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A perspectiva narrativa varia em função das obras em estudo56. Se, n‘O Romance de

Rita R., deparamos com uma perspectiva mais ―próxima‖, através da qual Rita adopta a

máscara de uma narradora, pessoal, em Escrito na Parede, os acontecimentos são-nos apresentados de forma mais distante, como se a figura do narrador se inscrevesse aí como uma sombra (KAISER, W., 1977: 80)57.

Esta diferença de posições justifica-se, de forma mais simples, pelo facto de, na primeira destas obras, Rita, antes de pretender tornar-se narradora (autodiegética) e autora da sua própria história58, ter sido a personagem, central, de todos os acontecimentos, ou seja, uma testemunha presencial. Desta forma, esta personagem tem o privilégio de nos situar, portanto, em momentos distintos: o da história e o da narração, intercalados por momentos em que recorre a analepses ou a prolepses.

Já na segunda obra aqui referida, deparamo-nos com um narrador heterodiegético. Não tendo participado na história, este narrador não pode contar o que realmente viu ou viveu, daí não encontrarmos qualquer referência concreta a si mesmo. Socorre-se da perspectiva das outras personagens, introduzindo, na narração, de quando em vez, outros narradores, homodiegéticos. A partir de então, intercala a narração com estas duas perspectivas que, em paralelo, permitem interpretar o texto de diversas perspectivas59. De qualquer modo,

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Repare-se, entretanto, como Óscar Tacca refere que, independentemente do ponto de vista adoptado por cada narrador, o que está em jogo é a transmissão de informação ao leitor (TACCA, Ó., 1983: 62-63). É, aliás, esta a função do narrador: a de informar.

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Aguiar e Silva distingue o narrador do autor (textual ou empírico), na medida em que ele «representa, enquanto instância autonomizada que produz intratextualmente o discurso narrativo, uma construção fictícia do autor textual» (SILVA, V. M. de A., 1991: 695). Todavia, e enquanto responsável pela narração, ele é ainda «detentor de uma voz» (REIS, C.; LOPES, A. C. M., 2007: 258) que se evidencia, por exemplo, quer ao nível da situação narrativa adoptada (narrador autodiegético, homodiegético, heterodiegético), quer ao nível da utilização de certos signos e códigos narrativos (tempo, focalização).

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Carlos Reis e Ana Cristina Lopes diferenciam narrador autodiegético de homodiegético, pelo facto de este último «ter participado na história não como protagonista, mas como figura cujo destaque pode ir da posição de simples testemunha imparcial a personagem secundária estreitamente solidária com a central» (REIS, C.; LOPES, A. C., 2007: 265-266).

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Em particular na obra Escrito na Parede, as diferentes formas permitir-nos-ão, por exemplo, usar as palavras das personagens Lindinha, Daniel e mesmo de Jaime como uma «criminal or psychoanalytical evidence» (ECO, U., 1982: 184), uma vez que todos os elementos textuais confluem para salientar o comportamento

34 compreendemos por que razão o narrador heterodiegético ignora aquilo que as personagens- narradores também ignoram. E apesar de ambas as narrativas apresentarem diferentes elementos focalizados, constatamos que nem sempre os narradores dizem tudo: ou porque recusam (deliberadamente) dar toda a informação, ou porque deixam, ao leitor, uma maior margem de interpretação. Acreditamos, no entanto, que, nas duas narrativas, a nossa atenção é orientada para uma mesma temática que, apesar de ser fictícia, deverá ser percebida como a

verdade: a família60.

Nesta medida, queremos ainda acrescentar que as personagens sobre as quais recai fundamentalmente a nossa atenção, Rita e Daniel, constituem, em simultâneo, o tema e a

técnica utilizada pelos diferentes narradores: por um lado, todas elas interessam em função do

mundo que se explora; por outro lado, são o instrumento essencial para a exploração desse mundo (TACCA, Ó., 1983: 121).

