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A posição de fragilidade processual da vítima 33

II. Delimitação do objeto, objetivos e estrutura da dissertação 9

4. A posição de fragilidade processual da vítima 33

É inegável que os cidadãos que por alguma razão tiveram contacto com o sistema de justiça nem sempre guardam a melhor memória da forma como foram tratados ao apresentar queixa, e toda a tramitação subsequente nas instâncias policiais40. Sem considerarmos ainda a remessa dos

autos para inquérito e a posterior tramitação com dedução de acusação e julgamento de causa penal, com os tempos da justiça mais demorados que o tempo psicológico das vítimas de crime.

De facto, a vítima foi posta de lado pelo Processo Penal, apenas sendo considerada depois da notícia do crime, seja por o ter denunciado, seja por ter sido convocada para prestar declarações, se vier ao processo para se constituir assistente41-42.

O CPP de 1987 considera o ofendido (que não é necessariamente a vítima do crime, como vimos acima) como um simples participante processual, enquanto testemunha. Se não for arrolado como testemunha nem sequer terá intervenção processual… Isto demonstra o grau de estadualização da justiça penal.

Na verdade, não tem a possibilidade de deduzir acusação sempre que o Ministério Público entenda não acusar, não podendo com a sua intervenção contribuir para a decisão final a proferir, conformando o objeto do processo.

A única prerrogativa do ofendido consiste na possibilidade de desistir da queixa por si apresentada, relativamente aos crimes semi-públicos, isto é, dependentes de queixa.

40 JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, MANUEL DA COSTA ANDRADE, Criminologia, o homem delinquente e a sociedade criminógena, Coimbra Editora

Limitada, 1984, página 393: “É hoje bem conhecido, por exemplo, o desfasamento e distanciação da comunidade em geral- e das vítimas em particular- em relação ao labor das instâncias, máxime da polícia (…). Como forma de ruptura deste círculo vicioso advoga-se de vários lados, inter alia, a conveniência do reforço do estatuto processual da vítima.Advoga-se, em conformidade, que o processo penal deixe de obedecer a uma lógica exclusiva de controlo, moldando-se antes também a uma lógica de conflito, (…)”.

41 JOSÉ DAMIÃO DA CUNHA, “A Participação dos particulares no exercício da acção penal (alguns aspectos)”, RPCC, 1998, página 593 e ss. Este autor

pergunta-se se as alterações ao estatuto do assistente não traduziam uma compreensão diferenciada do exercício do poder estatal, numa sociedade cada vez menos consensual, em que a intervenção do assistente só poderá ser vista à luz de uma ideia de conflitualidade e afirmação individual de valores comunitários, e, nesse sentido, de rutura com a configuração de um poder penal paternalista, mas ainda contido numa ideia de função pública, e realização de uma determinada política criminal.

42 ANDRÉ LAMAS LEITE, “Alguns Claros e Escuros no tema da mediação penal de adultos”, RPCC, 24 (2014), página 581: “Vai-se advogando, em

alguns círculos, uma substituição da actual dogmática jurídico-penal poir uma «vitimodogmática» (…) as categorias constitutivas do crime- tipicidade, ilicitude, culpa e punibilidade- devem ser orientadas em função da vítima, assim como o respectivo processo penal. Tecnicamente diverso do conceito ora analisado, mas com ele umbilicalmente relacionado, está o «renascimento da vítima», sobretudo a partir dos anos Sessenta/ Setenta da passada centúria, no sentido de lhe atribuir um papel cada vez mais activo no processo penal”. Mas o autor toma clara posição contra a vitimodogmática: “não

Podemos sempre entender com Figueiredo Dias43, que “ao tratar o ofendido como mero

participante processual e ao vincular à sua constituição como assistente para assumir a veste de sujeito do processo, é ainda da formalização necessária a uma realização mais consistente e efectiva dos direitos da vítima que se trata”.

Assim, se não se constituir assistente (ou, pelo menos ter demonstrado essa intenção), para o que teria de outorgar procuração a advogado, pagar a taxa de justiça e ter legitimidade processual para tal, a pessoa sujeita involuntariamente ao ato criminoso não seria mais considerada no processo, nem sequer para ser notificada do seu andamento.

