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Ao longo de minha pesquisa passei por diferentes fases. Uma delas se refere a análise das entrevistas e sua relação com o trabalho de campo. Nesta fase fui surpreendido com uma reflexão, muito alimentada por minha orientadora e pelos

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professores Flávio Leonel e Angelica Motta-Maués na disciplina Seminário de Dissertação (I e II): poderia eu retratar o universo das escolhas matrimoniais sem atentar para o fato de que esse tema está inserido nos mais diversos campos de saber e conhecimento cotidiano?

Como chamei atenção no capítulo 2, a idéia de escolha nos acompanha diariamente, afinal de contas, das propagandas ao amor, escolher é uma ação incondicional para continuarmos vivendo.

Habituado a indagar-me sobre a obrigação de corresponder a essa reflexão36, procedi com uma concisa e profunda análise do porquê seria útil desviar do curso original (análise do ritual do noivado, seguida de entrevista com noivos e conseqüente relação entre essas variáveis) para retratar e discutir a escolha em outros universos de referência. Meu questionamento, como já se viu e se verá, se concentrou, pois, numa investigação do tema “escolha matrimonial” como objeto de análise no gênero romance, sem, contudo, cair na armadilha de achar que tudo que havia lido significava escolha do modo como compreendo esse termo no presente trabalho. Interessava-me somente por referências que tratassem do contexto em que se produz o sentido de ter que se escolher alguém para casar.

A princípio minha orientadora me instruiu a ler e interpretar um dos contos de Machado de Assis, I (1997), com o qual logo me familiarizei devido às longas investidas de minha infância e adolescência junto a D C # (1997), 7

+ (1981) e $ # # / % + (s/d) 37. Contudo, após ler esse

texto e refletir sobre minha percepção acerca dos romances que havia lido antes, deparei-me com o problema de mostrar para meus interlocutores que o fato de haver casamentos e escolhas na obra de Machado de Assis não significa que ele as abordava como eu pretendo abordar, por exemplo, os textos de Jane Austen (2008, 2010a, 2010b) ou Emily Brontë (2009), cujo esforço por retratar um tipo de manifestação das tramas

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Enfatizo que o fato de eu não responder ou não corresponder a tudo que se me apresenta como problema durante a realização da pesquisa, por minha própria orientadora, professores do curso ou colegas de classe, não significa que eu menosprezo ou rejeito suas sugestões, mas sim que eu cuidei de analisá-las e percebi, com o andamento da pesquisa, que, por um lado não há “espaço” suficiente para discutir tudo que é sugerido (como textos, referências, informantes, etc.) e, por outro, algumas indicações não se adaptaram ao tema desta investigação ou mesmo não corresponderam aos meus propósitos analíticos e teóricos.

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Há um risco enorme ao tentar analisar a obra de Machado de Assis como um todo e fazer avaliações a partir de um conhecimento limitado, isto por que além de eu não ter formação na área da literatura, o que conheço e aprendi sobre sua obra é-me alheia a qualquer análise literária. Seria como “falar de um vizinho”, quando tudo que se avalia transforma-se em fofoca.

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amorosas na sociedade de sua época, as diferenciam pelo conteúdo retratado. Essa característica me levou a definir que o tratamento dado aos textos literários envolvidos neste debate levam em consideração o percurso dos personagens, como forma de manifestação de uma dada realidade social, assim como a reflexão que um determinado autor nos faz admitir ter, através da , sobre dispositivos de ação presentes no pensamento humano.

Mesmo falando de um mesmo tema, como o amor, a traição, o sexo ou a morte, cada autor elabora representações mentais que ajustam seu modo de pensar à realidade da qual faz parte, nos mesmos moldes do cenário antropológico, cujos precursores de

nossas , como bem salienta Peirano (1995), elaboraram conceitos

às vezes muito semelhantes para tratar de um determinado tema, muito embora a forma como nos debruçamos sobre o conceito e o tema dependa do pacto interpretativo estabelecido entre nós e a linhagem que queremos seguir, seja racionalista, empirista, estruturalista, funcionalista, hermenêutica, e assim por diante.