1.7.1. Rita, narradora autodiegética

Ora, a centralidade de que Rita goza permite-lhe focalizar quer as personagens (as adultas, em particular) e os seus movimentos, quer elementos relacionados com o espaço interior do apartamento onde vivem (quarto, sala, decoração), ou o tempo, e daí extrair um significado, que, ainda que limitado, e porque constitui o seu campo de visão enquanto personagem da história que narra, constitui um dos recursos para compreendermos a mensagem textual.

Assim sendo, e enquanto personagem, Rita é uma criança e adolescente como outra qualquer: brinca, vai à escola, vê televisão, ouve contar histórias, ouve os conselhos aos adultos e convive com a família mais próxima. É este estreito convívio que lhe permite, depois, orientar a nossa atenção para questões relacionadas com as formas de ser e de estar das personagens adultas.

Em função de uma maior proximidade ou distância com aquelas, numa etapa anterior, a adolescente adoptará uma atitude mais crítica. Com excepção da mãe, por quem revela, por vezes, alguma pena e compaixão, Rita conduz-nos a inferir, por exemplo, as consequências

menos apropriado de Beatriz, mãe de Daniel. 60

Cesare Segre refere que, ainda que o escritor adopte diferentes pontos de vista, deverá apresentar os factos como se da própria realidade se tratasse, sendo que, para tal, poderá concretizar-se como narrador, como personagem-narradora ou protagonista-narradora (SEGRE, C., 1999: 158).

35 emocionais que a distância física do pai acarretaram na sua vida quotidiana, além de revelar as críticas que, de quando em vez, dirige à tia Rute, quando reconhece que, afinal, os seus saberes de experiência feito não correspondem à verdade, sendo antes uma ilusão de óptica.

Aproveita ainda esta posição para mostrar de que modo as personagens, sobretudo adultas, vivem pressionadas pelo tempo (um pai apressado, uma mãe inconformada com a vida presente, uma tia com ideias fixas e um irmão vítima das novas tecnologias), um tempo marcado pela oposição entre um antes e um agora61.

A perspectiva narrativa adoptada socorre-se, portanto, de uma caracterização preferencialmente indirecta. A personagem adolescente não nos diz, directamente, como se comportam os outros, justificando esta posição com o que aprendeu nas aulas de Língua Portuguesa (RRR: 184). Prefere, em vez disso, mostrar, por palavras, o que efectivamente não está explícito, pois tal atitude possibilita, primeiro às personagens, depois ao leitor, tirarem as suas próprias conclusões. Deste modo, a narradora consegue não se responsabilizar totalmente pelas ideias veiculadas no texto.

Por isso, as indecisões que pautam grande parte do seu discurso tornam-se significativas: as três tentativas de início do romance, as frases negativas e o recurso tanto à conjunção coordenativa alternativa ou, como às perguntas retóricas, textualmente dirigidas ao seu leitor, sob a forma de um tu ou um vós62.

1.7.2. Um narrador heterodiegético

Em Escrito na Parede, por sua vez, a história de Daniel é-nos apresentada, em primeira instância, pela voz de um narrador heterodiegético63, ou seja, por alguém que, não revelando possuir o ponto de vista de uma personagem da história, porque dela não fez parte, adopta uma atitude demiúrgica em relação à história que conta e que não é a sua. Por isso, este

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No entanto, nas narrativas em estudo, registamos ter encontrado poucas referências concretas ao tempo cronológico; daí concluirmos que a sua inclusão apenas contribui para que a narração adquira maior verosimilhança.

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Atentemos para algumas passagens textuais: «Ou talvez com a expressão de dor intensa e insuportável do meu rosto pálido e desfalecido. Ou com isso, ou com os meus olhos de panda»; «São duas caras brancas. Ou uma jarra preta» (RRR: 62;108).

