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CAPÍTULO IV – RECADASTRAMENTO NA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA

4.2 A PONTE SOBRE O ABISMO: A LEI 10.887/2004

A Lei 10.887/2004 é o diploma legal que regulamenta a Emenda Constitucional nº 41 de 19 de dezembro de 2003. Aproveitando a pertinência temática, o legislador introduziu uma importante inovação no ordenamento jurídico: “A unidade gestora do regime próprio de previdência dos servidores, prevista no artigo 40, § 20 da Constituição Federal, procederá, no mínimo a cada cinco anos, a recenseamento previdenciário, abrangendo todos os aposentados e pensionistas do respectivo regime” (artigo 9º, inciso6 II), e a esse artigo somam-se as alterações a vigorar pela Lei no 8.2121991 de 24 de julho, determinadas no Artigo 69 e nos três parágrafos atrás referidos”.

O parágrafo 4º do mesmo artigo surpreende pelo facto de desaparecer, da sua redação, o termo recadastramento: “Para efeito do disposto no caput deste artigo, O Ministério da Previdência Social e o Instituto Nacional do Seguro Social-INSS procederão [...] ao recenseamento previdenciário, abrangendo todos os aposentados e pensionistas do regime geral de previdência social." (§ 4, art. 9º da Lei 10.887/2004)

Ressalte-se que a utilização do termo “recenseamento” reordena não só o sistema de controlo da concessão e manutenção dos benefícios de Previdência dos regimes próprios, mas, também, o próprio regime geral de Previdência, adotando o princípio constitucional da participação democrática da sociedade brasileira em relação ao controlo dos gastos públicos.

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40 Na realidade, é preciso sempre acautelar que a Lei utilize a terminologia adequada e legítima, capaz de garantir representatividade à função do Poder Público de gerir e salvaguardar os direitos dos funcionários públicos aposentados. “Recenseamento” parece, assim, ser o termo adequado e legítimo.

O disposto no parágrafo 4º, do artigo 69º da Lei 8.212/1991, referente aos aposentados e pensionistas do regime geral, e no inciso II do artigo 9º, da Lei 10.887/2004, referente aos aposentados e pensionistas do regime próprio da Previdência, determina a realização periódica do recenseamento pelo poder público, com a finalidade de verificar quaisquer irregularidades ou falhas existentes na concessão e manutenção de benefício.

Numa primeira aproximação exegética, é possível afirmar que, da norma em estudo, não se extrai a aplicação de um preceito sancionador pelo incumprimento da obrigação de recadastrar. Sustenta-se, perentoriamente, esta interpretação não apenas em virtude do sentido filológico do núcleo de ação ─ recadastrar ─ como também, e principalmente, pelo caráter constitucional que filtra a interpretação e aplicação de toda e qualquer norma do ordenamento jurídico brasileiro.

Assim, a norma constante do referido artigo 9º da Lei 10.887/2004 e do parágrafo 4º do artigo 69º da Lei 8.212/91 parece estar baseada num parâmetro constitucional de extraordinário significado. O princípio da participação democrática é, pois, a teia normativa que deve prevalecer no processo de recenseamento de aposentados e pensionistas - que alguns parecem apostados em prejudicar - traduzindo a participação da sociedade civil, enquanto parceira do Estado, no processo de controlo e fiscalização dos benefícios da Previdência concedidos e mantidos pelo Poder Público.

O caminho, que aqui se sustenta, imbuído de legitimidade, decorre do conteúdo da referida norma. Prende-se a uma base insofismável relacionada com o próprio significado do radical cens, do verbo “recensear”.

O substantivo latino censu correspondia, no Império Romano, ao levantamento e registo feitos pelos censores, primeiro com a periodicidade de quatro anos e, posteriormente, cinco, dos cidadãos romanos e das suas propriedades (HOUAISS, 2002). O prefixo re- tem a função de indicar uma ação que se repete. Na língua portuguesa, o radical, mesmo na derivação por prefixação ou sufixação, não perdeu o seu sentido de origem.

