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CAPÍTULO V – A PESQUISA EM DISCUSSÃO

5.3 O QUE PESQUISAM?

5.3.2 A pesquisa desenvolvida na escola

As pesquisas que os professores dizem realizar na escola apontaram para uma busca em função da demanda da prática pedagógica. Os temas desenvolvidos na escola por esses professores foram identificados: busca na literatura de assuntos não conhecidos pelos professores; projetos de conteúdos a serem desenvolvidos com os alunos; aprofundamento de conhecimento sobre o conteúdo para melhor explorá-lo; elaboração de formas diferentes de tratar o conteúdo para viabilizar a sua materialização de acordo com as concepções éticas e políticas do professor, planejamento das sequências de aulas de forma a problematizar os conteúdos a serem trabalhados; produção de materiais didáticos. Por mais exemplos que os professores possam ter dado, fica difícil diferenciarmos essas atividades desenvolvidas e apresentadas aqui como pesquisa daquelas atividades que normalmente fazem parte do planejamento docente ou daquilo que chamamos de momentos de estudo (apropriação do conhecimento já existente).

Importante destacar que algumas atividades relatadas pelos professores, apesar de não identificarmos como pesquisa, também não as consideramos como buscas imediatas ou atividades cotidianas. Percebemos que há estudos (do conhecimento existente, porém desconhecidos por eles) em que os professores motivados para melhor compreender ou querer qualificar o seu trabalho, buscam apropriar-se de conhecimentos não cotidianos de forma a enriquecer a sua formação/atuação/trabalho. Há também planejamentos em que os

professores, numa relação de consciência com o gênero, tentam pensar formas de trabalhar o conteúdo de maneira mais contextualizada, procurando dar materialidade às suas concepções éticas e políticas.

Porém, percebemos que esses esforços, na maioria das vezes, ocorrem fora da jornada de trabalho. São esforços individuais em que os professores tendem a concentrar a sua atenção na apropriação de um conhecimento não cotidiano, promovendo processos de homogeneização, elevando-o acima da heterogeneidade da vida e do pensamento cotidiano, tornando as suas intervenções mais conscientes e enriquecedoras. Tais fatos nos fazem pensar que, não necessariamente, a pesquisa é a única estratégia capaz de dar consistência ao trabalho do professor.

A Professora E faz uma observação: “Sempre faço [pesquisa] para dar aula. Não tenho aquele caderninho escrito, não, de todo ano repetir a mesma coisa, não. Mas é o que deveria ser? Não, é superficial”. Ela esclarece que a atividade de pesquisa desenvolvida por ela na escola se dava no planejamento colaborativo que era feito em parceria com mais duas professoras da área, porém de outras escolas. Esses encontros aconteciam semanalmente no dia de planejamento destinado à área da Educação Física. Os encontros ocorriam na jornada de trabalho, porém as pesquisas aconteciam individualmente para além da carga horária de trabalho. A pesquisa desenvolvida era no sentido de aprofundamento da temática a ser trabalhada. Buscavam-se uma melhor compreensão dos conteúdos em relação ao seu contexto histórico e social, para que, quando trabalhado com o aluno, fosse explorado de uma forma mais ampla. O conhecimento apropriado era socializado e discutido coletivamente. Além disso, também tinham o objetivo de pensar formas de materializar, por meio do conteúdo, concepções éticas e políticas defendidas pelo grupo. A Professora E explica:

Nós trabalhamos com tema e cada tema exigia pesquisa. A gente não pesquisava autores que falavam de educação de forma mais profunda, mas a gente pesquisava dentro daquilo que a gente necessitava [...]. Foram pesquisas superficiais, mas foram pesquisas. Não da forma que eu gostaria, porque requer tempo e eu não tinha esse tempo.

O Professor C ilustra da seguinte forma a atividade de pesquisa desenvolvida por ele na educação básica.

