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Proibição do aborto e permissivos legais: uma proteção à mulher?

CAPITULO II: ABORTO LEGAL: DIREITO OU CONCESSÃO REVELADORA DA OPRESSÃO DE GÊNERO?

3. Proibição do aborto e permissivos legais: uma proteção à mulher?

Ainda que o respeito aos valores republicanos e liberais, de autonomia e liberdade de homens e mulheres, indiquem o caminho do respeito à decisão individual em casos como o aborto, ato que pode ser considerado uma questão de foro íntimo, a legislação brasileira limita o direito da mulher e das famílias, no caso de menores e de incapazes, decidirem livremente sobre a manutenção ou não da gravidez, indesejada ou inviável.

Esta situação nos dá a possibilidade de analisar a lei pelo menos sob duas perspectivas: tomando como referência a criminalização do aborto, podemos entendê-la como

negação dos direitos sexuais e reprodutivos da mulher. Observando os permissivos legais podemos encontrar aí indícios de proteção à honra e à saúde da mulher. Acreditamos que ao negar a liberdade de escolha à mulher, os legisladores se mostraram em consonância com o seu tempo, trazendo para o debate argumentos que reforçam a discriminação de gênero. Os permissivos legais, por outro lado, revelam uma posição humanitária, talvez piedosa com a mulher em risco de vida ou violentada, uma defesa da família ao optar pela vida da mulher, já mãe e esposa, defesa da honra - sexual na mulher - e a honra dos homens da família.

As ressalvas que permitem a interrupção da gravidez são coerentes com a ponderação de direitos para se fazer escolhas quando dois bens jurídicos estão em conflito. Sacrifica-se o que é considerado um bem de menor valor jurídico em favor daquele de maior valor. Na gestação de alto risco sacrifica-se o feto, vida potencial, em favor da mãe, vida plena. Mas o que é vida para o legislador, para o jurista, para o direito penal? É a mesma vida de que falam os religiosos quando dizem: ali tem uma vida e nada poderá tocá-la? Não. Para compreender este conceito para o Direito Penal sigamos a explicação de um doutor em direito penal:

Vida para o Direito Penal, não é dom, não é alma, não é intocável, nem é fruto santificado. Vida é um bem jurídico integrante da personalidade, sujeito à tutela penal. E esta tutela é prestada com base nos mesmos padrões estabelecidos para os demais bens jurídico-penais, sejam os que, como a vida, incorporam-se à pessoa humana, sejam aqueles que se incorporam à ficção normativa como a pessoa jurídica empresarial, o Estado, ou, também a coisa. É, portanto um sistema de codificação totalmente laico, com plena indiferença aos conceitos que associam vida e religião, ou pelo menos, vida e dogmas de fé (Diniz & Ribeiro, 2004, p. 96).

Se no caso do risco de vida da gestante, em meio a um conflito, sacrifica-se a vida do feto em favor da vida da mãe, no caso do estupro a “supressão sentimental de uma gravidez

oprobiosa, desde que assim entendida pela gestante ou por quem a representasse” no dizer

de Papaleo (1993, p. 46) se faz em nome de que? Qual o bem jurídico que se protege e resguarda sacrificando-se a vida do feto?

A gravidez oprobiosa é aquela que causa “grande desonra pública; degradação social; vergonha, vexame; humilhação, degradação; avilta; afronta”. A palavra utilizada para definir a gravidez por estupro, indica a importância dada naquela época ao que estava em jogo: enfrentar publicamente a gravidez ilegítima, a vergonha da violação sexual; enfrentar a dúvida que poderia instalar-se quanto à conduta da agredida: teria ela concordado? Reagiu com vigor ou cedeu facilmente e teve prazer com a violação? Se a mulher fosse casada, como ficaria o seu marido exposto à vergonha de ter sua mulher “possuída” por outro homem? E, além disso, como enfrentar os riscos aos quais a família estaria exposta com o nascimento de uma criança gerada por um estuprador, ou seja, por um depravado. Reais ou não estes riscos eram uma preocupação na medida em que se tinha conhecimento de teses científicas, em voga na época24, que associavam genética e criminalidade.

24 O determinismo científico leva cientistas como Lombroso a considerar o delito como fato biológico, com

causas genéticas que se manifestam fenotípicamente. Ele afirmava a existência de criminosos natos, cujo destino era delinqüir sempre que estivessem em determinadas condições ambientais.

