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A revisão da lei punitiva: demanda das mulheres, resposta do Estado

CAPÍTULO IV: ABORTO LEGAL NO BRASIL: ENTÃO EU POSSO FAZER?

3. A gestão federal na implementação do aborto legal 1 O papel do Ministério da Saúde

3.2. O papel da secretaria especial de políticas para mulheres

3.2.1. A revisão da lei punitiva: demanda das mulheres, resposta do Estado

Em resposta à demanda formulada na I Conferência de Políticas para Mulheres, para revisar a legislação punitiva sobre o aborto, foi criada pela presidência da república a Comissão Tripartite, com representação da sociedade, do governo, e do legislativo.

A formação desta Comissão provocou um amplo debate, publicado nos jornais de circulação nacional. A proposta do governo não incluía representantes de grupos religiosos, por entender que não havia espaço para indicação de todas as religiões existentes no Brasil, e que não seria democrático chamar uma Igreja para representar a todas quando não há consenso entre elas sobre o tema. Além disso, havia questionamentos acerca da adequação desta participação num país que em sua Constituição afirma o caráter laico do Estado.

Quando discutíamos a representação da sociedade civil, em determinado momento da discussão foi pensado que era importante ter uma representação que trouxesse para a Comissão alguns aspectos da religiosidade, de como as religiões interferem, ou historicamente se posicionaram sobre esta questão. E nós nos deparamos com uma dificuldade muito grande, que era: quem pode falar na medida em que as religiosidades são muitas, múltiplas, e que todas nós devemos nos pautar pelo respeito absoluto a todas elas, entendendo que isso faz parte de uma opção absolutamente pessoal. E o outro aspecto é que a nossa Constituição diz que o Estado Brasileiro é laico, portanto quando nós fazemos a revisão de uma legislação punitiva em relação ao aborto, nós estamos aí fazendo uma discussão de como devemos construir uma política que responda à necessidade do atendimento à mulher nessa situação de abortamento. Então nós estamos no campo de uma responsabilidade governamental, no campo da necessidade de construir uma política pública que venha a assegurar um direito à mulher, e eu estou falando no caso da ampliação desses dois e limitados direitos que a mulher tem, que é quando a gravidez é fruto do estupro e quando ela põe em risco a saúde (Entrevista Nº 12. Secretária adjunta da SPM; militante política / ex-deputada federal). A Igreja Católica, com o argumento de ter o maior número de fiéis em relação a outras religiões, pretendia ter assento na Comissão. O governo discutiu com o Conselho Nacional de Igrejas Cristãs - CONIC, cogitando aceitar uma representação desta instituição. Porém, reconhecendo que há diferentes opiniões sobre o aborto dentre estas Igrejas, em carta enviada à Secretaria Especial de Políticas para Mulheres - SPM, responsável pela coordenação do trabalho da Comissão Tripartite, o presidente deste Conselho declinou do convite.

O CONIC procede conforme seu estatuto: quando as igrejas sentam, discutem um tema e chegam a um consenso, então sim, o CONIC pode falar em nome das igrejas. Esse foi o problema. Nós nunca tínhamos sentado para discutir a questão do aborto. Até porque a gente sabia que esse é um tema difícil e onde nós temos divergências (...) No fundo as igrejas concordam. Por exemplo, concordam na indissolubilidade do casamento, mas sabemos qual é a realidade e temos que fazer o que é possível. Concordam todos com a promoção da vida e a proteção à vida, só que quando se chega à questão do aborto, algumas igrejas admitem os dois casos previstos em lei. Por exemplo, a luterana admite (...) Todos somos a favor da proteção à

vida, da vida que está por nascer, mas tem casos onde tem que ser feito uma escolha (...) A igreja católica, era a que mais queria estar nessa Comissão, os grandes jornais de São Paulo trouxeram isso dias a fio. Mas eu tinha que dizer isso mesmo que eu disse para a senhora também, que nós não temos um posicionamento comum e que não podemos então falar em nome das igrejas. As igrejas nesse caso não reconheceriam nossa fala, nossa autoridade (Entrevista Nº 07. Membro do Conselho Nacional de Igrejas Cristãs).