[...] por exemplo, a criança que chegou na turma que eu peguei no início do ano e a criança tinha um problema motor. Onde que se insere o pesquisador? Chamar os pais para conversar, aprender um pouco melhor o que ela tem para, a partir daí, estudar um pouco para possibilitar a ela uma aula de Educação Física em que ela se veja na aula, participe da aula e que traga bem-estar para ela. Nesse sentido, eu

considero que isso é uma pesquisa, não pode ser outra coisa. É pesquisa, você foi em busca de alguma coisa, a partir de uma demanda que estava posta. A realidade era qual? A menina que estava com determinada limitação. Ela tinha uma outra possibilidade de movimento? E aí, eu fui aonde? Eu fui buscar um pouco compreender os modos diferenciados de como poderia atuar com ela. Isso é pesquisa.

Já o Professor A explica que a pesquisa realizada por ele na educação básica ocorre no desenvolvimento da aula junto com o aluno. Dessa forma, pesquisa é identificada com projeto para o desenvolvimento dos conteúdos em aula:

Fizemos um projeto de esporte de aventura no morro Mestre Álvaro com as oitavas séries. Eles tiveram toda uma preparação antes. Como era uma corrida de aventura, eu tive todo um trabalho com eles durante o segundo semestre para culminar neste projeto de preparação física. [...] eu tenho um acompanhamento com eles assim: primeiro, logo no início do ano, fazemos o teste de Cooper de 12 minutos. Na quadra, vamos correr os 12 minutos: Quantos metros? Quanto que deu a sua frequência cardíaca quando acabou de correr? Quando era de repouso? E a gente vai acompanhando o ano inteiro. De tanto em tanto tempo, a gente repete. No final do ano, eu posso mostrar para eles se teve alguma mudança ou não. A gente vai comparando durante o ano: ‘Olha, a sua frequência cardíaca em repouso era tanto, depois que você começou a fazer exercício, olha como ela caiu. Olha quando você correu pela primeira vez, você terminou o exercício com 180 batimentos, hoje você terminou com 160’e isso a gente vai trabalhando durante o ano.

Questionada sobre a possibilidade de a pesquisa ser desenvolvida na jornada de trabalho, a Professora B explica: “Dentro das 25, eu faço aquela pesquisa da minha prática pedagógica, no sentido de pesquisar para trazer sempre o melhor no dia seguinte sempre problematizando [...]”. Conforme a fala da Professora B, dentro da jornada de trabalho, é possível o professor fazer “[...] a pesquisa para ele montar o que ele vai levar no dia seguinte”. Vejamos um dos exemplos: “[...] você faz um projeto, igual eu estou fazendo atualmente: Diversidade cultural. Aí tem que fazer uns bonequinhos de pano, mas eu tenho quatro turmas de 25 alunos cada uma. Como fazer bonequinho de pano? Que modelo fazer para quatro turmas de 25? Eu tenho que pesquisar [...]”. Para a Professora B, o que não daria para se fazer nas 25 horas semanais é “[...] melhor contextualizar isso, [...] publicizar no sentido de [...] transformar isso em fonte escrita e, a partir daí, dividir com os pares na formação, dali de repente virar um livro, para isso ele não tem tempo”.

Como vimos, todas as atividades exemplificadas são extremamente necessárias ao trabalho do professor, demonstram uma preocupação do professor em planejar o seu trabalho, afastando-o da ação improvisada (apesar da imprevisibilidade da prática pedagógica, as aulas são planejadas). Percebemos que as ações dos professores entrevistados são racionalizadas, organizadas e coordenadas em prol da obtenção de seus objetivos pedagógicos, políticos e éticos. Estudar profundamente o conteúdo a ser socializado com o aluno, buscar

conhecimento sistematizado para melhor compreender a deficiência do seu aluno e, assim, elaborar atividades de acordo com suas necessidades e possibilidades, trabalhar com determinados conteúdos com metodologias diferenciadas, preparar o seu próprio material didático a ser utilizado em aula, a nosso ver, são atividades valiosas e não cotidianas, mas que caracterizam muito bem a amplitude do planejamento e não a pesquisa. Reconhecemos nessas atividades um trabalho intelectual, por vezes, resultado de processos que demandam certo nível de homogeneização dos professores com os conhecimentos não cotidianos, porém não podemos considerá-las como pesquisas. Não podemos negar que tais atividades perpassam por uma busca de conhecimento, mas, como dissemos, uma busca que parte do desconhecimento individual.

