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Uma compreensão ampliada a respeito dos conceitos de língua e

3 IMPLICAÇÕES DO DISCURSO DA DIFERENÇA NO CONTEXTO

3.3 O SURDO NO CONTEXTO DA EDUCAÇÃO BILÍNGUE DE GRUPOS

3.3.1 Uma compreensão ampliada a respeito dos conceitos de língua e

Autores do campo da Linguística Aplicada como, por exemplo, Silva (2005, 2008), Gesser (2006), Kumada (2012), Silva e Kumada (2013), Kumada e Cavalcanti (2014) discutem a necessidade de se desconstruir as noções de semilinguismo no campo da surdez, o que está acompanhado de uma leitura ampliada dos conceitos de língua, bilinguismo e/ou multilinguismo (CÉSAR; CAVALCANTI, 2007).

De acordo com Silva (2008) naturalizou-se no contexto da educação de surdos o discurso de que os sujeitos surdos incapazes de apresentar competências linguísticas na Libras e na Língua Portuguesa são sujeitos “sem língua”. Na mesma direção, Kumada (2012) reuniu representações de familiares, profissionais (surdos e ouvintes) e estagiários participantes de um programa de apoio escolar bilíngue para surdos que evidenciaram essa realidade, sobretudo, no

que se refere aos surdos oriundos de famílias ouvintes que ingressam na escola sem a constituição de um sistema linguístico legitimado pela sociedade, a saber: a Língua Portuguesa ou a Libras.

Para entender melhor esse contexto é necessário considerar o conhecimento difundido na área de que mais de 90% das crianças surdas nascem em lares ouvintes (SACKS, 1998; REILY, 2004; BEHARES, 2015). Essa realidade é essencial para situar o processo de constituição linguística da maioria dos sujeitos surdos, pois a notícia da surdez é quase sempre recebida pela família como a perda do filho “saudável” idealizado e, portanto, ouvinte. Françoso (2003) analisa que o sentimento de perda pode ser comparado a um período de luto com o qual os familiares ouvintes chegam a conviver por anos, gerenciando emoções como, por exemplo, culpa, negação, depressão, confusão e inadequação. Para esses familiares que sabem, geralmente, pouco ou nada sobre a surdez, o diagnóstico e as primeiras orientações são feitos pela área clínica que tem, como já sabemos, a tendência de declinar pela abordagem oralista fazendo com que os pais se agarrem na promessa da “cura da surdez” e, por conseguinte, normalização do surdo.

Sendo assim, a maioria dos pais desconhece a Libras e quando percebem que a oralidade é insuficiente para se estabelecer comunicações efetivas com o filho surdo, naturalmente, produzem uma alternativa que é descrita pelos estudiosos através de várias denominações: simbolismo esotérico (TERVOORT, 1961; BEHARES, 1997, 2015), embrião de linguagem ou linguagem umbilical (LIMA, 2004), gestos (PEREIRA, 1989; ALBRES, 2005), mímicas (LIMA, 2004), língua de sinais primária, língua de sinais emergente ou pidgin (SOUZA; SEGALA, 2009; VILHALVA, 2009) e línguas de sinais caseiras (SILVA, 2008; GESSER, 2006; KUMADA, 2012; SILVA; KUMADA, 2013; KUMADA; CAVALCANTI, 2014).

Na década de 1960, destaca-se o trabalho de Tervoort (1961), provavelmente o primeiro a observar que nas comunicações privadas entre crianças surdas com familiares e profissionais, utiliza-se uma gama de recursos, tais como a fala, os apontamentos, a datilologia, os gestos, os sinais formalizados pelas comunidades surdas, a mímica etc. Para esse autor, é indubitável o potencial linguístico presente nessa comunicação a qual ele conceituou como simbolismo esotérico, e que, segundo Behares (1997), Silva (2005, 2008) e Kumada (2012), não recebeu a devida atenção dentro dos estudos linguísticos fomentados no campo da surdez, pois inicialmente as produções literárias desse âmbito estavam mais voltadas para o fortalecimento da Libras e, neste viés, quaisquer mesclas poderiam enfraquecer esse processo de legitimação. Através da análise de depoimentos de participantes surdos e ouvintes, Kumada (2012) concebe que as línguas de sinais caseiras são constituídas no campo das ambivalências e

contraditoriedades (tal como o terceiro espaço49 de Bhabha, 2007), podendo ser consideradas limitadas a contextos familiares ou a interlocutores específicos e, ao mesmo tempo, funcionais para esses contextos e usuários. A conclusão de seu trabalho infere a necessidade de compactuar com Pereira (1989) e McCleary e Viotti (2011) e admitir que os gestos e a gestualidade carecem de maior atenção no campo dos estudos linguísticos da língua de sinais, tal como já têm sido reconhecidos na linguística das línguas orais.