A questão da legitimidade processual da vítima para se constituir assistente também tem gerado equívocos processuais uma vez que não é o facto de ser a lesada com a atividade criminosa que permite à vítima qua tale requerer a constituição de assistente. Apenas lhe é conferida essa legitimidade pela norma incriminadora, se for a vítima a detentora do(s) interesse(s)44 que a norma

pretendeu proteger com a incriminação45. E, desde logo, nem sempre são claros quais são tais

interesses, sendo definidos pela política criminal e estando a norma sujeita a interpretação para os identificar.

Há ainda que considerar que a pessoa vítima, mesmo quando foi considerada ofendida do crime praticado e se constituiu assistente, está sempre vinculada à atividade processual do dominus da ação penal, o Ministério Público, de tal forma que mesmo que em sede de inquérito venha a ser admitida a sua constituição como assistente, tendo o juiz de instrução que efetuar um juízo ex ante sobre o crime ou crimes que eventualmente esteja(m) em causa nos autos, quer o entendimento do Ministério Público quer as próprias vicissitudes da investigação podem alterar essa previsão e chegarmos à acusação com um crime (ou crimes) por que vem acusado o arguido ou arguidos que não sejam o(s) que se previa ter(em) sido praticado(s). A alteração do tipo legal determina necessariamente a proteção de um distinto bem jurídico e pode determinar a cessação da legitimidade do cidadão que se entendia ofendido e se havia constituído assistente. A este respeito

43JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, “Sobre os Sujeitos Processuais no Novo Código de Processo Penal”, in CENTRO DE ESTUDOS JUDICIÁRIOS, Jornadas

de Direito Processual Penal, O Novo Código de Processo Penal, CEJ, Coimbra, 1988, pág. 10.

44O bem jurídico será “(…) a expressão de um interesse, da pessoa ou da comunidade, na manutenção ou integridade de um certo estado, objecto ou

bem em si mesmo socialmente relevante e por isso juridicamente reconhecido como valioso” - Figueiredo Dias, Temas Básicos da Doutrina Penal, Coimbra Editora, Coimbra, 2001, p 43.

45Daí que “os bens jurídicos que cada uma das normas penais visa proteger devem ser procurados no seu confronto com os valores constitucionalmente

protegidos, por forma a justificar a restrição, que o direito penal envolve, de direitos, liberdades, e garantias, como meio de salvaguarda daqueles interesses” – RICARDO MATOS, “Dos Maus Tratos a Cônjuge à Violência Doméstica”, Revista do Ministério Público, nº107, Jul-Set 2006, ano 27, página 95.

já pôde pronunciar-se o STJ no Acórdão de 31-1-200246: “O despacho que admitiu a intervenção do

assistente não faz caso julgado formal sobre a legitimidade do mesmo”. Também o Acórdão do TRP de 9-7-201447: “As decisões genéricas declarando a legitimidade não têm valor de caso julgado

formal, podendo tal questão ser reapreciada até final”. Também o Acórdão do TRL de 25-1-200148:

“Ao pronunciar-se sobre o requerimento de abertura da instrução, o juiz pode não reconhecer legitimidade ao requerente para se constituir assistente, relativamente aos crimes objecto da requerida instrução, ainda que, no decurso do inquérito, essa legitimidade já lhe tenha sido reconhecida”. E Acórdão do TRL de 25-6-200249: “I- O despacho que admita o queixoso a intervir

como assistente não forma caso julgado, pois o respectivo estatuto pauta-se pela reversibilidade. II- Assim, ainda que o queixoso tenha sido admitido a intervir como assistente, quanto a um pretenso crime de abuso de poder, o juiz de instrução, posteriormente, pode não lhe reconhecer legitimidade para requerer a abertura da instrução no respectivo processo”.

Assim, também desta forma a intervenção dos particulares no Processo Penal fica vinculada às decisões processuais tomadas pela magistratura do Ministério Público.