• Nenhum resultado encontrado

Como vimos, a escolha é parte de uma cadeia de acontecimentos que se manifesta no interior de uma certa estrutura social. Para a antropologia seria como se ela ocupasse uma área onde a imponderabilidade das ações humanas a impedisse de ser classificada e sistematizada por meio dos esquemas gerais de análise do comportamento social.

9

Além da bibliografia procuro outros recursos para pensar. E enquanto transeunte e espectador sou levado a crer que o cenário do século XXI aponta para a descoberta da vontade e o desejo do individuo, mesmo que isso esteja baseado num aprimoramento das técnicas de venda e consumo. Isto ocorre por que em diferentes setores da vida social, quer seja ela política, econômica ou midiática, os especialistas, conforme destaca Giddens (1991), desenvolvem recursos, tecnologias, saberes e ideologias fundamentalmente destinadas a uma identificação com o sujeito, que desse modo satisfaçam seus interesses particulares. Trata-se de fórmulas cada vez mais “eficazes” para o tratamento capilar; sabores e proteção distintos para os diversos tipos de dente; candidaturas que oferecem a melhor qualidade em som (cantores), entretenimento (esportistas) e imagem (modelos ou galãs de novela); trajes cada vez mais adaptados aos diversos tipos de corpos e ambientes; grades de programação que se adaptam aos diferentes gostos dos espectadores. Neste sentido o que mais se destaca no Brasil é o caso dos aparelhos celulares. Além de possuírem os mais variados recursos tecnológicos, os celulares à venda no país seguem linhas de produção cada vez mais adaptada aos interesses dos grupos sociais, com a possibilidade de os mesmos se tornarem um recurso indispensável para a identificação dos sujeitos. Muitas pessoas passaram a adotar seus números como verdadeiras formas de se identificarem, seguindo o exemplo do Registro Geral e do Cadastro de Pessoa Física. Por essa razão pesam sobre eles as mais importantes características do sistema de escolhas, cuja mídia se beneficia promovendo campanhas publicitárias onde o lema necessariamente é “o melhor plano de saúde é viver; o segundo melhor é Unimed”, ou “Claro, escolha”, enfatizando assim que a o portfólio de oportunidades culpabiliza o consumidor desavisado: “será que fiz um bom negócio?” Ora, mas é exatamente isto que retroalimenta o fluxo do sistema capitalista.

44

Ao que se sabe, a seleção sexual10 estudada por Darwin (2004 [1859]) contribuiu muito para que esse fenômeno levasse o tema da escolha ao ostracismo na antropologia clássica, uma vez que deixou uma grande lacuna ao não analisar a experiência humana como um processo em constante construção e significação. Mas não sendo este o seu objetivo – a propósito, é inútil questionar um autor pelo que ele não fez – vale dizer que os estudos posteriores, sobretudo psicanalíticos e suas derivações (na sociologia com Weber, na economia com Von Neumann, na política com Coleman, na antropologia com Bourdieu) permite-nos compreender como as escolhas humanas, além de afetivas, são políticas e fazem parte de um jogo em que os tipos ideais são noções pré-concebidas e classificatórias do mundo social.

A análise demonstra que diante de várias alternativas os indivíduos não esperam que num momento & decidam por ou , mas que vivam momentos em que e são possibilidades. Possibilidades que dependem do significado atribuído pelo sujeito em processo de escolha ao tipo de escolha a que se vê obrigado fazer numa determinada estrutura social.

Ora, mas como avaliar se o significado atribuído a escolha numa dada estrutura social não estaria sujeita aos condicionamentos dessa mesma estrutura? Como ela oferece autonomia ao indivíduo se para este continuar fazendo parte do grupo necessita fazer escolhas que se adéqüem ao sistema de escolha do próprio grupo?

Em seu livro (1962), Needham presta uma grande contribuição

à esse questionamento, demonstrando que em qualquer sociedade, invariavelmente, a escolha do cônjuge depende do jogo social existente entre as várias categorias de indivíduos que formam uma sociedade.

Segundo Sztutman (2002), por ser um dos tradutores de

para a língua inglesa, Needham teceu diversas considerações e críticas ao estruturalismo, uma vez que procurou introduzir na teoria geral do parentesco a noção de interesse, recuperando em seus modelos analíticos um lugar para o agente, que teria sido abandonado “por aquela Antropologia sem sujeitos” (SZTUTMAN, 2002, p. 451).

Em seu debate com Homans e Schneider (1955) sobre $ = <= -

+ ( < " E + 9+ $ = Needham refuta a hipótese de que em

sociedades nas quais o casamento é permitido ou preferencial com a filha do irmão da mãe, mas proibido ou reprovado com a filha da irmã do pai, são sociedades que se caracterizam como possuindo parentesco patrilinear; e de sociedades em que o casamento é permitido ou preferencial com a filha da irmã do pai, mas proibido ou reprovado com a filha do irmão da mãe, são sociedades que possuem grupos de parentesco matrilinear; ou seja, a teoria de que a

10

O termo sexual não se aplica necessariamente às relações de cópula, mas sim ao fato de nas diferentes sociedades animais haverem sistemas de seleção e classificação baseadas no critério sexual (processo de acasalamento).