Por termos começado falando de Machado de Assis é necessário que se afirme que este é o autor mais respeitado, lido e interpretado da literatura brasileira. Sua postura irônica e levemente reacionária, no contexto do processo de transição entre império e república, aponta para uma postura de análise que se concentrava na discussão psicosociológica do que ele considerava o Brasil, isto é, o Rio de Janeiro de sua época. Em I , por exemplo, ele aborda o relacionamento de Eduardo e Beatriz, um jovem casal que cumpre a promessa de casamento mesmo após 15 anos de afastamento. Sobre eles pesam os mais ardores da cobrança social, incluindo o fato de terem de esperar pela morte dos pais para assumirem o compromisso que firmaram. Machado de Assis trata, assim, de um amor impossível, mas que resistiu às duras cobranças do pai de Beatriz, que queria vê-la casar com um filho de coronel, ou dos pais de Eduardo, que o mandam para o exterior para estudar, afastando a possibilidade de casá-lo com um membro da família rival, para tornar o desejo de escolha exeqüível.

Contudo, a meu ver falta-lhe o tempero do tempo em que esse afastamento se deu, afinal são 15 anos de distância e provável sofrimento, caso se amassem ou esperassem honrar suas respectivas promessas. Ora, por que eles se escolheram? O que os persuadiu a isto? O que levou-os a acreditar na promessa, a resistir às duras tentações da carne e da alma?

Perguntas semelhantes fiz em relação ao conto 0 # "

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“bendita” fita azul, que ele achava ter perdido. O rapaz vê-se em apuros, pois mostrar a tal fita à namorada seria a condição para ela aceitar seu pedido de noivado. Mal sabia ele que a moça havia encontrado a fita e fizera isso para testar a importância que ele havia dado ao relacionamento.

Em + = (1997) o protagonista Julio, enamorado de Luisa e Isabel, fica em dúvida sobre qual das duas moças escolher. Neste outro conto Machado de Assis nos coloca frente a uma questão moral, mais do que a uma escolha afetiva. O texto termina com Julio sem nenhuma das duas, como num típico resultado do adágio “mais vale um pássaro na mão do que dois voando”.

Todos estes são contos muito persuasivos quando admitimos o contexto em que se produz um relacionamento com o objetivo conjugal, mas também são muito evasivos quanto à conjuntura envolvida nessas tramas. Como e o que pensam nossos personagens? De que forma suas ações nos ajudam a interpretar o sentimento de escolher um parceiro? Como se manifesta o interesse por alguém? Por que Gustavo? Por que Marianinha? Por que Beatriz e Eduardo?

Considerando a postura irônica que Machado de Assis assume nos seus escritos, numa clara crítica a literatura romântica de sua época, esses textos não poderiam expressar outra coisa senão sua objeção a visão idílica das relações sociais que a burguesia brasileira começa a instaurar no Brasil. Além disso, os textos que cito são uma pequena parte de sua obra e não podem ser usados para analisar sua contribuição à literatura de nosso país. Mas eles servem como pretexto (um mote) para discutir, mesmo que transversalmente, o tema da escolha individual versus decisões familiares, ou seja, a liberdade diferenciada entre noivo e noiva para escolher o cônjuge, manter um noivado e realizar um casamento, assim como as conseqüências diferenciadas, para cada um, do investimento feito na escolha.

Para D’Incao essa característica expressa, basicamente, o advento do individualismo, a possibilidade da constituição do casamento por livre escolha, por amor como precondição, e o cultivo das maneiras civilizadas que se manifestavam durante o século XIX (D’INCAO, 1996, p. 59). Não esquecendo, como havia dito antes, que o contexto no qual, por exemplo, Machado de Assis elabora seus textos é o de uma profunda transformação, tanto no campo político como social, nos quais as representações de amor, casamento e indivíduo se confundem com as mutações pela qual passam a moral e os valores de sua época.

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Em D C # (1997), por exemplo, a disputa dos personagens pelo amor de

Flora remete-nos aos conflitos entre modernidade e tradição, futuro e passado, república e monarquia, cuja ênfase é a reforma dos valores nacionais sob a óptica republicana. Em todo caso, a ambigüidade política presente e personificada nas figuras dos personagens, representa o conflito existencial que o narrador nos coloca frente às contradições contidas na relação entre uma burguesia em ascensão, ansiosa pela revolução e controle do aparelho estatal, das atividades econômicas e financeiras, e a nobreza, que dada sua decadência, tanto moral quanto econômica, vê fragmentada sua condição de mandatária do poder e das normas costumeiras do final do século XIX.

