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CAPÍTULO 1: As personagens: do eu anónimo ao ser pessoa

1.2. Rita e Daniel no espaço familiar

Em RRR, a família surge, pela primeira vez, referenciada no incipit da obra, através da voz «de uma pessoa que deve ser uma rapariga nova. A falar da família» (RRR: 18); a família aparece, portanto, reduzida (neste momento) a três elementos: Rita, Romeu e a tia Rute — abarcando as duas últimas personagens papéis essenciais para a compreensão do sentido global da obra.

Ora, Rita é o elemento mais novo de uma família, de fracos recursos económicos, constituída por um número reduzido de membros — a mãe, Dora, o pai, Romeu e o irmão, mais velho, o Pedro; é este o núcleo familiar. A tia Rute surge como uma personagem ligada à família por um elo de parentesco, ou seja, ela é a irmã mais velha de Romeu177.

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Sendo assim, poder-se-ia concluir que os leitores actuais se sentirão mais motivados para a leitura de temas directamente relacionados com a sua vida quotidiana, ou seja «eficaces en el marco de las exigencias culturales del momento» (TOMAŠEVSKIJ, B., 1996: 41).

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Philippe Hamon explica que «el personaje será definido, pues, por un conjunto de relaciones de semejanza, de oposición, de jerarquía y de orden (su distribución) que establece, en el plano del significante y del significado, sucesiva y/o simultáneamente, con los demás personajes y elementos de la obra» (HAMON, P., 1996: 130-131).

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Note-se que, depois de indicar que o pai é o filho mais velho, a narradora salienta ainda que Romeu tem duas irmãs: a tia Rute e a tia Becas (RRR: 145).

73 As vivências quotidianas desta família são comuns, muito próximas da realidade de muitas famílias. Com profissões diferentes (pai "empresário" e mãe doméstica), as personagens adultas deste núcleo familiar representam as desigualdades de oportunidades em que se encontram, inseridos num mundo ainda muito dominado pelos valores masculinos. É o homem que se ausenta de casa para trabalhar, mesmo quando, neste caso, a sua última empresa foi criada na Internet, enquanto a mulher se dedica às tarefas domésticas; é o homem que continua a transmitir uma imagem de um ser forte, duro, enquanto desta mulher se transmite a imagem de um ser fraco e submisso.

Devido às ausências da figura paterna, por questões de trabalho, os momentos em conjunto são muito escassos, pelo que, consequentemente, as presenças são, sobretudo, marcadas pela falta de diálogo e de trocas de experiências e vivências quotidianas, com repercussões ao nível dos seus relacionamentos. Assim sendo, existem alguns momentos de tensão verbal, sobretudo relacionados com a educação dos filhos ou com as suspeitas de uma relação extraconjugal de Romeu. Estes momentos, tendo lugar maioritariamente na cozinha ou na sala, tornam-se, de alguma forma, representativos da mensagem que se pretende veicular: por um lado, a mãe, responsável pelas tarefas domésticas, refugia-se na cozinha; por outro lado, o pai escolhe a sala como espaço de descontracção e lazer.

Em EP, porém, o caso de Daniel representa uma situação mais delicada. Do seu passado familiar pouco conhecemos. Não existindo nenhuma referência à existência do pai biológico, e com uma referência esporádica à mãe, a imagem que retemos é de que Daniel vive sozinho. Com efeito, a escassez nas relações mãe/filho não permite que se fale de uma presença materna significativa. Neste sentido, o abandono, involuntário, em que se encontra Daniel, suscita um discurso emocionado, sobretudo pela Lindinha, antiga amiga que lamenta a perda de uma ligação tanto física como emocional com Daniel, para ela tão importante.

Na verdade, é com Lindinha que Daniel surge em momentos de maior interacção afectiva e lúdica. Sabendo que Daniel não tem qualquer elo com a mãe biológica, ou com o resto da família, Lindinha e Artur representarão os pais 'afectivos' de Daniel — facto comprovado, diremos, pelo destaque, num único parágrafo, da frase «O Daniel gosta da Lindinha e do Artur» (EP: 43), frase esta que, note-se, em nenhum momento da narrativa é dita a propósito de Beatriz. Já em relação a Beatriz sabemos, apenas, e através de umas primeiras palavras da responsabilidade do narrador, que a mãe mantém uma relação amorosa

74 com um homem casado, «uma espécie de padrasto» para Daniel (EP: 99). Porém, se Beatriz não lhe consegue transmitir segurança, procuraremos ver de que modo Jaime também o não conseguirá.

Assim, importa sublinhar que tanto em RRR, como em EP, a família é, então, o tema central das obras — ainda que esse tema seja tratado, estrutura e semanticamente, de forma diferente, uma vez que até as próprias famílias são diferentes. Se, na primeira destas obras, nos deparamos com uma família tradicional, baseada numa concepção tripartida (pai, mãe e filhos), encontramos, na segunda, uma família monoparental, constituída por uma mãe e um filho.

Deste modo, compreendemos que, face à grandeza deste tema, já não se revelará muito importante saber se Rita conclui a escrita do romance, ou se Daniel consegue concluir mais um desenho em grafitti, na medida em que pensamos que estes constituem segmentos de menor relevância temática. Por isso, a intenção de escrita do romance, por Rita, ou a pequena redacção escrita por Daniel, subordinada ao título "Em vias de extinção", constituem apenas uma das estratégias utilizadas para a criação de uma ilusão de óptica no leitor, uma vez que se pretende fazer sobressair, em particular, a importância das relações familiares, no momento presente, enquanto primeira instância de socialização do indivíduo. Já a partir daí, as atenções centram-se, fundamentalmente, nas relações familiares e no que elas representam para o adolescente.

A imagem da família não representa, no entanto, uma estrutura forte e coerente. Com efeito, a família configura-se como uma estrutura, de dimensões (muito) reduzidas, onde diferentes vozes se confrontam. E é neste confronto que entendemos que as nossas palavras são sempre, de algum modo, as palavras dos outros, daí nos serem aparentemente estranhas. Diz Bakhtine que, quando dialogamos, «on rapporte, on évoque, on pèse, on discute leurs paroles, leurs opinions, affirmations, informations, on s'en indigne, on tombe d'accord, on les conteste, on s'y réfère» (BAKHTINE, M., 1978: 157), actos de fala que contribuem para a criação de relações interpessoais mais tensas.

Nesta medida, o entrecruzar de diferentes vozes, em espaços de dimensões mais reduzidas e fechadas ao exterior, cria sempre um avolumar de problemas familiares, mais evidente em RRR, os quais tendem a criar uma relação de maior distância entre pais e filhos, de primordial importância na fase da adolescência, já por si uma etapa de sucessivas tensões

75 existenciais e geracionais — já que se confrontam, com frequência, o eu adolescente com o eu adulto.