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1.3 Notas sobre a literatura popular do nordeste

1.3.2 A posição suassuniana

Com base nas idéias anteriores, percebemos que as formulações de Câmara Cascudo antecipam o texto suassuniano. A presença da literatura nordestina tanto em sua forma popular quanto tradicional se faz evidente no Romance d’A Pedra do

Reino. Quaderna é, antes de tudo, um teórico dessa literatura. As novelas, os

romances, bem como algumas personagens apontadas por Cascudo, são alicerces que dão base à construção do “Castelo Poético” da personagem Pedro Dinis Quaderna, sendo citados em diversas passagens como exemplos de conduta, como influência temática e como modelo teórico refletido e conceituado pelo protagonista da obra.

A construção do romance suassuniano, bem como a elaboração do projeto literário de Quaderna, contribui de forma teórica, para definir o que é a literatura popular no contexto brasileiro e no contexto local onde é produzida; busca incessantemente a valorização dessa manifestação; presta homenagem aos cantadores citados ao longo da obra e, da mesma forma que a “literatura do povo”, insere no local o universal. Na empreitada de Suassuna, há uma tentativa de romper o círculo vicioso relatado por Cascudo:

Os leitores que conservam esses folhetos em vida ininterrupta, renovada e atual, são justamente os mais desprotegidos de elementos para sua defesa e para legitimar financeiramente essa persistência. Decorrentemente os folhetos devem ter baixo preço e circular nas artérias de um organismo primitivo e simples em sua disposição intelectual. Poucas são as exigências para os enredos, a linguagem é suficiente, os quadros bastam à curiosidade e a moral promanada do assunto sedutor é clara e agilmente sentida como a mais própria e natural (CASCUDO, 1953, p.29).

Tal tentativa é visível nas passagens em que Quaderna faz alguns comentários acerca da elaboração do seu romance. No fragmento abaixo percebemos que o protagonista, devido à censura que recebia dos intelectuais Samuel e Clemente, sentia-se constrangido por admirar a arte dos cantadores nordestinos. Assim, foi preciso conhecer a opinião de um acadêmico validando a referida literatura para se sentir liberto de qualquer preconceito, perdendo a vergonha por admirar os cantadores de chapéu de couro, conforme o trecho ilustra:

Explico a Vossas Excelências que, sendo já, como sou, um Acadêmico, tive, na infância, muito contacto com os Cantadores sertanejos, tendo

mesmo, sob as ordens de meu velho primo João Melchíades Ferreira da Silva, praticado um pouco da arte da cantoria. Depois, porém, por influência do Doutor Samuel e do Professor Clemente, passei a desprezar os Cantadores. Até que, lá um dia, li um artigo de escritor consagrado e Acadêmico, o paraibano Carlos Dias Fernandes, artigo no qual, depois de chamar os Cantadores de “Trovadores de chapéu de couro”, ele os elogiava, dizendo que “o espírito épico da nossa Raça”, andava certamente esparso por aí, nos cantos rudes daqueles “Aedos sertanejos”. Depois daí, senti-me autorizado a externar meu velho e secreto gosto, minha velha e secreta admiração (RPR, 2007, p.44).

Essa mentalidade evidencia parte do processo de amadurecimento teórico de Quaderna, que passa a utilizar os versos dos cantadores como principal fonte influência. Em uma instância mais profunda, o reconhecimento do acadêmico em relação aos cantadores e seus folhetos mexem com a estrutura psicológica de sujeito, levando-o a auto afirmar-se e a perceber o seu lugar na literatura. É o primeiro passo para que o protagonista megalomaníaco parta, munido de um conhecimento enciclopédico, em busca da concretização do seu “Castelo Poético”, a grande “Obra Lapidar” que poderá sagrá-lo “Gênio da Raça Brasileira”.

