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CAPÍTULO II – A RELAÇÃO ENTRE TEORIA E PRÁTICA NA PERSPECTIVA

2.4 A PESQUISA: UM CAMINHO DO IMEDIATO AO MEDIATO

A nosso ver, a pesquisa representa um dos esforços humanos que caracteriza a teorização e, nesse sentido, participa da esfera não cotidiana da vida. Por isso, longe de prolongar o vivido, ela se coloca na contramão desse caminho: ela se distancia do vivido, para melhor compreendê-lo.

A teorização não se confunde com a pesquisa teórico-bibliográfica. Enquanto o conhecer peculiar do viver cotidiano se rende às impressões imediatas do fenômeno, o conhecer teórico (não cotidiano) busca captar o fenômeno em suas relações, como ele se constitui. O contato direto com o real permite uma aproximação, uma compreensão vivida, mas não garante uma compreensão teórica dessa realidade.

No vivido imediato, podem existir relações invisíveis que não permitem a compreensão em um contato direto. Por isso, o fenômeno é um misto, ele revela e oculta seus elementos constitutivos. Para que haja a captação do fenômeno em sua essência, é necessário um caminho que direcione, que oriente o pensamento para apreender os elementos visíveis e invisíveis que constituem o fenômeno. Quando nos referimos a um caminho, estamos nos reportando a um método de investigação que torne possível a compreensão da realidade social.

Apesar de Marx não ter feito uma descrição minuciosa de seu método, ele deixa algumas explicações24 importantes para compreendermos como se processava o caminho de suas investigações. Para Marx (1987, p. 17), o método “[...] não é senão a maneira de proceder o pensamento para se apropriar do concreto, para reproduzi-lo como o concreto pensado”. Paul Lafargue (2009),25 em seu relato sobre a vida de Marx, descreveu como esse pesquisador se debruçava sobre o fenômeno investigado. Segundo Lafargue, Marx

[...] não via apenas a dimensão superficial das coisas. Penetrava nelas, estudava todos os elementos, as ações e reações recíprocas, isolava um por um desses elementos e pesquisava-lhes a evolução e o desenvolvimento. Em seguida, passava ao estudo do meio ambiente e observava efeitos e reciprocidades. Ele remontava à origem do objeto ao estudo, às transformações, evoluções e revoluções que eles haviam sofrido para alcançar, enfim seus efeitos mais longínquos. Não se detinha ao fenômeno isolado, mas relacionava-o com o ambiente. Via a complexidade do mundo em perpétua atividade (p. 8).

No marxismo, “[...] o pensamento não pode se apropriar do concreto de forma imediata, não pode reproduzi-lo através do contato direto. O contato direto produz no pensamento uma ‘representação caótica do todo’, que não pode ser considerada como efetiva apropriação da realidade pelo pensamento” (DUARTE, 2000a, p. 90).

Para Marx, o ponto de partida da investigação pelo pensamento é a realidade empírica, momento no qual o fenômeno se apresenta como uma realidade caótica, compreendida na sua imediaticidade e, por isso mesmo, há a necessidade da pesquisa. Como já falado, o fenômeno revela, mas também oculta os elementos que o constituem. Parafraseando Marx: se aparência e essência fossem a mesma coisa, não precisaria existir ciência nem filosofia. Se aparência e essência fossem a mesma coisa, compreenderíamos plenamente a realidade apenas entrando em contato direto com ela e, dessa forma, não precisaríamos fazer pesquisa.

A pesquisa na tradição marxista é a busca pela apreensão da essência (a estrutura e a dinâmica) do fenômeno investigado, por meio do procedimento de análise e de síntese. Netto apresenta pontos importantes para pensarmos o papel do pesquisador no processo de pesquisa, inclusive traz a opinião de Marx sobre essa questão:

24

Na Introdução do livro Para a crítica da economia política, Marx explica resumidamente o seu método de pesquisa. Porém, Marx resolve não publicá-lo, pois acreditava que estaria antecipando alguns resultados de sua pesquisa e isso não seria uma boa estratégia. Esse prefácio foi publicado somente depois a sua morte.

25

Paul Lafargue (1842-1911) nasceu em Cuba e viveu a maior parte da vida na França. Foi um revolucionário, jornalista socialista francês, escritor e militante político. Foi genro de Karl Marx, casado com a sua segunda filha, Laura. O direito à preguiça é a sua obra mais conhecida.

[...] o sujeito [pesquisador] deve ser capaz de mobilizar um máximo de conhecimentos, criticá-los, revisá-los e deve ser dotado de criatividade e imaginação. O papel do sujeito é fundamental no processo de pesquisa. Marx, aliás, caracteriza de modo breve e conciso tal processo: na investigação, o sujeito ‘tem de apoderar-se da matéria, em seus pormenores, de analisar suas diferentes formas de desenvolvimento e de perquirir a conexão que há entre elas (MARX, 1968, p. 16) (NETTO, 2009, p. 7).