O critério de interpretação utilizado no âmbito desta dissertação constitui ponto de partida inexorável. A interpretação recorrente do significado de uma palavra num discurso consagrado orienta o intérprete na busca do sentido e alcance da norma. Fazer tábula rasa do

41 termo que dá representação verbal à ação do Estado na matéria em questão, promove, indiscutivelmente, a violação do que o legislador determinou.

A raiz do termo específico utilizado na norma que fundamenta o sistema do recadastramento, cens, não deixa dúvidas quanto ao sentido que deve ter a ação do Poder Público: o controlo e fiscalização da correta concessão de benefícios da Previdência. Esta é uma atividade exclusiva da Administração Pública, consubstanciada na ação do “recenseador” - agente público -, cujo objetivo é o da contagem, para verificação, ou fins estatísticos, do número de factos, de coisas ou pessoas, em dado momento, em determinado território. Trata- se, portanto, de uma pesquisa de caráter estatístico, realizada periodicamente, que é da responsabilidade exclusiva do recenseador e conta com a participação democrática da sociedade civil.

No Brasil, existe uma fundação pública – o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística-IBGE - criada para este efeito e dotada de capacidade técnica para realizar atividades desta natureza.

Retomando o já referido artigo 69 da Lei 8.212/91, posteriormente reformulado pelas Leis 9.528/97 e 10.887/2004, observamos que o espírito do seu caput determina uma espécie de dever atribuído ao Poder Público, consubstanciado na necessidade de formulação de políticas que impeçam a má aplicação dos recursos da Previdência, criando programas permanentes de revisão da concessão e manutenção de benefícios. Os três primeiros parágrafos do artigo, por sua vez, e em consonância com as balizas fixadas no caput, estabelecem procedimentos para a apuração, por parte da Administração Pública, de eventuais irregularidades na atribuição ou manutenção de benefícios da Previdência.

Note-se que a consagração de regras relativas a procedimentos de apuração e a eventual punição por fraude, ou outra espécie de ilícito relacionado com a concessão ou manutenção desses benefícios, constitui norma de garantia para o cidadão, em estrita observância do devido processo legal.

No artigo 5, Incisos LIV e LV da Constituição Federal, pode ler-se que: “todos são iguais perante a Lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: “LIV - ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal” e “LV - aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes” (1988). O parágrafo 4º do artigo 69 da Lei 8.212/91, cuja

42 redação é mantida na Lei 9.528/97, quase sete anos depois, deve igualmente obedecer às fronteiras hermenêuticas fixadas no caput.

Se é certo que ao Estado é vedado punir o cidadão se tal não for feito em estrita observância das regras processuais previamente estabelecidas para apuração de factos ilícitos, também não é possível admitir uma interpretação que permita ao mesmo Estado punir o cidadão aposentado e/ou pensionista pelo simples facto de não ter procedido ao recenseamento, qualquer que seja o motivo, uma vez que o facto da recusa, por si só, não caracteriza ato ilícito. Além disso, não é apenas a interpretação sistemática interna à norma do artigo 69 e seus parágrafos da Lei 8.212/91 que rejeita a figura do recadastramento e seu corolário obrigacional coercivo, que atualmente prevalece, como, também, a interpretação sistemática externa.

Ao comparar o referido parágrafo 4º com outros mecanismos de controlo e fiscalização de óbitos de beneficiários dos dois regimes de Previdência, mais afetos à própria natureza intrínseca do Estado e expressos nos sistemas SISOBI e SIRC, fica claro que o recenseamento não pode ser interpretado como recadastramento, como sempre aconteceu. O efeito desta interpretação, no que diz respeito aos servidores públicos, revela que todo o artigo 9 da Lei 9.527/1997 foi revogado pela Lei 10.887/2004 que instituiu o regime do recenseamento, na perspetiva até aqui exposta, de forma unitária para os dois regimes.

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