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4 METODOLOGIA

4.2 A PESQUISA DOCUMENTAL E OS DOCUMENTOS COMO UMA

Tradicionalmente, o conceito de documento tem forte relação com o texto escrito, pois, conforme Le Goff (2003), o documento como objeto de estudo nasceu entre os historiadores. Para o autor, a memória coletiva da sociedade se forma a partir de dois tipos de materiais: os documentos e os monumentos. Os documentos partiram em um primeiro momento do termo latino documentum derivado de docere que significa “ensinar”, mas evoluiu para o significado de prova, especialmente no âmbito jurídico, tendo sido relacionados aos documentos oficiais. Até o século XX, os historiadores, sobretudo positivistas, concebiam documento e texto como sinônimos e atribuíam o mais alto valor para os documentos, chegando a afirmar que a sobrevivência de um fato histórico na memória coletiva dependia do seu registro documental.

No século XXI, o conceito de documento se ampliou, sendo aceito o seu registro “[...] escrito, ilustrado, transmitido pelo som, a imagem ou qualquer outra maneira.” (SAMARAN, 1961, p. XII apud LE GOFF, 2003, p. 531). Apesar das categorias de documentos terem se diversificado ao longo dos anos, concordamos com Le Goff (2003) ao vislumbrar que a análise do documento permanece situada em um contexto histórico e político, pois:

O documento não é qualquer coisa que fica por conta do passado, é um produto da sociedade que o fabricou segundo as relações de forças que aí detinham o poder. Só a análise do documento enquanto monumento permite à memória coletiva recuperá-lo e ao historiador usá-lo cientificamente, isto é, com pleno conhecimento de causa. (LE GOFF, 2003, p. 535-536).

Portanto, na leitura do referido autor, o pesquisador deve estar atento diante dos documentos, visto que, de forma subjacente, representam o “[...] esforço das sociedades históricas para impor ao futuro - voluntária ou involuntariamente - determinada imagem de si próprias [...]” (LE GOFF, 2003, p. 538). Conforme esse autor, são poucos os documentos que alcançam o poder de se perpetuar como legado da memória coletiva de uma sociedade; aos documentos investidos por essas características o autor atribui a denominação “monumentos”. Refletir acerca do conceito de documento a partir da ótica de Le Goff (2003) nos interessa, sobremaneira, porque a presente pesquisa de doutorado elegeu como principal produto de análise os editais de processos seletivos para o acesso aos cursos de graduação

voltados para a formação de professores de Libras. Os documentos em questão, isso é, os editais se manifestam voluntária ou involuntariamente sobre os caminhos que levam as pessoas surdas a acessarem a educação superior, podendo viabilizar a transformação da história de exclusão com a qual esses sujeitos foram submetidos durante longos anos. Sendo assim, em nossa pesquisa os documentos se constituem, conforme descritos por Lüdke e André (1986), concomitantemente, valiosos e decisivos para a abrangência do objeto de investigação.

De acordo com Severino (2007), com relação à natureza das fontes de uma pesquisa é possível classificá-la em bibliográfica, documental, experimental ou de campo. Em nosso estudo optamos pela pesquisa documental62, um procedimento metodológico considerado de suma relevância e, muitas vezes, decisivo para a investigação, entretanto ainda pouco explorado na educação, assim como em outras áreas das ciências humanas e sociais (SÁ-SILVA; ALMEIDA; GUINDANI, 2009; LÜDKE; ANDRÉ, 1986).

De acordo com Bardin (1977, p. 45-46), ao tentar responder:

O que é análise documental? Podemos defini-la como <<uma operação ou um conjunto de operações visando representar o conteúdo de um documento sob uma forma diferente da original, a fim de facilitar num estado ulterior, a sua consulta e referenciação>>. Enquanto tratamento da informação contida nos documentos acumulados, a análise documental tem por objectivo dar forma conveniente e representar de outro modo essa informação, por intermédio de procedimentos de transformação. O propósito a atingir é o armazenamento sob uma forma variável e a facilitação do acesso ao observador, de tal forma que este obtenha o máximo de informação (aspecto quantitativo), com o máximo de pertinência (aspecto qualitativo).

Nessa perspectiva, em um processo de análise documental o olhar do pesquisador selecionará as informações mais expressivas do conteúdo. Além disso, esse “conjunto de operações”, como denominado por Bardin (1977), permite ao leitor uma interpretação dos documentos cuja leitura será certamente distinta da que se realizaria através do contato, sem nenhum tratamento, com os documentos originais.