Ainda mais expressivamente, essa característica pode ser observada em $ (1997), texto que, no melhor estilo do realismo inglês, enfatiza as perspectivas das crias de família em mudar de status social, a performance das pessoas calculistas e o lugar ocupado pelos agregados na estrutura social daquele período. Nele os esforços do autor se concentram em transformar Guiomar, a protagonista, numa típica golpista, sem necessariamente rebaixá-la ao nível de um calculismo repreensível. Entre Estevão, um jovem advogado, lânguido de paixão por ela, e Jorge um indiferente membro da decadente nobreza brasileira, que esperava a conveniência de um arranjo proporcionado por sua tia, Guiomar opta por Luis Alves, um ambicioso advogado, membro da elite carioca e postulante a congressista.

Guiomar, além de parecer fria e dissimulada à pena de Machado, faz de seu ímpeto pela mudança de status um tratado objetivo e racional de conquistas pessoais, coerentemente encaixadas no ambicioso plano de Luis Alves em desbancar seus trôpegos adversários. Eles são a mão e a luva de uma trama que traduz um contexto em que o brasão, a tradição e as determinações familiares passam a dar lugar ao interesse e escolha baseadas em valores pessoais.

Todavia, como há de se constatar, o contexto literário com o qual nos deparamos ao lermos Machado de Assis, avança sobre um cenário de aprendizagem do amor, onde, conforme analisa D’Incao, “as pessoas [...] estavam aprendendo as normas da civilização européia; entre as quais se incluía ter certos sentimentos e utilizar certas relações sociais” (D’INCAO, 1996, p. 62). Se, como havia dito antes, o romantismo provoca uma ruptura com um anterior, introduzindo novos maneiras de manifestar e sentir o amor, com Machado de Assis temos a oportunidade de perceber como esse cenário se alterou. Em Joaquim Manoel de Macedo e José de Alencar, por exemplo, o requisito do amor no casamento passa a ser uma necessidade, ainda que em

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nível de discurso e de representação do pensamento moderno, embora, na prática, os casamentos fossem ditados pela conveniência.

Todavia, a esfera sobre a qual orbita o tema da escolha em Machado é carente de reflexão quanto à origem desse sentimento nos personagens. O leitor, ávido por entender suas escolhas, percebe que todas elas apontam para um indivíduo envolvido em suas próprias contradições, seja entre seus discursos e suas práticas ou seus valores e a conduta que resolvem seguir, mas que no fim sempre se adéquam a interesses dissimulados, numa clara e alusiva perspectiva individualista que, mesmo negando um conjunto de valores anteriores – escravidão, monarquia, patriarcado –, não se sustenta sem ela, ou não se questiona sobre o porquê de negá-la.

Ainda em busca de identificar uma literatura com a qual pudesse dialogar acerca dos significados antropológicos contidos no processo de escolha, dediquei-me a vasculhar outras obras literárias. Entre elas uma me chamou atenção: , de Mary Wine (2010).

Tratando-se de um romance histórico, o que significa dizer, uma história de romance escrita por uma autora contemporânea sobre, no caso em questão, a Escócia do século XVI, “ ” insere-se naquele grupo de textos muito comuns entre jovens de camadas médias, denominados com nomes característicos desse meio e voltado para um publico eminentemente feminino. As ‘Sabrinas’ ou ‘Biancas’ que lêem familiarizam-se com uma linguagem provocante e recheada de imagens eróticas, cujo frenesi provocado ultrapassa e supera em larga medida o perfil psicológico dos personagens presentes na maior parte dos romances do século XIX ao XX. Contudo, na minha perspectiva de “viajante de primeira viagem”, apesar do cenário e da sensação de êxtase, considero essa versão do romance, mais moderno e menos apologético, algo reificado, que transforma o texto numa digressão anacrônica, voltado para o consumo de massa e aproximando-se de um roteiro hollywoodiano ás vésperas de encontrar quem o dirija.

