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Como foi mencionada em seções anteriores, a polêmica ao redor da presença de comunidades em áreas protegidas atingiu proporções internacionais e está provocando uma mobilização significativa de uma parte dos 10.000 conselheiros que trabalham com a UICN – União Mundial para a Conservação, órgão de prestígio mundial que colabora estreitamente com as Nações Unidas em matéria de proteção ambiental. É através da sua Comissão de Áreas Protegidas que assuntos desta natureza são debatidos até a exaustão e considera-se que seja notável sua influência entre seus mais de 190 países afiliados.

Iniciados em Caracas, em 1992 (UICN, 1992), e, continuando em Durban, em 2003 (UICN, 2003), os dois últimos Congressos Mundiais de Parques Nacionais e Áreas Protegidas foram cenários do tipo de debate que ocupa este trabalho. Esta seção descreverá alguns dos eventos e resultados obtidos nos diversos encontros de especialistas nas áreas biológicas e sociais dentro do âmbito da UICN.

Começando com o mais recente testemunho, a Reunião Cumbre de Almeria, na Espanha, realizada no mês de maio de 2007, um grupo de 125 especialistas apresentou mais de 60 documentos tentando analisar e revisar os delineamentos estabelecidos em 1994 em relação ao binômio áreas protegidas e comunidades humanas, especialmente em se tratando das categorias V e VI, Paisagens Protegidas e

Reservas de Recursos Manejados, respectivamente. Os resultados ainda não foram publicados, mas Barborak (2007) aponta que os avanços foram otimistas e que se criou um clima menos tenso entre as partes, podendo prognosticar-se uma convergência final em curto prazo. O mencionado autor resumiu as principais conclusões, como segue:

• Fizeram-se os seguintes questionamentos: a UICN está perdendo suas raízes; há favorecimento de umas categorias sobre outras; deve abandonar seus nomes tradicionais.

• Foi solicitado reconsiderar o conceito de Áreas Protegidas de maneira a incluir de alguma forma: sua condição de área designada, limitada e devidamente manejada; a manutenção de valores culturais associados, e, sublinhar seu status legal e os meios para efetivar sua proteção.

• Necessidade de enfatizar que conservação da natureza e da biodiversidade deve ser objetivo de todas as categorias.

• Em caso de conflito, a conservação dos recursos deve prevalecer sobre os interesses comunitários, ou humanos.

• Foram rejeitadas as propostas de eliminar as categorias III (Monumento Natural), V e VI; inclusão de “serviços ambientais” na definição de Áreas Protegidas e da dimensão institucional na definição.

• Foi proposta a divisão da categoria I (Reservas Estritas) em Ia e Ib, além de mudar a ordem das V, II (Parques Nacionais) e VI.

O mesmo Barborak arrisca dizer que surgiram algumas lições úteis para os brasileiros, destacando, entre elas, as seguintes:

• Recomendação de uma trégua entre os “parquistas” e os socioambientalistas. • Aceitação de que todas as categorias de manejo são importantes e que se

devem evitar generalizações nos debates.

• Importância e necessidade que se construa um sistema de unidades de conservação ordenado, progressista e bem gerenciado.

• Conveniência de se procurar a flexibilidade sem pôr em perigo os objetivos de cada categoria.

Outro aspecto desse debate pode ser acrescentado examinando o que por alguns anos tem sido discutido nas reuniões internacionais auspiciadas pela UICN, registradas

em documentos específicos, públicos e institucionais. Um assunto que parece estar rondando a mesa de discussões de especialistas em áreas protegidas é o que se está denominando como Áreas Conservadas por Comunidades - ACCs (Community Conserved Áreas - CCAs), um conceito que deseja ocupar um espaço dentro do escopo de categorias da UICN e que parece estar alimentando o debate que ocupa esta pesquisa.

De acordo com os especialistas da UICN, existem diversos exemplos de bosques sagrados, lagos em vilas e outras terras úmidas em terra e mar, espalhados no mundo inteiro, onde as comunidades indígenas, nômades ou locais têm contribuído por milênios para a conservação de uma variedade de ambientes e espécies, mesmo que, por propósitos bem diferenciados, sejam estes econômicos, espirituais, culturais ou estéticos. Além de terem feito isto muito antes de qualquer governo, ou serviço oficial de áreas protegidas, acredita-se que muitas dessas áreas hoje se encontram ou enfrentam perigos que não podem mais ser relevados. Reconhecem ainda que alguns países já incorporaram estas áreas dentro dos seus sistemas e conseguiram que o Programa de Trabalhos sobre Áreas Protegidas da Convenção sobre Conservação da Biodiversidade as aceitasse como sítios de conservação legítimos a receber apoio e tratamento nacional e internacional (UICN, 2003). O Brasil tem sido reconhecido internacionalmente como um dos países que mais avançou nessa direção (BARBORAK, 2007; TERBORGH, 2007), mesmo que siga chamando a atenção a respeito dos motivos que estimulam esse avanço.

