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CAPÍTULO 2: O leitor e a leitura

2.1. Quem é o leitor?

Ser leitor é apenas mais um dos papéis que todos nós, seres humanos, podemos

desempenhar, individualmente, em família, na escola ou em sociedade85.

Ora, se, para Aguiar e Silva, «todos os escritores têm reconhecido implícita ou explicitamente a importância do leitor» (SILVA, V. M. de A., 1991: 300), considerá-lo-emos, em primeiro lugar, como o receptor da mensagem que um emissor/autor emite86. Enquanto sujeito receptor, a sua participação implica um conjunto de actividades que se desencadeiam «desde el puro entender hasta las múltiples reacciones que suscita» (STIERLE, K., 1987: 89).

Todavia, ser receptor de uma obra não equivale a ser o destinatário da mesma87. Se se pressupõe que o primeiro é uma entidade real, já o segundo pode ser delimitado a nível

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Veja-se, num caso concreto, e com o qual tomamos contacto diariamente, a amplitude de situações que a implementação do PLANO NACIONAL DE LEITURA introduz, presentemente: ainda que dois dos grandes objectivos deste plano sejam promover a leitura (assumindo-a como factor de desenvolvimento individual e de progresso colectivo), inventariar e valorizar práticas pedagógicas e outras actividades que estimulem o prazer de ler entre crianças, jovens e adultos (cf. Anexo da Resolução do Conselho de Ministros nº86/2006), é um facto que a sociedade, em geral, foi, directa ou indirectamente, sensibilizada (e responsabilizada) para a necessidade de se envolver e reunir esforços que contribuam para o aumento da literacia da leitura.

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Note-se que (sublinhamo-lo apenas por uma questão metodológica) Aguiar e Silva relembra a necessidade de não se confundir receptor com destinatário, uma vez que «o destinatário de uma mensagem pode ser, ou não, seu receptor», mas um receptor não é necessariamente […] o destinatário das mensagens de que é receptor» (SILVA, V. M. de A., 1991: 304).

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Segundo Bernhard Zimmermann, o conceito de destinatário «designa la función de lector que penetra de modo capital en la producción literaria», constituindo-se como um elemento pré-literário, cuja força

44 extratextual e intratextual. Lembramos, por exemplo, que, quando escreve as páginas do seu diário, Rita (a personagem protagonista d‘‘O Romance de Rita R.) se dirige ao «Querido Diário» (RRR: 26), configurando-o como uma construção imaginária. O mesmo não acontece quando Rita, no seu discurso, se dirige a um "tu" ou um "vós", marcas linguísticas da presença de um destinatário intratextual88, e que configuram a possibilidade do «lector puede llegar a ser un personaje del texto» (MEREGALLI, F., 1989: 15).

No entanto, além da presença, na narrativa, de um discurso mais dirigido, não excluímos a existência, ainda que virtual, de um ou mais receptores da mensagem do texto. Com efeito, tratando-se de uma narrativa juvenil, esses receptores poderão ser, à partida, os próprios adolescentes, mas também os adultos, no papel de pais, educadores, professores, ou outros.

Contudo, e independentemente do seu estatuto (receptor, destinatário, personagem), as diferentes abordagens permitem a identificação de um leitor pressuposto pelo texto, podendo este ser ou uma construção pura, ou ter por base uma realidade89. Não é, certamente, do nosso desconhecimento que, quando o escritor inicia a escrita de uma obra, tem presente (ainda que mentalmente) o possível público-alvo da mesma, ou seja, ter-se-á, previamente, interrogado sobre «as convenções históricas, sociológicas, culturais» (REIS, C., 1982: 22) dos leitores a quem se dirige90.

Estas palavras significam, portanto, que, se, por um lado, os escritores constroem, à partida, um horizonte de expectativas relativamente aos possíveis receptores, por outro lado,

produtiva só se manifesta, quando aquele é convidado a participar na construção do sentido (ZIMMERMANN, B., 1987: 48). A este propósito, Cesare Segre aponta para a existência de destinatários ideais, ou seja, para aqueles «grupos de pessoas ligadas ao autor por uma comunhão de concepções literárias» (SEGRE, C., 1999: 21), pelo que se encontram, de algum modo, controlados por eles.

