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O campo de trabalho com o qual o pesquisador se depara sempre é um campo efêmero, líquido. Escorre pelos dedos como água. Sua dinâmica nos faz mergulhar num exercício contemplativo do que estamos fazendo, como se ao fazê-lo congelássemos o nosso olhar, permitindo que ele fosse capaz de ser tocado. Caso não se perca de vista que esse olhar é produzido em meio a um diálogo com a volatilidade da vida moderna, as aparências, que regulam o caráter irreflexivo da ação e do pensamento – devido ao fato de serem o reflexo de uma prática pré-determinada pelo habitus –, podem confundir-nos, fazendo-nos acreditar que estamos lidando com verdades. E num tempo em que a etnografia revela muitas verdades, essas aparências podem nos deixar impotentes frente à diversidade de explicações que podem ser dadas para os fenômenos sobre os quais nos debruçamos a entender. O que resulta num profundo questionamento sobre o tipo de olhar que devemos fazer uso ao elaborar nossas pesquisas.

Minha pesquisa sobre a escolha do cônjuge entre noivos sintetiza isto, por que se liquefaz em entender a dinâmica da trajetória afetiva de um sujeito, capaz de comparar, escolher, se arrepender da escolha, comparar de novo e, quem sabe, se arrepender de ter se arrependido, mudando de opinião conforme a natureza da situação. Assim, quando releio o que descrevi em meu diário de campo percebo que o meu trabalho trata de um questionamento metodológico acerca do que vi e senti e, ao mesmo tempo, sobre minha capacidade de interpretar os dados com os quais me deparei no campo. De um lado, porque diante das variáveis que meu campo me ofereceu, encontrei-me num diálogo com o papel que deveria exercer ao abordá-lo, o que faz de minha monografia não um tratado sobre verdades indiscutíveis, mas o produto do que penso ser um trabalho etnográfico. De outro, por que me reencontro sempre com o projeto de uma metodologia "tão objetiva e desapaixonada quanto possível" (FIRTH, 1998, p. 526), que, ainda que possa soar , , nos dias de hoje, é o que me permite estabelecer o distanciamento necessário para "explicar" os fenômenos com os quais me deparei.

Pensar o texto etnográfico privilegia-me, portanto, da condição de intérprete, cuja visão sobre a escolha da pessoa com quem se quer compartilhar um relacionamento conjugal é a de um expectador interessado em questionar a aparência da vida afetiva,

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mostrando ser ela uma fonte de verdade para quem compartilha seus valores, e um dado do discurso, para quem admite ser ela o referencial sob o qual os indivíduos, em seu itinerário social, compartilham do sistema de códigos elaborados num lugar específico e sob determinadas condições.

Absorvido pela linguagem literária me aprofundo em discutir a trajetória social dos personagens que escolheram uma determinada parceria amorosa, sinalizando, assim, para discursos, modos de percepção e formas de “construção da realidade”. Não é o caso de entender o texto como ficção, mas como produto de uma experiência ficcional onde o que busco exprimir são minhas percepções acerca da verdade contida nos discursos e nas representações sobre escolha conjugal. A objetivação como elemento primário destas percepções ofereceu-me aportes para entender que a iniciativa de produzir uma genealogia da escolha exprime minha preocupação em não “atolar” no campo vasto das variáveis com que me deparei. O , cristalino e devidamente drenado, me possibilitou pensar que a objetivação dos dados cruza-se com a perspectiva austeniana, exatamente no perímetro da apreensão objetiva, onde a subjetividade, aquela do dado objetivado, nos permite ver que o processo de escolha do parceiro afetivo sempre deriva de uma experiência prática, nunca de um dispositivo lógico emanado das convenções habituais. Por que o dado objetivo é, tanto para mim, enquanto etnógrafo, quanto para Jane Austen, uma romancista, o que nossa apreensão subjetiva nos oferece enquanto interpretação da realidade com a qual nos deparamos.

Mas há de se considerar que não falamos a mesma língua e apesar de olhamos para o mesmo objeto, o vemos sob ângulos distintos. (De todo modo eu – que tenho a oportunidade de lê-la – sei a que me proponho quando interpreto o texto e o pensamento de Austen. Ela, pelo contrário, não tem essa oportunidade). O que escrevo e abordo na etnografia que segue está situado num outro universo, que difere, pelo grau de complexidade e natureza do objeto, em relação àquele vivido no interior da Inglaterra oitocentista, com o qual se deparou Austen. Aqui, pretendo analisar a constituição do parceiro ideal através do rito do noivado entre indivíduos da primeira década do século XXI. Especificamente daqueles que se envolveram afetivamente, e que apesar de não fazerem parte de um roteiro “the-endizado” 49, encontram-se inseridos num contexto

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Neologismo que pensei enquanto refletia sobre a natureza das histórias sobre as escolhas amorosas. Há sempre um limite para contar uma história, seja ele o texto ou o filme (The End), ou seja, uma tenra e fina folha de papel ou película fílmica, muito embora cada história imaginada ou baseada em fatos reais se perca no infinito do imaginário social.