Na pesquisa, o investigador parte de um todo, de um fenômeno geral, e faz um esforço analítico para identificar e conhecer os elementos que constituem esse fenômeno. O pesquisador parte, então, do todo para as partes. A análise constitui “[...] a necessidade de segmentar o complexo em conjunto de unidades” (DUARTE, 2000a, p. 80). Analisar é tentar conhecer os elementos constitutivos de um determinado fenômeno, é descobrir o que dá ser, o que faz aquilo existir. Durante o processo de análise, é feita uma abstração, as partes constitutivas do fenômeno são pinçadas e investigadas. Marx considera a capacidade de abstração com um meio substituto do microscópio e dos reagentes químicos na análise da sociedade: “A abstração é a capacidade intelectiva que permite extrair da sua contextulidade determinada (de uma totalidade) um elemento, isolá-lo, examiná-lo; é um procedimento intelectual sem o qual a análise é inviável” (NETTO, 2009, p. 13). É o momento em que se retira do elemento abstraído suas determinações mais concretas até atingir as mais simples. Após a investigação das partes, cabe fazer a viagem do modo inverso, isto é, compreender a articulação das partes entre si e com o todo. Se não houver a síntese, que é a compreensão dessas relações (das partes com o todo e entre si), não tem como compreender o fenômeno em sua essência. É importante ressaltar a observação de Silva (2005) que, no processo de conhecimento do objeto investigado, a decomposição para conhecer a sua estrutura não significa reduzi-lo às suas partes. Como reconstituí-lo não representa a soma dessas partes, é necessário conhecer suas interações, o movimento que as une, sua criação, enfim, sua unidade. Fazer a viagem de volta, para Marx, é voltar ao ponto de partida, “[...] mas desta vez não como uma representação caótica de um todo, porém como uma rica totalidade de determinações e relações diversas” (MARX, 1987, p. 16).

Vejamos como Duarte (2000a, p. 92) explica esse retorno:

O trabalho analítico com as categorias mais simples e abstratas seguirá agora o percurso do progressivo enriquecimento da teoria interpretativa da realidade, até atingir novamente o todo que foi o ponto de partida, só que esse todo já não mais se apresenta ao pensamento como uma representação caótica, mas como ‘uma rica totalidade de determinações e relações diversas’. O concreto é, assim, reproduzido pelo pensamento científico, que reconstrói, no plano intelectual, a complexidade das relações que compõem o campo da realidade que constitui o objeto de pesquisa.

Quando o pesquisador volta para o todo ponto de chegada, percebe que não é o mesmo todo que foi ponto de partida, porque agora o pesquisador olha para esse todo e consegue reconhecer as várias determinações e relações que compõem esse todo. Entre o todo ponto de partida e o todo ponto de chegada, há uma mediação de procedimentos de análise e de síntese que faz com que o pesquisador compreenda o concreto.

Para Marx (1987, p. 16), “O concreto é concreto porque é a síntese de muitas determinações, isto é, unidade do diverso”. Ele ainda explica que “[...] o concreto aparece no pensamento como processo da síntese, como resultado, não como ponto de partida, ainda que seja o ponto de partida efetivo [...]” (MARX, 1987, p. 16). Isso quer dizer que Marx entende o concreto num duplo sentido, o concreto real e o concreto pensado. O concreto real é o mundo material, que existe independente do pensamento, é o ponto de partida de todo pensamento. Já o concreto pensado é uma categoria do pensamento, é a reprodução do real pelo pensamento, mas não é o próprio real.

Duarte (2000a, p. 93)explica que:

[...] o conhecimento é explicitamente entendido como apropriação da realidade objetiva, com reprodução dessa realidade no pensamento, isto é, a epistemologia de Marx é materialista e dialética, o concreto pensado é a apropriação dialética do concreto real através da mediação da análise, mediação do abstrato.

O concreto pensado é a reprodução ideal da estrutura e da dinâmica do objeto que se pesquisa. Então, o concreto pensado é o conhecimento teórico da/sobre a realidade. Um conhecimento categorial, conceitual, que surge da realidade, mas não é a própria realidade. Netto (2009, p.5) define teoria como “[...] o movimento real do objeto transposto para o cérebro do pesquisador – é o real reproduzido e interpretado no plano ideal (do pensamento)”. Dessa forma, fica ainda mais esclarecedor compreendermos como a tradição marxista concebe a relação entre teoria e prática na produção do conhecimento e no viver humano: uma relação de unidade, em que dimensões da experiência humana interagem, sem no entanto representarem uma mesma identidade.

É comum pesquisadores de outras tradições filosóficas (entre elas o pragmatismo) afirmarem, assim como Marx, que suas investigações partem da realidade concreta. Porém, essa aproximação se faz com uma compreensão equivocada quanto ao significado de concreto, como se o concreto ponto de partida da investigação fosse o fenômeno já revelado em sua essência. Na visão positivista, basta o empírico, o fato observado, mas, para Marx, o empírico é apenas o ponto de partida. Lefebvre (1991, 112) faz a seguinte análise:

O empirismo tem razão ao pensar que se deve partir do sensível, mas erra quando nega que seja necessário superar o sensível; o racionalismo tem razão em crer nas ‘ideias’, mas erra ao substancializá-las metafisicamente, situando-as fora do real que elas conhecem.

Continuamos a sua análise dizendo que o pragmatismo tem razão quando parte do concreto real, mas erra ao pensar que o concreto real se apresenta e se revela em todas as suas determinações e relações. Consequentemente, erra também em suas intervenções, pois só podemos intervir, coerentemente, naquilo que conhecemos. “Quem não se aproxima corretamente de um problema, é claro, também não está em condições de resolvê-lo” (FERNANDES, 2008, p. 28).

2.5 MARXISMO E A EPISTEMOLOGIA DA PRÁTICA: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES