas, Faúndes e Barzelatto (2004, p. 137) apresentam um quadro geral dos países cuja legislação prevê situações em que o aborto é permitido. De um total de 193 países, 189 o permitem para salvar a vida da mãe; 122 para preservar a saúde física; 120 para preservar a saúde mental; 83 em casos de violação ou incesto; 76 quando há malformação fetal; 63 por razões socioeconômicas e 52 a pedido da mulher. Os países considerados desenvolvidos, proporcionalmente são os que mais asseguram o aborto a pedido da mulher.

Nos últimos anos, por meio de pesquisas de opinião e do acompanhamento do debate na mídia, que é também um reflexo da opinião pública, pode-se identificar um posicionamento moderado da sociedade brasileira com relação ao aborto. A partir da implementação dos primeiros serviços de assistência ao aborto legal, os permissivos legais tornaram-se mais conhecidos. Um ator importante nessa divulgação foi a grande mídia, isto é, os grandes jornais de circulação nacional e a televisão. O debate que este assunto vem provocando, em diversas ocasiões, colaborou para que mulheres e homens pensassem sobre o assunto e formassem uma opinião. Hoje há uma grande aceitação dos permissivos legais, mesmo entre praticantes católicos e de outras religiões. Também há uma grande aceitação da interrupção de gravidez por anencefalia e outras malformações fetais graves. Para diversos pesquisadores, inclusive que trabalham na mídia, esta é a posição majoritária na sociedade brasileira hoje.

A sociedade brasileira [...] é favorável ao aborto em caso de estupro numa média, em 80%, mesmo entre os religiosos. As Católicas [pelo Direito de Decidir] acabaram de fazer uma pesquisa, na qual mais de 70% são a favor. Quando o Papa veio ao Brasil foram feitas três pesquisas, uma pelo datafolha e uma publicada no jornal do Brasil, com católicos, na saída das igrejas e o aborto pós-estupro teve uma aceitação na ordem de 70-75%. [...] É uma questão de entendimento da sociedade, de aceitação do aborto nos casos de estupro e risco de vida da gestante. Uma aceitação majoritária, mas isso não significa que essa questão ainda não seja individualmente um conflito, que individualmente ela não gere muitas tensões (Entrevista nº 08. Filósofa / mestre em Jornalismo / feminista).

A aceitação dos permissivos legais pela sociedade revela, de certa maneira, que ela não deseja, pelo menos neste momento, a liberação total. Ao mesmo tempo em que compreende que a mulher pode ter necessidade de abortar, a sociedade parece cobrar que ela aja com “responsabilidade”. Se a mulher reivindica o direito de escolher e de regular a sua vida sexual e reprodutiva, em contrapartida ela tem obrigações e uma delas é a prevenção da gravidez indesejada. E esta cobrança parece ser maior em relação às mulheres do que em relação aos homens. O aborto não é aceito como substitutivo dos anticoncepcionais. A autonomia e a liberdade implicam assumir responsabilidade consigo e com a própria saúde. O

avanço da sociedade, a mudança nas relações sociais entre homens e mulheres, a mudança do papel da mulher parece trazer novas exigências:

Talvez isso venha de nossa evolução enquanto mulheres na sociedade brasileira, que nos colocou mais exigências. Nós estamos vindo de 20 anos, no mínimo, onde tivemos mais acesso à informação, mais acesso à escolaridade, mais acesso ao mercado de trabalho, mais acesso a uma porção de coisas... A sociedade passou a nos ver de outra maneira porque nós exigimos isso, nós estamos exigindo ser vistas de outra maneira e essa sociedade ficou mais exigente. (...) A sociedade vai dizer: você é mais autônoma, é mais informada, quer mais coisas é? Então você vai ser mais responsável por você mesma. É uma exigência das mulheres com elas mesmas (Entrevista nº 08. Filósofa / mestre em Jornalismo / feminista).

Estas são idéias que, segundo a entrevistada, merecem investigação mais profunda. Outros fatores, no entanto não podem ser minimizados na construção deste pensamento na sociedade atual, como o crescimento da religiosidade da população, o avanço das Igrejas Evangélicas e sua poderosa estratégia de comunicação televisiva, e o incremento da ação da Igreja Católica com suas campanhas contra o aborto nas últimas décadas.

Vários autores entendem que a permissão seletiva não desrespeita a vida humana, e sim aceita que a mulher tenha suas próprias razões para interromper uma gravidez. Considera que em determinadas condições o aborto seja uma conduta moral adequada e preocupam-se com a vida da mulher, suas condições psicológicas, afetivas e materiais. Defendem a vida, mas entendem que a vida e possíveis direitos do feto não estão acima dos direitos da mulher. É uma posição solidária e humanitária, em que se busca minorar o sofrimento humano da mulher e em muitos casos de sua família. A permissão seletiva respeita a liberdade e a autonomia da mulher e reconhece que os valores éticos e morais não podem se materializar em situações abstratas (THOMSON, 1992).