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Carlos Reis e Ana Cristina Lopes referem que aquele leitor que é, muitas vezes, invocado não poderá ser confundido com o leitor real, uma vez que «apesar de eventuais conexões com o real, tais narrativas não anulam a ficcionalidade, apenas a dissimulam, de acordo com certas convenções da época» (REIS, C; LOPES, A. C., 2007: 219).

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Ainda a este propósito, de novo Carlos Reis e Ana Cristina Lopes nos elucidam, quando adiantam que o facto de o leitor real poder corresponder, ou não, ao leitor implicado, «é uma possibilidade que escapa ao controlo do autor» (REIS, C.; LOPES,A. C., 2007: 220).

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Esta opinião é sublinhada por Peter Rabinowitz, quando refere que as escolhas artísticas são baseadas em suposições infinitas (de cariz mais pessoal e social, como é o caso das crenças, mas também mais gerais, como as históricas e sociológicas ou culturais) que, «conscious or unconscious» (RABINOWITZ, P. J., 1987: 21), os escritores têm dos leitores. Por seu lado, também Umberto Eco salientou que «gerar um texto significa actuar segundo uma estratégia que inclui as previsões do outro» (ECO, U., 1979: 57), isto é, prever as possíveis reacções do leitor.

45 criam as condições internas para que o sentido seja construído de uma determinada forma e não de outra, ou seja, orientam a concretização estética do texto que criaram.

Assim, parece-nos, agora, pertinente falarmos da presença de um leitor implícito no texto, o qual, segundo Iser, é «une conception qui situe le lecteur face au texte en termes d'effets textuels par rapport auxquels la compréhension devient un acte» (ISER, W., 1985: 70). Sem possuir uma existência real, Gérard Genette considera-o91 uma construção mental, à semelhança do que postula para o autor implicado. Assim sendo, e enquanto construção mental, a sua presença, mais do que como uma função do texto, deve ser entendida como «condición del posible efecto, y que, por lo tanto, orienta previamente la actualización del significado» (STIERLE, K., 1987: 78). Entendemos, no entanto, que esta prévia orientação não é condição para que o sentido se determine, uma vez que ela se limita a exercer uma função organizadora.

Portanto, longe de desempenhar uma simples função, e porque o leitor constitui um sistema de referência do texto, o leitor desdobra-se em vários tipos de leitor92, que se constroem, todavia, em torno de duas concepções básicas: por um lado, o leitor real, por outro lado, o leitor ideal93.

No que diz respeito ao leitor real, ele define-se como receptor concreto, com características físicas, psicológicas, culturais que, ao mesmo tempo que o individualizam, contribuem para a criação de situações mais heterogéneas. Atentemos, a título de exemplo, para a distinção que Jauss realiza entre leitor implícito e leitor explícito (JAUSS, H. -R., 1987: 78), mostrando como este último, em virtude de ser histórica e socialmente determinado, imprime ao texto maior subjectividade, o que pode dificultar a sua identificação. Todavia, para Cesare Segre (SEGRE, C.: 1999: 21), este leitor real tende a afastar-se do autor/escritor, pelo que as relações mais próximas entre ambos se norteiam, sobretudo, por sentimentos de curiosidade, simpatia, e atracção.

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Para Gérard Genette, «le narrataire extradiegétique, ou lecteur impliqué, n'est pas un élément du texte mais une construction mentale fondée sur l'ensemble du texte» (GENETTE, G., 1983: 94), portanto uma entidade virtual, que pode estar mais ou menos implicado no texto.

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Iser (1985: 64) refere-se, por exemplo, ao «archilecteur», de Rifaterre, e ao «lecteur informé», de Stanley Fish.