O reconhecimento e a valorização dos gestos (aquilo que não é aceito como Libras) ou da(s) língua(s) que o surdo traz de casa são importantes para desnaturalizar a recorrência do termo “sem língua”, pois a noção de semilinguismo, conforme Martin-Jones50 e Romaine

(1986) além de atribuir conotações negativas aos falantes, induz ao erro ou a uma visão equivocada do que constitui a natureza da linguagem e a competência de uma língua.

Segundo as autoras, o termo começou a ser difundido no debate referente à competência linguística (e cognitiva51) de crianças bilíngues de minorias quando eram comparadas aos falantes monolíngues nativos, mas surgiu como uma crítica a essa concepção e, erroneamente, passou a circular com uma interpretação deturpada da discussão original (MARTIN-JONES; ROMAINE, 1986). Quando se fala sobre semilinguismo, a proposta não é legitimar a prática desse termo, mas trazer à tona os equívocos introjetados nessa concepção, pois um dos principais prejuízos, conforme Martin-Jones e Romaine (1986, p. 32) é utilizá-lo para nutrir “[...] the belief that there is such a thing as an ideal, fully competent monolingual or bilingual speaker who has a full or complet version of a language.”52

Para Skutnabb-Kangas (1981, p. 35) o erro reside em tentar mensurar o sujeito bilíngue projetando nele a soma de dois sujeitos monolíngues considerados “completos”, pois no caso do indivíduo apresentar um desempenho insatisfatório da norma monolíngue, ele seria visto como doubly semilingual, ou seja, um duplo semilíngue. Para ilustrar essa passagem,

49 Terceiro espaço ou espaço intersticial, grosso modo, desvela um lugar de hibridismo e ambivalências, do novo, de “nem um e nem outro” (BHABHA, 2007, p. 51), que não fazem qualquer reivindicação ou assimilação por uma originalidade pura. Assim, conforme Bhabha (2007) e Tagata (2007) não se trata de um espaço de negação, baseado em binarismos “isso ‘ou’ aquilo”, mas de negociação do “e” que permite a simultaneidade da diferença e da semelhança, da arbitrariedade e do hibridismo por natureza.

50 Cumpre enfatizar que as autoras se detêm em discutir sobre o fenômeno do “semilinguismo” nas línguas orais, embora a Profa Dra Marilyn Martin-Jones tenha autorizado a apropriação dessa leitura para o contexto das línguas de sinais caseiras em suas contribuições como membro da banca de qualificação da dissertação de mestrado de Kumada (2012).

51 Martin-Jones e Romaine (1986) destacam que a discussão sobre as competências linguísticas do sujeito visto como semilíngue não se restringia a desautorizá-lo sob argumentos de ordem linguística, assim como de ordem cognitiva.

52 “[...] a crença de que existe tal coisa ideal, um monolíngue completamente competente ou um falante bilíngue que tem uma versão total ou completa da língua.” (MARTIN-JONES; ROMAINE, 1986, p. 32, tradução nossa).

emprestaremos os esquemas propostos por essa autora para guiar essa lógica bilíngue quantitativa representados na Figura 3.1.

Figura 3.1 – Esquema representativo da noção de bilinguismo idealizado

Fonte: Adaptado de Skutnabb-Kangas (1981)

A visão de competência linguística projetada nesse esquema parte do pressuposto de que haja um comando linguístico completo ao qual o monolíngue idealizado seria alocado no container53 (a). Por sua vez, no container (b), teríamos um bilíngue idealizado com dois sistemas linguísticos, sendo cada um idêntico ao sistema completo de um monolíngue ideal, ou seja, com habilidades iguais em todas as funções linguísticas. Ao passo que o container (c) representaria um sujeito que possui competência linguística completa na L1 e um alto domínio na L2, apesar de ainda não ser equiparado a um monolíngue da L2 em questão. Entretanto, como já é um monolíngue completo na L1, ele não pode ser visto como um semilíngue. Além disso, apresenta grande potencial para chegar a ser um bilíngue completo. Por fim, dentro dessa lógica, à pessoa que não possui a competência linguística de um monolíngue ideal, seja na L1 ou na L2, como pressupõe o esquema do container (d), estaria reservado o rótulo de “semilíngue” ou “duplo semilíngue”.