O texto conta a história de duas famílias inimigas que vêem seus respectivos filhos se apaixonarem um pelo outro. Os protagonistas Cullen MacJames e Bronwyn McQuade, após um encontro e “apalpada nas nádegas” vivem uma verdadeira aventura amorosa, colorida de raptos, tentativas de fuga, estupros consentidos, assassinatos, envenenamentos, invasões de castelo, e coisas do gênero, no qual o ponto central da história está no fato do pai da moça, Erick, fazer uso de uma ocasião (o encontro ocasional de Cullen e Bronwyn) para manchar sua honra, impedindo que houvesse

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pretendentes a se casar com ela. Assim, ele conseguiria evitar o fracionamento das terras que, na Escócia daquela época, se dava pela linhagem matrilinear.

Erik procura deixar bem clara suas razões para isso num de seus diálogos com os filhos:

- A terra é a única coisa que torna um homem rico. Nunca permita que ela escape de suas mãos. . O dinheiro pode ser gerado pelos arrendatários. [...] Escutem, meus filhos, a herança que um dia será melhor do que a que ganhei de meu pai. Trabalhei demais para suportar ver qualquer terra deixar de ter o nome McQuade. Bronwyn é uma mulher, feita para servir as necessidades dos homens. O fato de ser minha filha não muda isso.

Os filhos balançaram a cabeça concordando.

- Mas era necessário sujar o nome dela em público? – Liam perguntou.

- Sim, era. Agora o rei não vai me pressionar para vê-la casada. A terra que ela tem de dote está legalmente ligada à mãe e a qualquer filha que ela possa ter. Isso não pode ser alterado. Bronwyn não deve jamais se casar ou perderemos essa terra. Espero firmeza por parte de vocês. Já recebi muitas propostas de casamento para ela neste ano. – McQuade grunhiu, irritado, antes de continuar: - Mas ela é uma mulher, e eu não sou tolo para esperar que ela tivesse forças para permanecer inocente. Mulheres são criaturas fracas. Elas buscam um amante na calada da noite quando estão no tempo de procriar. É por esta razão que eu deixei claro que nenhum homem usando as nossas cores olhasse para minha filha. Se ela gerar uma filha, a terra passará para a criança, seja bastarda ou não.

Desse modo, Bronwyn jamais poderia se casar. Se permanecesse solteira, a terra se tornaria propriedade McQuade. Chamá-la de vagabunda em plena Corte faria com que cessassem quaisquer futuros pedidos de casamento (WINE, 2010, p. 33-4).

Para evitar que sua honra também viesse a ser manchada, Cullen resolve raptar a donzela para seu castelo e lá pedi-la em casamento. Imediatamente Bronwyn, cujo enredo indica não ter se relacionado com outros homens, vê-se envolvida numa situação desagradável: apaixonando-se pelo seu raptor, cujo aspecto e temperamento assemelhavam-no ao pai, o qual repudiava; e, ao mesmo tempo, temerosa pelo conflito e derramamento de sangue caso resolvesse ceder as tentações de seu sedutor algoz. Em meio à persistência e ao charme de Cullen, Bronwyn resolve ceder, mas não sem antes provar da retaliação de seus familiares por essa escolha.

Apesar de envolvente, esse romance nos escapa à compreensão das variáveis que motivam, subjetivamente, os personagens a elegerem seus afetos como

das relações que existem entre eles. Por enfatizar, na conjuntura dos eventos que entrelaçam a série de acontecimentos presentes em seu roteiro, uma fetichização do amor como prelúdio à escolha do par ideal e por fazer disso a retórica sobre a qual supostamente se baseariam os personagens da época, o texto se afasta de uma realidade

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objectual, capaz de traduzir as imperfeições dessa visão objetiva que separa a razão do sentimento.

Algo muito diferente do que podemos encontrar, por exemplo, no conjunto da obra de Jane Austen, a qual, segundo minha perspectiva, aproxima-se do que estava procurando e, por essa razão, me permitiu identificar um objeto capaz de transmitir a mensagem da discussão contida neste capítulo: as transformações provocadas pela descoberta de si do sujeito, no itinerário das revoluções mentais pelas quais a modernidade se viu atravessada, como será visto no próximo capítulo.

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Capítulo 4