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Iser entende que, a par deste leitor ideal, existe ainda um «lecteur contemporain» (ISER, W., 1985: 61), pelo que, se se trabalharmos na perspectiva do leitor contemporâneo, estaremos a pensar numa história da recepção.

46 Por sua vez, sob o leitor ideal paira a suspeita de não ter um substrato empírico94, mas de ser simples construção. Segundo Iser, este leitor «devrait épuiser le potentiel de sens du texte indépendamment de sa propre situation historique» (ISER, W., 1985: 63). No entanto, em virtude de se afigurar pouco provável esgotar a multiplicidade de sentidos que o texto encerra, Iser admite que este leitor ideal é uma «fiction» (id.: 64), uma vez que está destituído de concretização real. Por conseguinte, a sua presença (virtual), numa obra, justificar-se-á, em princípio, pela necessidade de reconhecimento, pessoal e social, por um trabalho realizado pelo autor, mais do que por uma função concreta na obra. Não nos parece, portanto, desajustado afirmar que o leitor ideal seja «aquele que lê atentamente, apreciando todas as figuras de estilo e as descrições pormenorizadas dos espaços e dos ambientes» (RRR: 68), se prevermos que o autor está a postular que o seu leitor possua os mesmos códigos que ele.

Sendo assim, e para que este leitor ideal ‗exista‘, Iser entende, ainda, que ele deve partilhar os mesmos códigos que o escritor (ISER, W., 1985: 62), o que o aproximará da concepção de Leitor-Modelo, concepção essa proposta por Umberto Eco, em Leitura do texto

literário - lector in fabula; na opinião de Eco, o escritor pode prever, para organizar a própria

estratégia textual, que o leitor seja possuidor de um conjunto de competências, as mesmas de que ele dispõe, para ser capaz de cooperar na actualização textual95.

De qualquer modo, adverte Eco, que «prever o Leitor-Modelo não significa apenas "esperar" que exista, significa também conduzir o texto de forma a construí-lo» (ECO, U., 1979: 58-59), isto é, escolhendo uma língua ou uma competência lexical e estilística determinada, proporcionando certas marcas de género que seleccionam o público leitor (crianças, jovens, médicos, políticos, entre outros). Todavia, o autor nem sempre consegue que a sua mensagem seja interpretada pelo leitor ideal, o que instituirá uma «impossibilité structurale de la communication» (ISER, W., 1985: 62).

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Em nota de rodapé, num interessante artigo intitulado «Prolegomena to a theory of reading», Jonathan Culler entende que, para falar do leitor ideal, «is to forget that reading has a history. There is no reason to suggest that the perfect master of today's interpretive techniques would be the ideal reader or that any trans-historic ideal could be conceived» (CULLER, J., 1980: 53).

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Aceitando-se esses pressupostos, o leitor-modelo de Umberto Eco responderia «correctement (c‘est-à-dire conformément aux voeux de l‘auteur) à toutes les sollicitations – explicites et implicites – d‘un texte donné» (JOUVE, V., 1993: 31), independentemente de estas poderem conduzir o leitor a uma interpretação menos correcta. Vincent Jouve considera que se «l‘échec interprétatif […] est programé par le récit - peut être une des ―conditions de bonheur‖ de la lecture».

47 Como quer que seja, o leitor «est une créature fictive, un rôle dans lequel nous pouvons entrer pour nous regarder nous-mêmes. Le début de cette transformation nous reste habituellement inconscient; elle commence quand nous lisons dans le sous-titre d'un livre le mot "roman"» (KAISER, W., 1977: 68).

Entretanto, importa ainda acrescentar que Hans-Robert Jauss, além de defender a ideia de que o leitor é um receptor, atribui-lhe duas outras funções: a de «discriminateur (fonction critique fondamentale, qui consiste à retenir ou à rejeter), et, dans certains cas, du producteur» (JAUSS, H.-R., 1990: 12). É, pois, a função de (co)produtor de sentidos que iremos procurar desenvolver de seguida.