Vale lembrar que nos jargões da poesia popular “marcos”, “fortes”, “lagoas” e “castelos” representam as obras que são erguidas com palavras. Assim, nos desafios, cada cantador constrói seu castelo, e seu adversário tem a missão de derrubá-lo com versos que colocam em xeque os anteriores. Isso ainda recorda a idéia do cantador de erguer uma fortaleza em estilo feudal, atestando a memória inconsciente herdada das velhas histórias dos ancestrais (CASCUDO, s.d., 158). Parece ser baseado em tal idéia que Quaderna discorre acerca de seu fazer literário. Dessa forma, revela que é o uso hábil da palavra e não o uso da força que o ajudará a construir sua obra:

Assim, aos poucos, ia se formando no meu sangue o projeto de eu mesmo erguer, de novo, poeticamente, meu Castelo pedregoso e amuralhado. Tirando daqui e dali, juntando o que acontecera com o que eu ia sonhando, terminaria com um Castelo afortalezado, de pedra, com as duas torres centradas no coração do meu Império (RPR, 2007, p. 115)

Ainda teorizando esse fazer poético, Quaderna põe em relevo as vantagens de ser um cantador, um construtor de castelos. A edificação desse reino comprova a afinidade com a literatura dos folhetos, por aludir a enredos que tangenciam variantes do ciclo temático do cordel como o cenário empoeirado das caatingas, espaço percorrido por vaqueiros e cangaceiros, por cavaleiros sertanejos, vestidos

com roupas de couro, lugar que é cenário de lutas, de emboscadas, de amores, vividos sob o sol sertanejo:

Ali eu reergueria, sem perigo de vida, as Torres do lajedo do meu Castelo, para que ele me servisse de trono, de pedra-de-ara, de ninho de gaviões, onde eu pudesse respirar os ares das grandes alturas. Seria um Reino Literário, pedregoso e sertanejo, um Marco, uma Obra cheia de estradas empoeiradas, caatingas e tabuleiros espinhosos, serras e serrotes pedreguentos, cruzada por Vaqueiros e Cangaceiros, que disputavam belas mulheres, montados a cavalo e vestidos de armaduras de couro. Um reino varrido a cada instante pelo sopro sangrento do infortúnio, dos amores desventurados, poéticos e sensuais, e, ao mesmo tempo, pelo riso violento e desembandeirado, pelo pipocar dos rifles estralando guerras, vinditas e emboscadas, ao tropel dos cascos de cavalo, tudo isso batido pelas duas ventanias guerreiras do Sertão: o cariri, vento frio e áspero das noites de serra, e o espinhara, o vento queimoso e abrasador das tardes incendiadas. Nas serras, nas caatingas e nas estradas, apareciam as partes cangaceiras e bandeirosas da história, guardando-se as partes de galhofa e estradeirice para os pátios, cozinhas e veredas, e as partes de amor e safadeza para os quartos e camarinhas do Castelo, que era o Marco central do Reino inteiro (RPR, 2007, p.115-116).

A importância dessa expressão artística está em evidência não apenas no

Romance, mas também nos ensaios publicados pelo autor. Suassuna enfatiza que a

literatura popular existe e que pode ser admirada no “maior e mais variado Romanceiro vivo do mundo”, os folhetos de cordel (SUASSUNA, 2008, p.152). Seu engajamento é tão profundo que, na tentativa de esclarecer os diferentes níveis do Romanceiro Popular do Nordeste, Suassuna criou uma classificação que define o lugar ocupado por cada modalidade artística, compreendida pelo modo como se expressa. Ainda busca uma caracterização geral de cada área, quando propõe a divisão. Assim, estabelece que no campo do Romanceiro Popular prevalecem duas divisões principais: de um lado, a poesia improvisada, da qual fazem parte composições em sextilhas, décimas e estrofes que derivam desses modelos; de outro lado, as poesias oriundas de uma tradição oral decorada e da literatura de cordel. Tal subdivisão compreende os abecês, as pelejas, as cantigas e os romances, que, por sua vez, podem ser classificados por ciclos temáticos, divididos em: Ciclo Heróico; Ciclo do Maravilhoso; Ciclo Religioso e de Moralidades; Ciclo Cômico, Satírico e Picaresco; Ciclo Histórico e Circunstancial; Ciclo de Amor e de Fidelidade (SUASSUNA, 2007, p.256). A partir de tal fixação, temos uma possibilidade de classificação que é usada por muitos pesquisadores ainda hoje na compilação de textos da literatura popular.