Alguém vai dizer assim: no passado se autorizou o aborto porque era inaceitável que uma família fosse contaminada pelo sêmen maldito de um criminoso, de um sujeito marginal, estuprador. As mulheres casadas não podem obrigar os seus maridos a serem pais de filhos bastardos de criminosos, é uma motivação de natureza social. E as filhas de famílias não podem ser compelidas a criarem filhos de tarados sexuais e etc, etc. A primeira idéia que se dá para a autorização do aborto de filhos do crime é preservar a família dos membros que surgirão filhos dos tarados sexuais. Essa é a primeira idéia quando se olha para os anos 1940, mas e hoje, esse argumento se mantém? Se essa história era verdadeira, hoje não pode ser a mesma (Entrevista nº 01. Promotor de justiça / pós-doutor direito e em medicina).

Estaria neste depoimento uma referência não explicita à noção de honra conforme entendimento da época? O que seria a honra para a nossa sociedade nos anos 1940? Analisando a sociedade brasileira, e mais particularmente a Capital Federal, o Rio de Janeiro, em sua obra “Em defesa da Honra” Caulfield (2000, p. 160-161) afirma que os discursos de Viveiros de Castro (1898) e de Nelson Hungria (1930), responsável pela elaboração do Código Penal, no que se refere aos critérios para definição da honra, para distinguir uma mulher honesta da desonesta nos processos de crimes sexuais, embora separados por três décadas eram semelhantes. Para esta autora, embora o comportamento da mulher não tivesse mudado quando comparado às décadas anteriores, se continuava sendo comum manter relações pré- nupciais e a existência de uniões consensuais e famílias chefiadas por mulheres, o contexto no qual estes comportamentos eram interpretados tinha mudado, deixando juristas como Hungria mais incertos quanto à defesa da honra sexual pelos tribunais. Ele, Roberto Lira e o médico legista Afrânio Peixoto questionaram o valor da virgindade e da honra sexual como fator importante para o desenvolvimento das civilizações (crença bastante forte em décadas anteriores), e afirmavam que, ao contrário, esta valorização excessiva poderia ser na verdade uma marca do atraso das instituições sociais e políticas brasileiras.

As mudanças no corpo social, se não revolucionárias, se materializam devagar, e seguramente numa velocidade menor do que os discursos. Na sociedade brasileira, mesmo com todas as campanhas contrárias, do início do século aos anos 1980, a defesa legítima da honra foi argumento suficiente para a absolvição, ou para redução da pena, de muitos criminosos ofendidos pela confirmação ou suspeita de adultério.

Nos anos 1930, multiplicavam-se os crimes passionais. Mas, enquanto esta situação era percebida como “horrenda calamidade que vem acometendo nosso organismo social”, por Carlos Sussekind de Mendonça, o criminalista Evaristo de Moraes, que já então tinha fama de defensor dos excluídos, argumentava a favor dos crimes passionais. Em razão de sua competência como criminalista sua defesa associada à justiça social e de grande sofisticação teórica tornou-se muito difícil de ser combatida (CAULFIELD, 2000, p. 171-172).

Em defesa da honra! Não foi outra a causa da morte do irmão de Nelson Rodrigues em 1929. Sentindo-se aviltada pela deturpação da noticia de seu desquite, amigável, a jornalista Sílvia Tibau, aos 27 anos, para limpar a sua honra de uma acusação de adultério, procurou a redação da Crítica para falar com Mário Rodrigues. Não o encontrando pediu uma conversa reservada com o seu filho Roberto e o assassinou com um tiro à queima roupa. Fato incomum

por ser mulher a assassina, o caso recebeu tratamento bem desigual em relação a crimes semelhantes cometidos por homens. Tibau foi alvo de uma grande campanha para sua condenação. Segundo Caulfield (2000), algumas mulheres também se organizaram para pedir a absolvição de Silvia Tibau, embora não se saiba se elas eram as mesmas que lutavam para derrubar o argumento de defesa da honra que legitimava o assassinato de mulheres.