Para Skutnabb-Kangas (1981) e outros autores como Martin-Jones e Romaine (1986) e Maher (2007) essa concepção quantitativa de bilinguismo acarreta vários problemas. Skutnabb- Kangas (1981) descreve que essa visão parte de um entendimento estático e rígido das habilidades linguísticas humanas e do próprio conceito de língua como pronta e não como permanentemente em construção.

Crítica semelhante é tecida por Maher (2007) e Martin-Jones e Romaine (1986) ao observarem que quando a competência linguística é inserida em container passa a impressão ser um recipiente, o qual poderia estar “parcialmente cheio” ou “cheio”. Maher (2007, p. 77) analisa que sob essas definições, as competências aparecem “[...] aprisionadas em casulos,

53 No trabalho original, Skutnabb-Kangas (1981) não se refere ao seu esquema como container, emprestamos esse termo de Martin-Jones e Romaine (1986, p. 32) que também se apoiam no estudo de Skutnabb-Kangas (1981).

como se pudessem ser fixadas de forma inequívoca e congeladas no tempo”, desconsiderando que a língua não é uma “entidade pronta” e que o sujeito bilíngue não, simplesmente, justapõe uma língua à outra.

A língua como um constructo sócio-histórico não pode ser concebida como estática, do contrário ainda estaríamos usando “vossa mercê” em nosso vocabulário e não teríamos incorporado, recentemente, verbos como “deletar”, “clicar” ou “tuitar54”. Assim, ao se buscar

uma proficiência completa de seus falantes, esquece-se de que nenhuma língua está pronta ou acabada, mas em constante movimento e sob processos contínuos de (re)construção. Logo, inspiradas em Skutnabb-Kangas (1981), cabe questionar: “Se não podemos mensurar o que seria a totalidade de língua, como exigir do sujeito um bilinguismo completo?”.

Nessa ótica, é oportuno acompanhar Maher (2007) e abandonar idealizações do conceito de língua e de bilinguismo, inclusive no que se refere à busca por um bilinguismo sem mesclas, onde cada língua se aprisiona em um “recipiente” distinto, pois para essa autora cabe reiterar a permeabilidade das línguas que habitam o universo do sujeito bilíngue. Para isso, convém, como sugerem Cox e Assis-Peterson (2007, p. 42), pensar a língua como líquida e não como sólida e, assim, imaginá-la em movimento, vazando uma na outra “[...] como rios que correm e se misturam indistintamente com outros rios.” Sob essa vertente de conceituação da língua e com a qual nos alinhamos, as “contaminações” de uma língua na outra constituem um fato natural e recorrente nas práticas comunicativas do sujeito bilíngue. Para Maher (2007, p. 74, grifo do autor):

O funcionamento discursivo do sujeito bilíngue prevê a utilização de mudança de código (code-switching) e empréstimos linguísticos (borrowings) em sua gramática. Um “bom” bilíngue transita de uma língua para outra justamente porque, diferente do monolíngue, tem competência para tanto. [...] Esses procedimentos são, para o bilíngue, recursos comunicativos poderosos dos quais ele lança mão com frequência, para, pragmaticamente, atribuir sentidos vários aos seus enunciados: para expressar afetividade, relação de poder, mudança de tópico, identidade social/étnica etc. Não se trata, portanto, de um déficit, mas de um recurso discursivo sofisticado com que somente os bilíngues podem contar. E é por isso que eles geralmente se sentem mais à vontade na companhia de outros bilíngues: na interação com monolíngues, não podem lançar mão de todas as habilidades comunicativas que têm à sua disposição.

54 Utilizado para traduzir o verbo em inglês to tweet, referente à ação de postar mensagens no microblog Twitter. Para uma discussão mais aprofundada sobre o aportuguesamento dos verbos “clicar” e “deletar”, sugerimos a leitura de Cox e Assis-Peterson (2007) e Assis-Peterson (2008) que propõe refletir sobre aspectos de transculturalidade e transglossia em sociedades contemporâneas.

Trata-se, portanto de aceitar que o contexto bilíngue é genuinamente um espaço de hibridismo, no qual se admite misturas, interferências, empréstimos, mudanças de código sem que isso descaracterize as habilidades e competências linguísticas do sujeito bilíngue. Importa destacar o entendimento de hibridismo como uma crítica ao purismo e como origem de todo fenômeno cultural e linguístico (BHABHA, 2007; MENEZES DE SOUZA, 2010).