45

escolha de um esposo leva em consideração, principalmente as vantagens sociais que ele pode oferecer numa determinada estrutura de parentesco. Needham, muito pelo contrário, propõe que se expliquem as instituições sociais por referência aos sentimentos individuais, isto é, de que o casamento entre primos cruzados unilaterais é determinado pelo sistema de relações interpessoais, precipitada por uma estrutura social, especialmente pela localização da autoridade jurídica sobre Ego.

Needham debruça-se sobre este tema a partir da leitura que realiza de Marcel Mauss que, em 1920, em sua primeira versão do 7 , define a exogamia como uma troca de mulheres entre clãs e não entre indivíduos. Essa perspectiva, abordada primeiramente pela escola antropológica de Leiden, na Holanda, investigava empiricamente uma série de publicações sobre a maneira pelas quais as mulheres, em certas sociedades da Indonésia, foram trocadas de forma regular entre os grupos de descendência linear. O sistema particular em que eles estavam interessados era aquele baseado no casamento prescrito com um primo cruzado matrilateral, um sistema ao qual deram o nome de “circulating connubium” (NEEDHAM, 1962, p. 7).

Esses estudos não adotaram a aplicação teórica da noção de “troca”. Assim, permanecendo até que em 1949, Claude Lévi-Strauss apresentou pela primeira vez um modelo formal de trocas de mulheres entre determinados grupos de parentes, definindo as várias modalidades de troca praticadas e os tipos de grupos entre os quais as mulheres podem ser transferidas, postulando as várias conseqüências estruturais dessas regras.

Para Needham a existência desse modelo não é o suficiente para mostrar que a instituição é, em algum sentido, boa para a sociedade, mas que haja uma causa eficiente para ela vir a existir11. Por causa eficiente Needham considera a “agência de produção”, “o fenômeno que produz outro... Ou, às vezes, o ser que produz uma ação” (NEEDHAM, 1962, p.24). Noutros termos: prática; que não pode ser compreendida como uma lógica utilitária. De um lado por que Lévi-Strauss não tenta explicar a origem ou a “adoção” de qualquer regra de casamento especial, e, por outro, por que ele não tenta explicar a simples existência de qualquer instituição matrimonial tendo como referência a sua utilidade. Pelo contrário, em nenhum momento em sua obra Lévi-Strauss trata de objetivos ou fins em relação ao casamento entre primos unilaterais, ou

11

No esquema de Lévi-Strauss, a causa eficiente seria, na compreensão de Homans e Schneider a inteligência humana. Mas é amargamente difícil persuadir os homens a arriscar seus interesses individuais de curto prazo em troca de eventuais benefícios para a sociedade; e é duvidoso que o inteligente reconhecimento do que seria bom para a sociedade é sempre uma condição suficiente para sua aprovação.

46

dos membros de sociedades que escolhem uma ou outra regra com todos os benefícios resultantes disso12.

Em suma, para Needham a teoria de Lévi-Strauss não pode ser descrita, na acepção comum dos termos, como uma teoria da “causalidade final”. Na verdade, os próprios Homans e Schneider não fazem uso desse termo em sua acepção comum, e parecem admitir isso quando fazem a ressalva de que para a sociologia uma teoria da causalidade final o é quando a teoria comprova que uma instituição é o que é porque ela é boa para a sociedade como um todo – como se as noções de causalidade em sociologia fossem diferentes daqueles da ciência em geral.

Notabilizada pela característica de expressar em parte a moral moderna, devido ao fato de acolher nossos interesses mais particulares e traduzir os efeitos do individualismo (pela margem de liberdade que nos oferece em nossas práticas eletivas), o entendimento que se tem sobre a união entre duas pessoas – podendo ser definida como casamento moderno – demonstra ser um elemento importante para compreender a discussão sobre causa eficiente nos dias de hoje. Sendo um modelo que arbitra o entendimento coletivo acerca de como duas pessoas devem se unir e se relacionar, o simples fato delas se desejarem é orientado por uma estrutura da conjuntura. O fato é que se vivemos uma determinada realidade cultural, ela não se apresenta para nós como alternativa, mas como fato incondicional, haja vista fazer parte da estrutura elementar que forma nossa mentalidade acerca do que vivemos como prática. Assim, a causa eficiente que modularia a escolha no caso do casamento ocidental, além de ser moral – muito mais do que religiosa ou econômica – estaria vinculada à mentalidade que deu origem as regras de relacionamento entre duas pessoas. O que significa dizer que a opção por um determinado tipo de pessoa se ajusta aos contextos nos quais regras e valores sociais definem e se combinam às relações estabelecidas entre os membros de uma determinada sociedade, sempre sujeitas ao jogo das imponderabilidades humanas.

