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A relação sexual, na vida conjugal, deve servir como instrumento para a formação e o desenvolvimento de relações afetivas simétricas e reversíveis (FOUCAULT, 1985, p. 183).

Partindo do pressuposto de os elementos apresentado no capítulo anterior atuam como dispositivos de ação da sociedade capitalista – e aqui eu me permito afirmar que este estudo é sobre uma sociedade que se estrutura num padrão capitalista – tem-se que a escolha, embora

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considerada livre nesta sociedade, está associada a um conjunto bastante articulado de regras e valores morais que regem a conduta de seus membros. Isso implica, necessariamente, numa constante avaliação das trajetórias afetivas e sexuais, de modo que assim se possa codificar as ações e, a partir daí, classificar quais sujeitos são ou não possíveis de estabelecer um vínculo conjugal permanente e duradouro. Há, portanto, nestas sociedades, uma forte pressão sobre as escolhas individuais e coletivas, que se exerce nos diferentes níveis sociais e que exige dos indivíduos uma conduta conveniente com as práticas e o sistema de gostos, atitudes ou valores do seu grupo ou com os quais se comunicam.

Podemos considerar que o modo peculiar pelo qual a monogamia se constituiu também contribui para a existência desse complexo moral, cuja seleção do par conjugal, mesmo não sendo o tema principal, é, ao menos, o horizonte sobre o qual as pessoas se baseiam para realizar escolhas segundo critérios moralmente definidos, como fidelidade, lealdade, honestidade, integridade – embora com um maior rigor na avaliação das práticas e condutas femininas.

Além de comporem o da seletividade, estes critérios servem de base para a avaliação dos riscos que se pode correr em um envolvimento afetivo ou emocional onde o indivíduo com conduta considerada irregular, instável ou , é definido como suspeito de corrupção moral. Esta suspeita pode não ocorrer em outros domínios de convivência, como no trabalho, na escola, amizade, paquera, mas é substancialmente importante em termos de casamento, pois está diretamente ligado ao controle exercido pela sociedade sobre a aliança conjugal.

Quando Foucault afirma que a monogamia é a mais expressiva dimensão da escolha na cultura ocidental, conclui-se que, diante de sua relação com um complexo moral originado com o advento do direito e da noção de propriedade, estamos a tratar de uma relação de forças que, embora seja limitada pelo cultural, não deixa de ser uma conseqüência de nossa história moral, regida pelas mesmas condições que nos permitiram o desenvolvimento econômico, político e social. No que se refere à constituição do casamento, algumas se naturalizaram em função dessas relações de forças. Naturalização que se constituiu com base numa apropriação dissimulada dos corpos e da identidade dos sujeitos.

Desta análise obtém-se que as concepções de monogamia e casamento giram em torno de uma apropriação e expropriação dos sujeitos, uma vez que o antigo direito sobre a vida e a morte foi transferido do poder real, em que o soberano possuía a legítima entidade de gládio, para o Estado moderno.

Controlando o progresso e a ordem das populações em desenvolvimento no mundo ocidental, o bio-poder deste Estado de direito reverteu o sentido sobre a vida e a morte existente

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outrora. Já não é mais o pátrio-poder quem determina os rumos da vida dos seus subalternos, mas a lei. A lei moderna, subestimando a vida individual, passou a adotar o discurso do bem- estar e bem-comum para defender o direito à vida e o direito de morte. Tal discurso foi e continua sendo bastante absorvido pelo domínio público, em que o conflito bélico tornou-se a melhor explicação da passagem do século XIX ao XX. Presume-se que em toda história humana nunca se matou tanto em defesa da vida e da paz quanto neste período. A própria paz, adquirindo novos sentidos e significados, demonstra eficazmente como a bio-política das nações ocidentais utiliza o seu poder para eliminar o conflito produzido em seu interior ou influenciado por aqueles produzidos além de seus domínios.

Para Foucault (1985) este tipo de poder, no plano da analítica sexual, se exerce também sobre a sexualidade. Ao contrário do que os seus estudos demonstravam sobre a antiguidade clássica, em que o sangue determinava as prescrições definidas pelo soberano sobre o corpo de seus súditos, agora é o sexo (entenda-se sexualidade) o elemento regulador dos usos e desusos dos corpos individuais. Neste sentido os arranjos matrimoniais observam dois princípios básicos: o do passado (tradicional) onde o sangue determina o “melhor partido” e o presente, que define como cada um deve exercer suas funções no exercício de seus papéis sexuais. Neste sentido, a presença do poder masculino e a vulnerabilidade feminina marcam a modernidade e a existência de uma micro-política das relações sexuais, de modo que os antigos arranjos de casamento guiados pela política do bio-poder e da soberania tradicional paterna sobre os filhos25, deram lugar à suposta liberdade da escolha, que pressupõe uma conduta sexual coerente com as novas e modernas práticas sexuais.