62 Apesar do consenso sobre a relevância (e o pouco uso) do trabalho acadêmico com documentos, é válido destacar que a denominação parece ser um conflito na literatura da investigação científica. Segundo Sá-Silva, Almeida e Guindani (2009), alguns estudos tratam como pesquisa documental aquilo que outros aludem por método, técnica, análise documental ou ainda de modo combinado como “método de análise documental”. Em consonância com os autores, optamos aqui por adotar o termo pesquisa, pois “quando um pesquisador utiliza documentos objetivando extrair dele informações, ele o faz investigando, examinando, usando técnicas apropriadas para seu manuseio e análise; segue etapas e procedimentos; organiza informações a serem categorizadas; por fim, elabora sínteses [...]” (SÁ-SILVA; ALMEIDA; GUINDANI, 2009, p. 4). Assim, de acordo com os autores, apenas o conceito de pesquisa pode abranger todas essas atividades. Apesar disso, respeitando os textos originais, quando referirmos determinado autor que não compactua com a expressão “pesquisa” documental, utilizaremos a escolha lexical deste.

O trabalho com documentos originais também é abordado por Sá-Silva, Almeida, Guindani (2009) e Severino (2007) ao discutirem sobre a definição de pesquisa documental sob o viés de sua distinção com relação à pesquisa bibliográfica. Para esses autores, ambas têm o documento escrito como objeto de investigação, porém a principal diferença reside em a natureza das fontes. A pesquisa documental com a qual nos alinhamos neste estudo parte do uso de fontes primárias, ou seja, de matéria-prima sem nenhum tratamento analítico anterior. Por outro lado, a pesquisa bibliográfica se beneficia de fontes secundárias, isso quer dizer que são dados que já foram analisados e tratados por outros autores e, atualmente, constituem domínio científico.

Além disso, cumpre destacar que os documentos da pesquisa bibliográfica estão, geralmente, restritos aos textos escritos ou impressos, enquanto a pesquisa documental abrange uma grande variedade de tipos de documentos, tais como: jornais, revistas, diários, fotografias, filmes, pôsteres, slides, vídeos, gravações, leis, regulamentos, pareceres, normas, cartas, memorandos, arquivos escolares, roteiros de programas de rádio ou televisão, discursos, estatísticas, autobiografias e livros (LÜDKE; ANDRÉ, 1986; SEVERINO, 2007; SÁ-SILVA; ALMEIDA; GUINDANI, 2009).

Essa informação é relevante, pois em nosso percurso metodológico, como será descrito mais adiante, propusemo-nos inicialmente a analisar editais de vestibulares, porém, conforme as questões se tornavam mais complexas, apoiamo-nos também em outros documentos do processo seletivo, dentre os quais alguns escritos e outros em formato de vídeos, tais como as provas e editais em Libras.

Em consonância com estudiosos como Sá-Silva, Almeida, Guindani (2009), Lüdke e André (1986) existem inúmeras contribuições no uso do documento como fonte para o pesquisador das ciências sociais. Segundo os autores as vantagens da pesquisa documental podem ser adotadas de dois modos, ou seja, de forma complementar a outras técnicas de pesquisa, ampliando ou fortalecendo informações obtidas por meio de outros instrumentos metodológicos ou como a única alternativa viável para se obter informações novas e essenciais. Importa enfatizar que acolhemos a segunda abordagem, isto é, utilizamos os documentos não de forma complementar, mas como produto principal de nossa pesquisa.

Consideramos como vantagens acerca do trabalho com a pesquisa documental, tal como pontuam Lüdke e André (1986), o fato de os documentos se constituírem uma fonte rica e estável, cuja possibilidade de análise persiste ao longo do tempo, permitindo revisitá-lo sempre que necessário. Outra vantagem é a de que os documentos formam uma fonte não reativa, isso significa que sua interação com o pesquisador não irá influenciar seu comportamento ou ponto

de vista, embora o olhar do pesquisador não possa ser consideradox’ neutro. E, por fim, a pesquisa documental representa um baixo custo, pois o investimento maior reside no tempo e atenção depositados pelo pesquisador durante o processo de seleção e análise (LÜDKE; ANDRÉ, 1986).

Desse modo, em síntese, adotamos nesta pesquisa o uso da abordagem qualitativa em especial no que tange à pesquisa documental, alinhados a compreensão mais ampla do conceito de documentos como arquivos da memória coletiva e que estão situados em um contexto sócio- histórico e político. A nosso ver, os documentos têm um papel fulcral no delineamento da história, pois têm o poder de influenciá-la e até de modificá-la (LE GOFF, 2003). Assim, compreendemos que os rumos de uma história de conquistas e reafirmação de direitos das pessoas surdas estão em jogo e podem ser desvelados sob a contribuição da análise de documentos, tais como os editais de processos seletivos de cursos de graduação voltados para a formação de professores de Libras. No entanto, a seleção dos editais e de documentos complementares ao processo seletivo não foi realizada aleatoriamente, conforme Lüdke e André (1986), o pesquisador qualitativo precisa conhecer profundamente o contexto de pesquisa para agir sobre ele. Tendo isso em vista, na sequência, apresentamos o contexto no qual esta pesquisa encontra-se situada.