12

As interpretações de Homans e Schneider, de que os membros de algumas sociedades pensam fazer o casamento matrilateral porque “vêem” nisto vantagens sociais, são errôneas para Needham. A concessão que pode ser feita aos autores, sobre esse ponto, é que Lévi-Strauss cita “riscos”, “ambições”, “aventuras”, e assim por diante, no que diz respeito às sociedades que praticam uma ou outra regra, como se seus membros, ou mesmo os sistemas sociais próprios, fizessem avaliações racionais de possibilidades institucionais. Na verdade a causa eficiente presente em Lévi-Strauss nos leva a compreender que algumas instituições trabalham de forma mais eficaz do que outras, e que aquelas que são menos eficazes são menos susceptíveis de sobreviver. Quando, por exemplo, ele discute as formas em que os membros das sociedades simples, analisam ou descrevem os seus próprios sistemas sociais, e como elas podem ensinar ou adquirir representações teóricas de diferentes sistemas, o seu objeto não é a alegação de que eles, assim, fazem escolhas de “melhores” instituições, mas “para mostrar que a validez de uma aproximação estrutural é confirmada pela apreensão que o próprio povo possui das estruturas postuladas pelo antropólogo” (NEEDHAM, op. cit., p. 24-5).

47

Voltamos à questão inicial: mas se o contexto social determina as normas, que regularidades (portanto normas) poderiam servir de base para compreender como diferentes pessoas fazem escolhas semelhantes, ou segundo os mesmos princípios e determinações?

Para responder esta pergunta Needham nos remete a Evans-Pritchard (1929) em um artigo no qual este afirma que as relações entre essas duas variáveis (normas e comportamento) são ambíguas, demonstrando que a influência do pai deve ser levada em conta ao considerar, por exemplo, a formação do sentimento para com o irmão da mãe. O último não é apenas o irmão da mãe de ego, mas também o irmão da mulher do pai de Ego. Sendo o irmão da mulher geralmente um “ ” nas sociedades primitivas, as atitudes do marido e da mulher são mais acentuadas em relação a ele do que com outros parentes, e são mais pronunciadamente diferentes. É de se esperar, então, que algumas evidências deste “choque de sentimentos” por parte dos pais possam ser encontrados também na atitude de Ego em relação ao irmão de sua mãe. As relações em questão são, segundo Evans-Pritchard, regidas pela proposição: “A relação entre tio materno e sobrinho assemelha-se à relação entre irmão e irmã, assim como a relação entre pai e filho é semelhante à que há entre marido e mulher” (EVANS-PRITCHARD, 1929, p. 193).

Portanto, se a diferenciação e a extensão dos sentimentos derivam inicialmente, como Radcliffe-Brown (1973) afirma, da natureza do grupo familiar e de sua vida social, então o mesmo processo é uma característica das sociedades cognáticas também, em que o pai é a figura autoritária e a mãe a figura indulgente, tal como na situação patrilinear.

Assim sendo, chegamos a uma questão curiosa: qual seria o fator mais provável a predominar na contratação de uma união entre dois membros de grupos de descendência linear – o sentimento, ou a autoridade? Tal união é, como sabemos, não uma mera união de dois indivíduos apaixonados, caso em que, como na Europa e na América, o sentimento pode ter um papel predominante. Geralmente é uma aliança entre dois grupos autônomos de indivíduos, inaugurada pelo noivado e estendida por tanto tempo quanto a durar a união. A aliança pode implicar o envolvimento em guerra ou contenda, a responsabilidade material pela reparação dos erros, contribuição para pagamentos de casamento, cooperação econômica, religiosa e interdependência.

Podemos aceitar, com base nesta análise, a premissa de que o pai possui autoridade jurídica sobre seus filhos, homens e mulheres. Sua esposa, um estranho de outro grupo, é, sem esses poderes, aliás, caracterizada como uma figura indulgente. Desse modo, os sentimentos, por não possuírem nenhum efeito causal, derivam de uma relação de afinidade e devem ser entendidos como princípios orientadores da prática de escolha, uma vez que determinam o

48

sistema de ações ( ) pelo qual um indivíduo se baseia para desenvolver sua trajetória afetiva, seja entre sociedades primitivas ou complexas.

Assim, temos que o padrão de escolhas é definido pelo arranjo dos indivíduos numa dada estrutura social, as quais, por não se definirem apenas afetivamente, mas também no campo político, são influenciadas pelas normas de conduta social regidas, ora pelas relações de parentesco, ora pela transitoriedade dos significados atribuídas à elas numa estrutura social determinada.

Pode-se afirmar também que a escolha, enquanto norma ou não-norma depende, da conjuntura na qual as instituições orientam a seguir princípios determinantes de práticas. Isto por que ao contrário do que se possa pensar, a existência de uma suposta regra de conduta, inaudita, invisível e silenciosa, serve de aresta para que sejam elaborados critérios de seletividade social.