Não percebemos que essas atividades tenham a preocupação com a produção de conhecimentos novos para o campo educacional. A busca por conhecimento se subordina e se condiciona ao objetivo fundamental, que é a qualidade da intervenção da prática pedagógica, ou seja, o ensino. A produção de conhecimento por meio da atividade da pesquisa requer uma sistematização explicativa rigorosa dos elementos que compõem o fenômeno investigado, em um processo analítico e sintético, de forma que possa se exprimir a realidade concreta em toda sua totalidade e relações em abstrações conceituais. Não parece que seja essa a preocupação dos professores. Isso porque, além das condições de trabalho não permitirem, ensino e pesquisa não possuem a mesma identidade.

Houve um relato que fez menção à atividade desenvolvida na escola articulada à ideia de testar, de experimentar didaticamente, como se a própria aula fosse uma laboratório. Tal relato adveio justamente do professor que não se reconheceu como pesquisador:

Peguei cinco turmas [1º ano] e duas turmas de 2º ano, aí falei assim: ‘Cara! Vou morrer’. Porque eu quero ver a coisa acontecendo, se eu ficar lá esperando que a coisa aconteça, acontece de tudo e não é isso que eu quero. Eu quero fazer experiência, eu quero fazer laboratório. Como isso acontece? Peguei as crianças e tracei um mês, um mês de contação de história, fantoches, desenhos de bonecos, dobraduras e ia nessa movimentação. Como funciona? Ia ali fazendo teste [...]. No segundo mês, processo em dupla, em trio para eles aprenderem a socializar bola, bastão.

O breve relato do professor sobre o experimento da organização do ensino (apesar de não ter sido sistematizado de forma rigorosa, com coleta e organização de dados, análise e interpretação com base em reflexões teóricas) nos faz lembrar a posição que defende um objeto diferenciado para as chamadas pesquisas da educação básica. Segundo essa defesa, a prática pedagógica constitui esse objeto.

Nascimento (2011), baseada nos princípios da pedagogia histórico-cultural e no método materialismo histórico-dialético, discute a possibilidade de o professor vir a fazer pesquisa utilizando o seu próprio espaço de aula. A autora traz o experimento didático como procedimento metodológico para obtenção de dados da pesquisa. O procedimento metodológico está subordinado ao objeto de pesquisa, ou seja, o objeto da pesquisa não está dado na realidade, mas será provocado para que apareça na ação do professor. Assim, a organização do ensino passa a ser o objeto de pesquisa do professor. A autora esclarece que “[...] o experimento didático cria uma situação de ensino especialmente organizada para fins da pesquisa. Ele responde, em primeiro lugar, à necessidade da pesquisa e não a necessidade do ensino presente na situação escolar” (NASCIMENTO, 2011, p. 11).

Após a obtenção dos dados por meio do experimento didático, a autora evidencia outros momentos da pesquisa, que é o processo de organização dos dados (lapidação do conjunto caótico de fatos obtidos da realidade empírica) e o processo de análise dos dados. Nascimento (2011, p. 14) deixa claro, na etapa da análise dos dados, que: “[...] a descrição dos fatos não é suficiente, é necessário explicar o fenômeno investigado, explicitando aquilo que não nos parece de imediato e que está oculto quando nos relacionamos diretamente com o fenômeno”. Dessa forma a proposta do experimento didático exige do professor uma distanciamento da heterogeneidade da vida e dos pensamentos cotidianos, promovendo o processo de homogeneização. Mediado por objetivações não cotidianas, o professor concentra os seus esforços e atenção na compreensão e interpretação dos dados coletados, exprimindo por meio de abstrações conceituais o movimento do objeto investigado.

Entendemos que o experimento didático é uma dentre as várias outras possibilidades de pesquisa, de forma a contribuir com a produção de conhecimento da área educacional. Tal atividade demanda um caminho do cotidiano para o não cotidiano e, desse modo, necessita de um método sistematizado. Além disso, o foco sai do aluno e se volta para a própria organização de ensino. Aqui seria diferente do que narra o Professor D .