Outros pesquisadores afirmam que se deve considerar seriamente a questão do aborto e que as pessoas responsáveis pela gravidez, homens e mulheres, não podem simplesmente deixá-la acontecer para depois abortar, porque o feto tem um valor moral. Quanto mais avançada a gravidez, mais difícil é a tomada de decisão e mais difícil é para o médico aceitar a realização do aborto. Salientam que em relação ao aborto, as divergências podem ser menores do que se pensa, pois para muitas pessoas as dificuldades residem em expressar publicamente suas opiniões com receio de serem censuradas. Além disso, é possível defender os direitos da mulher e “ser contra o aborto”, isto significa dizer que todos são contra o aborto, mas deve-se reconhecer que a sua prevenção não está nas leis restritivas, que transformam o aborto em crime.

Como qualquer obstetra que dedica sua vida a defender o feto juntamente com a mulher que o carrega, acho que o aborto é sempre um acontecimento indesejável. Inicialmente, ainda estudante de medicina, condenava a mulher que fazia um aborto, até que comecei a escutar suas histórias. Assim aprendi que a mulher que aborta é vítima de um conjunto de circunstâncias, que não cabe enumerar aqui. Aprendi também, que apesar de que a maioria delas fica aliviada após um aborto e ciente de ter feito a coisa certa, praticamente todas teriam preferido não passar por essa traumática experiência. Por isso sou

contra o aborto, ao mesmo tempo sou contra que se transforme a mulher que aborta em criminosa. Para mim, ser contra o aborto é atuar para evitar suas causas, que vão desde as diferenças de poder entre homens e mulheres até a falta de proteção social verdadeira para a mulher que decide ter um filho. Essa proteção passa pela informação completa e honesta sobre os métodos anticoncepcionais e pelo livre acesso a seu uso. A experiência mundial mostra que criminalizar o aborto não impede que ele ocorra, apenas aumenta o sofrimento e o risco de morte da mulher (Entrevista nº 04. Professor de obstetrícia; consultor permanente da OMS).

Pesquisa realizada pela organização não governamental Ipas (2002), com 171 médicos ginecologistas e obstetras, durante o Congresso Nacional da categoria organizado pela Febrasgo, apresentou os seguintes resultados: 90% dos entrevistados reconheciam a legalidade da interrupção da gravidez pós-estupro e 95% concordavam com a interrupção para salvar a vida da gestante. No caso de estupro a maioria, 72% era de opinião que o aborto fosse realizado até a 12ª semana de gestação.

O limite de tempo para a interrupção da gravidez é uma das restrições mais freqüentes. A definição deste limite está associada a dois aspectos: o risco para a mulher, que aumenta quando a interrupção é feita tardiamente e o constrangimento que os profissionais de saúde enfrentam para realizar um aborto com o feto completamente desenvolvido. Constrangimento superado muitas vezes se a motivação para interromper a gravidez for a preservação da vida da mãe ou se este feto for inviável após o nascimento.

Muitas feministas concordam que é preciso estabelecer limites de tempo para a interrupção. Mas como as dificuldades dos médicos não se restringem a este aspecto, pois muitos deles têm também dificuldade com o aborto em qualquer fase da gestação, isto tem sido um ponto de tensão entre eles. Com freqüência, as feministas não aceitam (ou não entendem) que um médico seja favor do direito da mulher abortar e não queira realizar o procedimento abortivo, o que pode ser entendido como uma atitude hipócrita. Mas para os médicos esta é uma situação decorrente da própria formação médica, e eles nem sempre estão preparados para fazer uma ponderação entre os direitos do feto e os da mulher.

Muitas vezes o movimento de mulheres não percebe algo que eu repito muito: é muito diferente você estar de acordo em fazer aborto e fazê-lo. É uma diferença enorme entre você dizer execute-se tal ordem e você executá-la. [...] Fazer um aborto nunca é agradável, sempre é extremamente desagradável. É um projeto de feto que você está educado a proteger, não é? Então é muito difícil fazer, muito mais difícil fazer do que você estar de acordo em que se faça. Isso é algo que eu acho que tem que tomado em conta. Tem que ser considerado que nós fomos formados para proteger o feto. Então muitas vezes, esse diálogo deixa de ser respeitoso e não leva em consideração as peculiaridades da posição de cada um. Os médicos muitas vezes não entendem a peculiaridade de ser mulher e sentir-se com direito ao seu corpo e muitas vezes as mulheres não entendem as peculiaridades do parteiro que está acostumado a defender o feto, e que tem uma dificuldade de dizer: bom, deve ser feito, é preciso (Entrevista nº 04. Professor de obstetrícia; consultor permanente da OMS).

Há que se aprofundar o debate sobre o papel, o poder e os direitos dos médicos de tomarem decisões que têm profundo impacto sobre a vida das mulheres, em particular

daquelas que recorrem aos serviços públicos de saúde, que na maioria das vezes não podem escolher um profissional de sua preferência ou que tenha convicções filosóficas, morais ou religiosas semelhantes às suas. Como ponderar o respeito aos direitos dos médicos e aos direitos das usuárias? Como manejar tantas variáveis para que todos sejam respeitados e assegurar que as mulheres tenham suas necessidades atendidas?

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