E se a língua é sempre, naturalmente, situada nesse espaço do hibridismo, é oportuno pensar em novos conceitos que expliquem apropriadamente o bilinguismo. Para Maher (2007, p. 79), somente um conceito genérico seria capaz de abranger sua complexidade e para isso, talvez seja pertinente concebê-lo simplesmente como “[...] a capacidade de fazer uso de mais de uma língua.” Avançando nesse raciocínio, César e Cavalcanti (2007) discutem ainda as condições das variedades linguísticas, muitas vezes invisibilizadas por não serem reconhecidas nessas discussões. Uma maneira de atender línguas e variedades sem pressupor sobreposições de valores de uma sobre a outra seria acolhê-las todas sob o conceito de multilinguismo, isto favoreceria a aceitação das inúmeras combinações e hibridismos gerados na constituição linguística moderna, das quais, como salientam as autoras, nem os grupos minoritários/minoritarizados como os povos indígenas nem as comunidades surdas escapam.

Essa proposta se coaduna ao artigo 5º da Declaração Universal dos Direitos Linguísticos, de 8 de junho de 1996, em que consta a seguinte redação:

Artigo 5º Esta Declaração baseia-se no princípio de que os direitos de todas as comunidades linguísticas são iguais e independentes da consideração jurídica ou política das línguas oficiais, regionais ou minoritárias. O uso de denominações tais como língua regional ou minoritária não é adotado neste contexto porque, embora em algum caso, o reconhecimento como língua minoritária ou regional possa facilitar o exercício de certos direitos, é frequente o uso dos determinativos para restringir os direitos de uma comunidade linguística. (DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS LINGUÍSTICOS 2003, p. 27).

Fortalecendo o conceito de multilinguismo, cabe resgatar o que Maher (2007) retratou a respeito da dificuldade de se definir assertivamente um número fechado para as línguas existentes no mundo, com estimativas que variam entre 3 mil a 10 mil línguas. Essa indecisão, conforme a autora, decorre justamente do desafio que pesquisadores e responsáveis por tais censos enfrentam em estabelecer critérios para separar o que seja língua daquilo que seria uma variedade linguística.

A propósito de variedades linguísticas em Libras, é possível conferir sua existência no estudo de Silva e Kumada (2013). As autoras realizaram um levantamento dessas variedades

da Libras que advém, tal como nas línguas orais (BAGNO, 1999; CAVALCANTI, 1999) de condições sociais, geográficas, faixa etária, nível de escolaridade etc. Assim, como Silva e Kumada (2013), Gesser (2006) analisa que essas variedades em Libras também são inscritas em relações assimétricas de poder, em que se estabelece um maior ou menor prestígio. Nessa escala de prestígio, algumas variedades regionais, as línguas de sinais caseiras, a Libras praticada pelo ouvinte e o português sinalizado55 tendem a ser as mais estigmatizadas, muitas

vezes desautorizadas enquanto língua pelos profissionais e familiares ouvintes, bem como pelos próprios surdos, como é o caso das línguas de sinais caseiras que foram mencionadas como as que mais sofrem discriminação e, por extensão, os seus falantes.

Desse modo, para abrigar a pluralidade cultural e linguística, concordamos com César e Cavalcanti (2007, p. 62, grifo dos autores) que o termo multilinguismo pode, provisoriamente, suprimir “[...] as dicotomias língua e variedade, língua e norma, língua e dialeto [...]”, elevando todas ao mesmo status de língua, inclusive, como sugere Cavalcanti (2011), aquelas que ainda não foram dicionarizadas ou descritas gramaticalmente (e aqui gostaríamos de inscrever as variedades desprestigiadas da Libras, especialmente, as línguas de sinais caseiras).

Seguir por esse caminho torna mais fácil a compreensão de que surdos são sujeitos bi/multilíngues ao invés de semilíngues e que, em síntese, a língua não é estável, não é sólida, não está pronta, não é neutra, não é pura e, por último, não é homogênea. Em nossa visão, a noção ampliada de língua e bi/multilinguismo aqui compartilhada é essencial para se construir um novo olhar sobre o universo linguístico do surdo e da surdez, domínios que não podem ser negligenciados durante os processos seletivos que lidam com o ingresso de candidatos surdos em cursos (que devem ser bilíngues) voltados à formação de professores de Libras.

Como pode ser vislumbrado, a interpretação da surdez como diferença conduz a uma crítica mais refinada sobre as discussões linguísticas deflagradas nesse contexto para, inclusive compreender e organizar, de forma mais eficiente, o trabalho do ensino e da avaliação das línguas envolvidas, incluindo o português como L2, tal como a seção a seguir abordará.