Na perspectiva de Foucault essa conduta sexual, que sofre interferência de um poder público, deita suas raízes sobre a história e pode ser associada, por exemplo, com a transformação do casamento de ato privado em público.

O casamento, ato privado, que dizia respeito à família, à sua autoridade, às regras que ela praticava e reconhecia como suas, não exigia a intervenção dos poderes públicos nem na Grécia nem em Roma. Ele era, na Grécia, uma prática 'destinada a assegurar a permanência do H , cujos atos fundamentais e vitais marcavam, um, a transferência para o marido da tutela exercida até então pelo pai e, do outro, a entrega efetiva da esposa ao seu cônjuge. Ele constituía, portanto, uma 'transação privada, um negócio realizado entre dois chefes de família, um real, o pai da moça, e outro virtual, o futuro marido; esse negócio privado era 'sem ligação com a organização política e social (FOUCAULT, 1985, p. 79).

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Os arranjos de casamento tradicionais pressupõem uma intervenção da soberania paterna sobre a idéia de que os valores morais são herdados pelo sangue e pela raça. É a partir de então que no Brasil, por exemplo, passa-se a criticar e eliminar a amamentação oferecida pela ama de leite negra. O que está em jogo é um ideal da degenerescência da miscigenação, que é pensada, através da sexualidade, no contato com sujeitos membros de uma raça, classe ou etnia que supostamente possuíam uma conduta transgressiva, anormal e inferior.

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A publicização do casamento na cultura clássica é também um ato de moralização do seu ritual, pois

Em sua forma antiga, o casamento só tinha interesse e razão de ser na medida em que, mesmo sendo um ato privado, ele continha efeitos de direito ou pelo menos de status: transmissão do nome, constituição de herdeiros, organização de um sistema de alianças, junção de fortunas. O que só tinha sentido para aqueles que podiam desenvolver estratégias em tais domínios. Como dizia P. Veyne: “Na sociedade pagã, nem todo mundo se casava, longe disso... O casamento, quando alguém se casava, respondia a um objetivo privado: transmitir o patrimônio aos descendentes e não a outros membros da família ou aos filhos de amigos; e a uma política de castas: perpetuar a casta dos cidadãos” (FOUCAULT, 1985, p. 81).

Neste sentido o que se observa com a análise das modalidades de ritual matrimonial na antiguidade e na modernidade tendo como fio condutor a perspectiva de um controle pelo bio- poder, é que a vida e os corpos dos indivíduos passaram a ser alvo de uma moralização pública, o que influencia suas ações e acaba por se cristalizar num sistema de legitimação das suas condutas, que assim se traduziu pela influência do cristianismo e a política estatal sobre a

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Segundo Foucault essa cultura de si é produto de um individualismo característico da modernidade. Nas suas palavras

Pode-se caracterizar brevemente essa “cultura de si” pelo fato de que a arte da existência – a sob as suas diferentes formas – nela se encontra dominada pelo princípio segundo o qual é preciso ter “cuidados consigo”; é esse princípio do cuidado de si que fundamenta a sua necessidade, comanda o seu desenvolvimento e organiza a sua prática (1985, p. 49).

Obtém-se, então, um fenômeno que se expressa pelo crescimento, desde o mundo helenístico e romano até os dias atuais, de um “individualismo” que confere cada vez mais espaço aos aspectos privados da existência, aos valores da conduta pessoal, e ao interesse que se tem por si próprio. Está-se, pois, a dialogar com um fenômeno cuja expressão nas sociedades clássicas tinha o sentido de marcar uma profunda relação com a vida pública, onde cada indivíduo se situava em fortes sistemas de relações locais de clientela e amizade. A sua constituição, contudo, precisa ser caracterizada com base nos seguintes pressupostos:

1. A atitude individualista: caracterizada pelo valor absoluto que se atribui ao indivíduo em sua singularidade e pelo grau de independência que lhe é atribuído em relação ao grupo ao qual ele pertence ou às instituições das quais ele depende;

2. A valorização da vida privada: importância reconhecida às relações familiares, às formas de atividade doméstica e ao campo dos interesses patrimoniais; e

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3. Intensidade das relações consigo: as formas nas quais se é chamado a se tomar a si próprio como objeto de conhecimento e campo de ação para transformar-se, corrigir-se, purificar-se, e promover a própria salvação.