Continuando nessa questão, existe um grupo considerável de técnicos no mundo que propõe uma nova categoria, as ACCs, definida como áreas naturais ou modificadas que contêm um significativo valor ecológico e de biodiversidade, prestam valiosos serviços ambientais e culturais, são conservadas voluntariamente pelas comunidades indígenas, nômades e locais através de leis tradicionais e outros meios efetivos. Tais áreas podem incluir desde ecossistemas naturais até substancialmente afetados pela presença humana, grandes ou pequenas, em todo tipo de paisagem (PATHAK, 2006).

É importante sublinhar que são identificadas três características principais quando se fala de ACCs. A primeira é que uma ou mais comunidades dependem dos ecossistemas e espécies que vivem nessas áreas para sua sobrevivência física ou

cultural. Outra característica é o fato de que as decisões e esforços da comunidade conseguem conservar os recursos dessas áreas e seus serviços ambientais, mesmo que os objetivos conscientes possam ser diferentes. Por último, são as comunidades as principais responsáveis, tanto pelas decisões a serem tomadas, como pela implantação do manejo, podendo ter a plena capacidade para regulamentar os usos, mesmo em parceria com outros stakeholders e instituições.

É possível afirmar que tais características podem reproduzir-se em muitas das áreas protegidas de uso direto no Brasil, mas falta tempo ainda para se chegar à conclusão de seus resultados em relação à saúde dos ecossistemas sob manejo comunitário, ou sobre a influência social desta estratégia conservacionista. Por enquanto, em nível internacional, os debates continuam, como a Reunião de Almeria já descrita anteriormente.

Para concluir esta seção, a opinião do filósofo Kwane Anthony Appiah (2006) parece contribuir no tema deste estudo, especialmente quando fala da contradição entre preservar as raízes culturais de um determinado grupo humano e o desejo de progresso que o mesmo traz consigo. Appiah, quando questionado sobre a recente Convenção assinada pela ONU de proteger a diversidade cultural no mundo, respondeu que “no mínimo é uma contradição”, pois, enquanto a ONU fazia isso, defendia pelo mundo “a livre circulação de idéias, a liberdade de pensamento e de expressão e os direitos humanos”, adicionando que “a convenção para proteção cultural pode ser usada para desrespeitar esses valores”. Claro que ele não está se referindo a grupos humanos isolados como os que vivem tradicionalmente próximos a áreas protegidas, mas guarda um paralelo com a posição do chamado bloco dos “socioambientalistas” de querer preservar a forma de viver desses pequenos grupos sem temor de colocar em risco o tênue equilíbrio entre homem e ecossistemas.

Nessa linha, Appiah continua e adverte que as liberdades individuais são essenciais quando se trata de manter uma cultura: “Uma cultura só tem importância se for boa para os indivíduos”. E isso provoca questões relativas ao progresso cultural das comunidades aqui sob estudo, que tentarão ser respondidas sob a ótica deste filósofo, que nos sugere que “... antes de qualquer consideração, precisamos definir o que vem primeiro, se os direitos humanos ou os costumes estabelecidos”. Continua nos

sublinhando que nem toda diversidade cultural é boa, especialmente quando perpetuamos costumes que vão contra os indivíduos. No caso da REBIO do Lago Piratuba, as mulheres são obrigadas a ter muitos filhos homens para poder acompanhar o ciclo “produção-consumo” de sobrevivência, produzido pelo isolamento e a tradicional pesca artesanal em águas da reserva.

Desta maneira, os argumentos sobre a presença humana em áreas protegidas encontram um ângulo filosófico e ético para seu debate, que tem, nas posições do intelectualismo de Appiah (2006), um paralelo a ser considerado. E sem querer perder a imparcialidade dos argumentos, conclui-se esta parte da fundamentação teórica, transcrevendo mais um trecho da entrevista do mencionado acadêmico:

Os preservacionistas culturais certamente não concordam com a discriminação sofrida pelas mulheres, mas são capazes de tolerar esse absurdo sob o argumento de que se trata de um valor cultural. Isso é errado. Há formas boas e ruins de diversidade cultural... Os preservacionistas culturais, geralmente gente com bom padrão de vida em algum país ocidental, olham para a cultura de outras regiões ou países e dizem: "Que bonito, eles deveriam ser assim para sempre. Devemos fazer com que eles permaneçam com seu estilo de vida autêntico, protegido da nossa cultura ocidental e comercial". É esse tipo de gente que acha ruim que a população de Gana use camisetas e não aquelas típicas roupas coloridas. Ora, cada um deve ter o direito de vestir o que quiser. Se não pode pagar por isso, é um problema de pobreza, não de autenticidade. Ninguém estranha que um cidadão de um país rico viva em uma bela casa do século XVIII com aquecimento central. Nada menos autêntico do que isso, mas quem se importa? Por que outros povos não podem querer modernizar-se também? Uma cultura totalmente preservada, impedida de sofrer influências externas, está morta. Não há sentido em querer congelar um povo no passado. (APPIAH, 2006)