Em relação à participação do legislativo, a Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (SPM) propôs ao então presidente da Câmara, deputado Severino Cavalcanti, que indicasse os/as parlamentares escolhidas pela bancada feminina no Congresso. Mas como autor da PEC 25/95, projeto de lei que propõe que o aborto seja um crime hediondo e líder da luta pela revogação da Norma Técnica do Ministério da Saúde para assistência ao aborto legal, Severino Cavalcanti não surpreende, e desrespeitando as indicações da bancada feminina, envia à Comissão Tripartite nomes alinhados com as suas posições ideológicas.

A Comissão Tripartite, sob a coordenação da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, foi composta por três deputadas, uma senadora e dois senadores. Pelo executivo, participaram o Ministério da Justiça, o Ministério Saúde, a Secretaria Especial de Direitos Humanos, a Casa Civil, e a Secretaria Geral da Presidência. Pela sociedade civil a representação foi discutida e decidida pelo Conselho Nacional dos Direitos da Mulher - CNDM, sendo indicadas a Rede Feminista de Saúde, a Articulação de Mulheres Brasileiras - AMB, a Associação de Mulheres do Mercosul, a Central Única dos Trabalhadores – CUT, a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência - SBPC e a Federação Brasileira de Ginecologia e Obstetrícia - Febrasgo.

A partir do momento que a Comissão definiu a sua linha de trabalho e deixou claro que o projeto a ser encaminhado ao Congresso seria de legalização do aborto, os(as) parlamentares contrários(as) ao direito ao aborto deixaram de comparecer às reuniões. O resultado final formulado em termos de um anteprojeto de lei, não representa, portanto um consenso de seus representantes. Mas sua legitimidade está assegurada pela forma como foi proposta a sua constituição e a sua finalidade.

A I Conferência Nacional de Políticas para Mulheres discutiu o tema do aborto nos oito grupos de trabalho e em todos eles foi aprovada a proposta de revisão da lei do aborto. Participaram desta Conferência 02 mil mulheres provenientes de todo o Brasil. As Conferências locais envolveram mais de 120 mil mulheres, e apenas no estado de Minas Gerais não foi tirada a resolução de revisão da lei.

E entre essas mulheres estavam os movimentos feministas, estavam os movimentos de mulheres mais ligadas aos movimentos sociais, às lutas de reivindicações mais populares, estavam as militantes na área direito da mulher à saúde. Então a Conferência era por si um espaço de muita representatividade e em todas as conferências estaduais este tema foi abordado e de lá veio já indicação da discussão que deveria ser feita em âmbito nacional. E, o único estado brasileiro, que não aprovou na sua conferência estadual, a revisão da legislação sobre o aborto, foi Minas Gerais. E, eu não estou dizendo que o estado de Minas é contra, mas aqueles e aquelas que participaram da Conferência estadual em Minas não tiraram a resolução favorável à

revisão que foi tirada nas outras conferências, entende? Então considerando que essa discussão já veio de baixo, ela chega à Conferência Nacional, que indica essa necessidade. E foi respeitando o próprio universo da conferência, que o executivo, por meio da SPM, teve o entendimento que a discussão sobre a revisão deveria ser feita com a constituição de uma comissão que resgata a sociedade civil que estava na conferência, traz o governo porque a iniciativa é do governo, a coordenação da Comissão é do governo (...) e o Congresso Nacional, a quem cabe e tem a competência de revisar a legislação. Então, nós estamos aprofundando uma discussão e fazendo uma proposta que vai ao Congresso Nacional, e com toda a certeza, aí sim, vai ser o palco de discussão desse tema (Entrevista Nº 12. Secretária adjunta da SPM; militante política / ex-deputada federal).

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