Apesar da defesa da honra para justificar crimes passionais ter perdurado durante décadas, desde aquela época a sociedade se dividia em relação e o argumento era contestado por escritores como Benjamim Costallat e por Lima Barreto que não aceitavam serem as mulheres responsabilizadas pela violência sofrida passando de vítimas a algozes.

O crime do estupro fere a honra das mulheres e dos homens da família. Mas será esta a principal motivação para que se permita a interrupção da gravidez dele decorrente? Ou teria o legislador e a sociedade motivações de outra natureza?

A lei, não é feita para ser modificada a cada dia e por isso precisa ter um caráter de estabilidade, mas ela pode ser interpretada e reinterpretada em diferentes momentos históricos quanto às suas motivações originais. E, é preciso, que os operadores do direito sejam capazes de fazê-lo para manter a atualidade da lei, acompanhar a sociedade e responder os desafios ela impõe. Numa leitura diferente do permissivo legal para o aborto, há quem entenda, como no depoimento citado a seguir, que não se tratava somente de recuperar a dignidade da mulher, ainda que isto seja fundamental, mas também de proteger a saúde psicológica da mulher.

Não sei se alguém já disse isso, mas existe por trás disso uma idéia que não está dita, mas está prevista implicitamente, o direito é feito também disso, é a proteção à saúde psicológica. A lei preservou a saúde psicológica da mulher não obrigando esta mulher a criar um filho de um criminoso (Entrevista nº 01. Promotor de justiça / pós-doutor direito e em medicina).

Esta motivação pode ter estado presente em 1940, pois segundo Nelson Hungria, nos comentários ao Código Penal:

O estupro é um grave crime de violência sexual, punido com pena de seis a dez anos. Nada justifica que se obrigue uma mulher estuprada a aceitar uma maternidade odiosa; que se dê vida a um ser que lhe recordará perpetuamente o horrível episódio da violência sofrida (Hungria, 1955, volume V, p. 304).

Analisando este pequeno trecho de sua defesa do aborto pós-estupro, pode-se retirar daí uma idéia subjacente de proteção à honra sexual quando o jurista se refere à gravidade do crime do estupro, mas também outro argumento que seria uma proteção à saúde mental da vítima, quando afirma que o filho do estuprador “lhe recordará perpetuamente o horrível episódio da violência”. Hoje, sabe-se que o estupro é uma das causa principais do stress pós- traumático, condição que pode evoluir para a depressão, e que no início tem como um dos sintomas a recordação intermitente do episódio de violência.

Essa idéia de proteção à mulher é explorada na análise dos outros artigos da legislação brasileira sobre o aborto. Como afirma Ribeiro (DINIZ & RIBEIRO, 2004, p.110), “o legislador teve como bem jurídico-penal primordial a pessoa da mulher grávida” e disso é

demonstrativo o fato de que “o Código Penal pune a exposição da vida ou da saúde da mulher a risco, tendo apenas incidentalmente a finalidade de proteger a “vida” do feto”. Prosseguindo este autor acrescenta: a punição maior de 3 a 10 anos para o aborto sem consentimento da gestante (artigo 125) em relação à pena de 1 a 4 anos para aquele que ela consente (artigo 126) é a favor da mulher. Para ele, “no princípio, o aborto foi proibido para reduzir as “altas taxas de mortalidade e morbidade decorrentes das técnicas empregadas para a interrupção de gravidez” e assinala o artigo 127 onde registra-se “a pena aumentada de um terço” se o aborto leva a lesão corporal grave, e a duplicação da pena se houver morte da gestante.

Outra proteção à mulher se deduz da punição com penas severas para a prática do aborto sem consentimento da gestante, mesmo se a gravidez resultar de um estupro.

Uma coisa boa que a lei tem é que o aborto não pode ser feito sem autorização da mulher, isso eu acho uma coisa muito boa, que poderia ter sido deixada em branco (Entrevista nº 05. Médica. Médica sanitarista / gestora).

Entende-se desde 1940 que à mulher cabe a decisão final. Mesmo numa sociedade que atribuía grande valor à honra dos homens, dos chefes da família, mesmo estando a mulher submetida ao seu pai ou marido, ou seja, ao comando dos homens de sua família, mesmo o estupro tendo o caráter de humilhação e desonra, ainda assim, a mulher que engravida após um estupro, tem assegurado, pelo menos na letra da lei, o direito de dizer que não abortaria o filho ilegítimo.

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