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social cujos valores e significações afetivas e morais encontra correspondência com o universo no qual Austen deixa-nos a pensar desde a segunda metade do século XVIII.

Minha etnografia, portanto tem um objetivo claro. Ao mesmo tempo em que busca uma articulação com a visão literária em torno da escolha conjugal, difere dela por ser (e pretender ser) científica, uma vez que intervém objetivamente sobre a realidade das pessoas. Discorre assim sobre a natureza de um dado, cujas convenções sociais fazem das ações particulares um pressuposto de ação pessoal, muito familiar a cada um de nós. Familiaridade que vem sendo abordada enquanto categoria a ser questionada e revisada conceitualmente. Minha percepção a esse respeito é a de que me encontro num constante processo de revisão da categoria escolha, algo muito pertinente para o meu estudo ser levado a cabo, conforme a proposta original, caso contrário transformaria o meu estranhamento em torno desse objeto num perigoso estudo sobre as aparências que a experiência afetiva oferece aos indivíduos.

Todavia, há de se considerar que nem tudo que estranhei lendo e ouvindo se transformou em dado. O que ocorreu foi uma seleção do que se me apresentou estranho e questionável, do ponto de vista conceitual e teórico. Portanto, meu tema só veio a se tornar um problema antropológico por que o reconheci como tal no cenário da sociedade em que ele é discutido (PEIRANO, 1992). Aliás, essa concepção é comum a Peirano, e instrui-me a pensar que a construção do texto etnográfico surge de uma oscilação entre a problematização da experiência e o tratado objetivista com o qual nos deparamos academicamente (PEIRANO, 1995). Com efeito, isso significa que o modelo de análise sob o qual nos baseamos para empreender nossos trabalhos deriva de nossas representações acerca do fazer científico. Sendo assim, as visões holista/individualista não são movimentos ambíguos no interior da disciplina, mas modelos que os cientistas utilizam para entender as questões com as quais se deparam através de um tratamento microscópico e comparativo, nos quais a antropologia surge como modalidade do discurso moderno, em variados níveis: como objeto de análise, como postura de conhecimento, como questionamento teórico; demonstrando que, por texto etnográfico, compreendo uma forma de expressão do conhecimento científico suscitado pela experiência de contato com o problema que me comprometi a analisar, esteja ela presente num texto ou no campo de pesquisa. Neste sentido, a textualidade, enquanto forma de expressão do convívio e contato com realidades distintas daquela em que vivo, é uma representação. Mas uma representação não do real, como algo absoluto e concreto, e sim do vivido, que é a célula da universalidade humana.

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Significa dizer que, sem trazer, ao que me parece, qualquer condescendência, fui obrigado a me questionar incessantemente sobre minha relação com o objeto no que ele tinha de genérico, e também de particular. Daí minha irrenunciável proposta de encontrar os modelos subjacentes que tornam a experiência subjetiva um corpus sobre o qual se assenta a natureza conceitual de meu tema. E poderia ser que esta objetivação que venho tentando realizar constitua o principal produto de toda minha empreitada, não em si mesma, como contribuição teórica a uma teoria da escolha, mas como princípio de uma definição mais rigorosa, menos entregue ao acaso das disposições individuais, mas de uma relação justa com o objeto, que é uma das condições mais determinantes de uma prática propriamente científica em ciências sociais.

Neste sentido, gostaria de chamar atenção para esse contato que, apesar de vivido, carece sempre de uma fundamentação histórica e teórica. Mas afinal, em que sentido uma pesquisa histórica e baseada em revisões teóricas têm o potencial de qualificar a discussão sobre dados etnográficos? Ou, no contexto de uma pesquisa sobre seleção de cônjuges, o que me levou a estudar o noivado e acreditar que isto facilitaria minha compreensão acerca da noção de escolha?

Ora, neste que é necessariamente um capítulo “ %" ”, pretendo discutir a formulação de uma proposta de entendimento do problema com o qual me deparei. Recorro, assim, à minha experiência com o campo selecionado para este estudo e ao conjunto de referências que me possibilitou chegar a este mesmo campo. Abordo assim o noivado com ênfase em sua dimensão histórica, aludindo a um processo de constituição terminológica definido, a priori, por ritos de natureza privada, até sua dissolução e reafirmação pública no século XIX. Ao mesmo tempo, o estudo se volta para o discurso em torno do noivado, procurando identificar, através das entrevistas com noivos, a visão de mundo que cerca este ritual e sua dimensão simbólica enquanto prelúdio à escolha pelo casamento. O material coletado refere-se a impressões pessoais, etnografias do curso de noivos da paróquia de Nossa Senhora de Nazaré, em Belém, e entrevistas com noivos freqüentadores (ou não) deste curso.