Isto implica numa avaliação constante e permanente das trajetórias afetivo-sexuais dos indivíduos, de modo que assim se possa avaliar, e a partir daí classificar, quais sujeitos são ou não possíveis de se estabelecer um vínculo conjugal.

Para romanos e gregos isso significava uma incitação a austeridade levada a cabo pela moral e os bons costumes, a qual estava diretamente ligada a capacidade de suportar as privações dos prazeres em benefício do seu uso no casamento e à procriação. Era uma escolha estética e não moral (o que não significa dizer que fosse amoral).

Com o advento da sociedade industrial de natureza capitalista, o processo de escolha do cônjuge que resulta no casamento é modificado em função da emergência de um mercado de bens simbólicos expresso pelas distinções produzidas pelas classes que constituem este sistema. A este novo processo de seleção conjugal estão associadas fases pelas quais os sujeitos se questionam acerca de suas condutas, muito mais mediados por uma moralização imposta pelo ideal de monogamia, do que necessariamente por uma conduta baseada na religião ou na lei. Aqui resta saber se o foco central da questão que estamos analisando é a escolha com fundamentos morais, ou as implicações morais que a monogamia encerra sobre a natureza dos casamentos modernos.

Com base nas reflexões suscitadas por Foucault percebemos que sua preocupação está centrada não no exercício da sexualidade no interior de um sistema já constituído, mas na produção de uma moral sexual baseada na construção de uma verdade sobre a sexualidade. A monogamia seria, portanto, fruto dessa relação de forças, e, como já disse, embora se encontre determinada pelos limites do cultural, não deixa de ser uma conseqüência de nossa história moral.

Desse modo é possível afirmar que a idéia da seleção do cônjuge em si não é o tema principal da abordagem foucaultiana. Ela, na verdade, está impressa nas entrelinhas de suas convicções políticas e sociais. Isto por que, muito embora ele não se proponha a abordar a escolha como um ponto central de suas preocupações, demonstra acuidade na análise dos artifícios que, ao longo da história, deram ensejo à sua caracterização, enquanto dispositivo, para definir que conjunto de indivíduos estão aptos ou não a fazer parte de uma possível vida conjugal.

Torna-se claro que as implicações de uma conduta baseada na existência da verdade tornam cada um de nós produtores da mesma. Essa verdade constituiu-se através da reprodução

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contínua e permanente de valores que são a própria base de existência da sociedade moderna. E o discurso, sendo uma prática, torna essa reprodução o meio pelo qual cada um realiza suas escolhas não só conjugais, mas pessoais em diversos sentidos.

Para Foucault existe uma prática discursiva que produz essa subjetividade capaz de realizar escolhas, isto por que os novos regimes discursivos surgidos com base na orientação médica e sexológica criam categorias de classificação. Essas classificações podem ser retratadas como sendo, por exemplo, o resultado de uma avaliação das condutas (diga-se trajetórias) afetivo-sexuais pelas quais é possível afirmar qual cônjuge é ou não passível de estabelecer uma relação permanente e duradoura.

Com a análise e contribuição dos escritos de Foucault sobre o tema da sexualidade, pode-se afirmar a existência de um sistema moral que produziu a escolha e definiu a monogamia como elemento regulador das condutas conjugais nas sociedades ocidentais. Tal característica implica considerar que, sendo a monogamia uma invenção da sociedade, a seleção de um parceiro com perfil adequado aos padrões sociais é a causa eficiente da existência do casamento enquanto instituição, o que nos faz retomar a discussão do primeiro capítulo, onde se vê definido que o modelo sob o qual se baseia a sociedade moderna, além de diferir de outras sociedades afastadas no tempo e no espaço, possui sua própria sociogênese, fruto da mentalidade e das experiências em que esta sociedade viu-se envolvida.

Para aprofundar essa discussão proponho recorrer a modelos que nos oferecem base de comparação, no sentido de identificarmos que o sistema sob o qual estão delimitadas as fronteiras da escolha com objetivo conjugal deriva da organização social característica de um grupo. Segue-se então a análise de duas importantes etnografias, as de Bronislaw Malinowski e Raimond Firth.