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Gérard Genette afirmou que «en fiction, le narrateur heterodiegétique n'est pas comptable de son information, l"omniscience" fait partie de son contrat, et sa devise pourrait être cette réplique d'un personnage de Prévert: "Ce que je ne sais pas je le devine, et ce que je ne devine pas je l'invente"» (GENETTE, G., 1983: 52). Estas afirmações revelam, com efeito, que este narrador «não participa […] na história narrada» (SILVA, V. M. de A., 1991: 761).

36 narrador recorre à visão individual das outras personagens desta história. Daí o facto de se exprimir na terceira pessoa, o que introduz um registo de alteridade em relação à história que narra64.

Sendo assim, este narrador comunica um número limitado de informações sobre a história de vida de Daniel. Sabemos, apenas, que, desde pequeno, foi uma criança entregue aos cuidados de vizinhos, amigos (alguns deles da mesma faixa etária, ou pouco mais velhos) ou ainda de uma avó. A presença da mãe foi sempre escassa. Ressalva-se, todavia, que, quando juntos, Daniel foi vítima de maus tratos, situação que o levou, por vezes, ao hospital, para aí ser socorrido. No entanto, o que a narração demonstra é que, já adolescente, a situação não sofreu grandes alterações.

Como forma de credibilizar o que narra, o narrador preenche, por vezes, o seu discurso de pequenas passagens, em discurso directo, onde apresenta algumas das personagens em diálogo, as quais, com o recurso a analepses65, apresentam a sua visão dos acontecimentos. Assim sendo, estas personagens permitem, por um lado, activar a memória das personagens e, por outro lado acrescentar informações novas e imprescindíveis para a compreensão, quer de momentos determinantes da vida de Daniel, quer da mensagem do texto.

Registamos, a título meramente exemplificativo, episódios relativos à ausência de Beatriz, mãe de Daniel, relembrados pelas personagens da narrativa, em particular por Lindinha, antiga amiga de Beatriz, que desempenha, aqui, o papel de narradora homodiegética, pessoal, uma vez que, ao participar na história como personagem secundária, os seus conhecimentos constituem outra mais-valia.

Portanto, as palavras e as asserções que Lindinha profere adquirem valor de verdade que, no texto, não podem ser postas em causa, na medida em que ela viveu os acontecimentos que, entretanto, nos dá a conhecer. Por outro lado, o facto de, presentemente, se encontrar

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Podemos supor que este narrador procura referir, de modo objectivo e desapaixonado, a personagem protagonista desta narrativa, isto é, adoptando, como código representativo, a focalização externa. A caracterização que é feita de Daniel, no capítulo 0, é precária e intrigante (cf REIS, C.; LOPES, A. C., 2007: 168). Segundo Aguiar e Silva, quando se trata de focalização externa, «as personagens podem ser descritas e representadas na sua fisionomia, no seu vestuário, nos seus hábitos, nos seus gestos e actos, mas sem qualquer análise ou esclarecimento acerca das suas motivações subjectivas. O narrador não demonstra possuir, por conseguinte, qualquer conhecimento sobre a interioridade das personagens, sobre os seus pensamentos e sentimentos não exteriorizados» (SILVA, V. M. de A., 1991: 774).

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A analepse é um recurso narrativo, a que uma personagem pode recorrer, para recordar certos acontecimentos ou o passado de uma personagens. Mas, fundamentalmente, interessa-nos porque nos orienta no sentido de atingirmos «a contextura semântica da obra» (REIS, C.; LOPES, A. C., 2007: 30).

37 fisicamente mais distante de Beatriz, mostra como a distância afectiva se acentua mais, facto que lhe permite ser mais crítica.

De qualquer modo, a apresentação dos acontecimentos e do saber ser das personagens revela, sobretudo, a instituição de um olhar crítico, dirigido às personagens, à excepção de Daniel. Com efeito, constrói-se, desta personagem, a imagem de um ser, ao mesmo tempo,

condenado e sobrevivente66. Condenado a uma vida de sofrimento, de abandono, em tudo contrário ao que devia viver nesta fase da vida; sobrevivente, porque resiste e mantém-se fiel ao propósito de conseguir salvar a mãe das "redes" que a aprisionam.