Interessante notarmos que, mesmo que aconteça no momento da aula, pesquisar e ensinar são vistos, na proposição da autora, como atividades distintas, que vão ao encontro das observações feitas por Saviani (2012) em relação à identificação equivocada da Escola Nova entre ensino e pesquisa. Saviani defende a ideia de que pesquisa é a incursão no desconhecido e o ensino é a incursão no conhecido. Dessa forma, o objetivo do pesquisador está em avançar o conhecimento como o objetivo do professor é fazer desenvolver o aluno.

A nosso ver, equivocada também está a perspectiva de formação do professor reflexivo/pesquisador, quando propõe priorizar a formação do “pesquisador” na formação do professor, principalmente quando a pesquisa proposta é a busca pragmática por solução de problema da prática imediata. Parece que a indistinção entre ensino e pesquisa, tanto na Escola Nova como no professor reflexivo/pesquisador, reforça uma concepção que deprecia o ato de ensinar.

Outro ponto importante ainda a ser tratado neste tópico é que, como prevíamos em nossa hipótese, a falta de tempo traduzida na exaustiva jornada de trabalho do professor foi a principal dificuldade apontada para que essa atividade faça parte do trabalho docente. Apenas um professor considerou não ver problema para o desenvolvimento de pesquisa na educação básica: “Não consigo ver dificuldade nenhuma de se fazer pesquisa na escola. Nenhuma. Basta se organizar e ter o interesse de fazer, o compromisso [...]” (PROFESSOR A). Questionado sobre a possibilidade do desenvolvimento da pesquisa na educação básica, o Professor A afirma:

Acho sim, se ele tiver compromisso, acho sim. As desculpas são sempre eu não tenho tempo, eu não consigo, eu trabalho em duas escolas, eu tenho família, eu tenho filho, eu tenho casa,... Me parece que sempre tem uma fuga para não fazer. Não todos, lógico. Mas sempre tem uma desculpa para não se fazer. Eu não tenho tempo, isso dá muito trabalho. Eu tenho muito conteúdo para aplicar, sempre tem uma fuga.

O Professor A explica que: “[...] quando eu digo que não tenho dificuldade, porque eu não vejo problema de levar para além da minha jornada. Eu não vejo dificuldade de fazer à noite, mas na escola o tempo, sim, prejudica”. Também considera que: “A escola é uma loucura, são inúmeras as situações, as cinco aulas de planejamento não dá para fazer tudo [...]”.

Não poderíamos deixar de mencionar que a possibilidade de a atividade da pesquisa fazer parte do trabalho docente sob condição de extrapolar a jornada de trabalho nos remete às reflexões das pesquisadoras Garcia e Anadon (2009), para quem os discursos subjacentes às políticas públicas da educação básica têm promovido, para além da intensificação do trabalho docente, uma autointensificação. As autoras argumentam que:

[...] a intensificação do trabalho docente nos tempos contemporâneos é [...] resultado de uma crescente colonização administrativa das subjetividades das professoras e das emoções no ensino, sendo indícios desse fenômeno a escalada de pressões, expectativas, culpas, frustrações, impelidas burocraticamente e/ou discursivamente, relativamente àquilo que as professoras são ou deveriam ser profissionalmente, àquilo que as professoras fazem ou deveriam fazer, seja no ambiente escolar ou mesmo fora da escola (2009, p. 71).

Segundo as autoras, “[...] termos como cidadania, qualidade de ensino, compromisso social, doação, empenho, comprometimento docente e relação dialógica aparecem no interior dos discursos das políticas educacionais oficiais, interpelando as professoras em suas imagens e autoimagens docentes” (GARCIA; ANADON, 2009, p. 69). Assim, esforços que vão para além da carga horária estipulada ao trabalho do professor são aceitos em nome do profissionalismo, do comprometimento social, da responsabilidade e da qualidade do profissional.

Percebe-se, pelo relato do Professor A, que a sua compreensão cria um clima de cobrança, de culpabilização com os outros profissionais da escola. Parece que a falta de condições objetivas para a realização do trabalho é invisibilizada pelo próprio professor, como se a atividade docente dependesse apenas da subjetividade, da força de vontade, da motivação de cada um.