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1.3 Notas sobre a literatura popular do nordeste

1.3.4 Os cantadores e suas composições poéticas

Em Vaqueiros e Cantadores (s.d), Câmara Cascudo faz uma descrição

apaixonada da figura do cantador popular e associa essa figura aos poetas de diversas tradições. Com isso, imprime no cantador nordestino o mesmo dom e talento para ilustrar as façanhas de seus iguais, as suas origens. Esse cantador, embora se assemelhe aos aedos, rapsodos ou bardos tem características particulares como a rudeza e o desafino do seu cantar:

Que é o Cantador? É o descendente do Aedo da Grécia, do rapsodo ambulante dos Helenos, do Glee-man anglo-saxão, dos Moganís e metrís árabes, da velálica da Índia, das runoias da Finlândia, dos bardos armoricanos, dos scaldos da Escandinávia, dos menestréis, dos trovadores, mestres-cantadores da Idade-Média. Canta ele, como há séculos, a história da região e a gesta rude do Homem. É a epea grega, obarditus germano, a gesta franca, a estória portuguesa, a xácara recordadora. É o registro a memória viva, o Olám dos etruscos, a voz da multidão silenciosa, a presença do Passado, o vestígio das emoções anteriores, a História sonora e humilde dos que não têm história. É o testemunho, o depoimento. Ele, analfabeto e bronco, arranhando a viola primitiva, pobre de melodia e de efeito musical, repete, através das idades, a orgulhosa afirmativa do “velho”

no poema de Gonçalves Dias: - “Meninos, eu vi...” (CASCUDO, s.d, p.93- 94).

Quando investigamos, na literatura popular do nordeste, os elaboradores de tais formas poéticas, chegamos a diversas denominações, mas dentre as mais freqüentes está a de “Cantador”, que tem sua tradição em Portugal (PROENÇA, 1964, p.2). Nos meados de 1960, a denominação em voga era a de “trovador”, qualificação que os próprios autores de poemas se davam. Isso mostra a elasticidade do termo que compreende autores de toadas ou trovas, como também são denominadas essas composições.

Acerca desses poetas populares, Cavalcanti Proença (1964, p.8) afirma que eles se situam na mesma linha dos antigos cantadores. Por isso, vendo-se impossibilitados de viver somente da sua arte, o cantador necessitava trabalhar nas mais diversas atividades, mas sua dedicação maior era aos versos que elaborava. Dedicação reconhecida pelo público, que tratava o cantador com carinho, que comprava os folhetos nas feiras para si mesmo ou para um círculo familiar ou de amizade.

Um traço interessante dessa expressão artística assentava-se na questão da originalidade. Cavalcanti Proença (1964, p.4) coloca que diferentemente do poeta culto, o poeta popular, quanto menos original se mostrava, “quanto menos rebelde às formas tradicionais”, mais apreciado era por seu público. Para o poeta popular “erudição” seria reunir várias referências aos folhetos mais difundidos, às técnicas utilizadas, demonstrando seu amplo conhecimento da literatura dos folhetos.

Essas referências, reutilizações constantes, contribuíram para vulgarizar as narrativas. Entretanto, tal termo não deve ser compreendido de forma pejorativa, mas com o sentido de tornar conhecidos os versos em questão, de divulgá-los para um público maior. Com isso, os autores das narrativas tornavam-se obscurecidos pela superioridade da obra, o que, de acordo com as palavras de Proença, ”significa [...] que a obra desses poetas contém tantos elementos autênticos da arte poética popular, que o povo se assenhoreou dela” (PROENÇA, 1964, p.5).

Por meio de tais colocações, entendemos que o “artista folclórico”, conforme Jean Pizoán (apud PROENÇA, 1964, p.5), tratava-se de um “continuador”, pois ele não representava o individual, mas todo o complexo poético em que sua obra estava inserida. Justificando seu pensamento, Pizoán afirma que “pela aceitação coletiva só se coloca aquilo que o povo aceita e torna seu. As mãos são do artista, mas a arte é

do povo”. Sendo assim, o artista, detentor da liberdade para criar seus versos, não deveria ser exigido no critério de originalidade, nem mesmo fazer dos versos sua marca registrada, porque tal poesia tem a propriedade de existir para cair no domínio popular e, com isso, obedecer ao velho ciclo de se tornar matéria poética de composições posteriores. Em algumas passagens, o Romance d’A Pedra do Reino é bastante ilustrativo desse reaproveitamento de versos, conforme percebemos no trecho em que Lino Pedra-Verde relata a Quaderna o “nascimento” da sua poesia:

Contava-me ele, depois, à medida que se acalmava, “o fogo da Poesia começava a incendiar seu juízo”, e o fato esquisito que lhe acontecera começava a tomar forma poética, dentro dele.

- De qualquer jeito – dizia-me ele depois – eu ia decorando todos os versos que me vinham à cabeça, para depois passar tudo para o papel. Ao mesmo tempo, eu desconfiava de já conhecer aqueles versos! De quem serão eles? Me ajude, Dinis, pra ver se eu me lembro! Serão meus, mesmo? Serão de José Pacheco? De João Ferreira de Lima? De Josué Gomes da Silva? (RPR, 2007, p.210).

Com base nesses dados, percebemos o motivo pelo qual ocorrem tantas repetições temáticas e de estilo nos versos populares. Os cantadores não buscam a originalidade, mas uma forma de expressar um tema, calcados naquilo que a literatura folclórica consolidou e que naquele momento eles priorizam como mote, acrescentando ou subtraindo elementos, mas dando vida nova com seus versos, por meio da recriação.

O protagonista do Romance d‘A Pedra do Reino, dentre as várias atividades, ressalta o seu talento de Poeta ou Cantador. Na sua fala, mostra sua auto-estima exacerbada e o seu conhecimento das particularidades do cordel. Denominando-se um poeta versátil:

Eu [...] puxei a meu Pai! Foi dele, aliás, que puxei também as minhas qualidades poéticas, se bem que, modéstia à parte e não faltando com o respeito filial, como Poeta eu seja mais completo do que ele foi. Como o senhor deve saber, existem seis qualidades de Poeta e a maioria deles pertence a uma qualidade ou a outra. Os melhores, pertencem a duas categorias ao mesmo tempo. Mas somente os maiores de todos, os grandes, os “raros do Povo”, pertencem, ao mesmo tempo, às seis categorias! Meu Pai, que Deus guarde, era Poeta de sangue e de ciência. Mas eu, modéstia à parte, sou dos poucos, dos raros, dos grandes, porque sou, ao mesmo tempo, Poeta de cavalgação e reinaço, Poeta de sangue Poeta de ciência, Poeta de pacto, de estradas e encruzilhadas, Poeta de memória e Poeta de planeta! Mesmo porém tendo sido mais completo do que ele, grande foi a influência que recebi das qualidades de Poeta, historiador, Astrólogo e genealogista Sertanejo de meu Pai! (RPR, 2007, p.368).

Quaderna, mesmo ressaltando a sua grandeza de poeta, pois se julga o mais completo deles, reconhece as qualidades do pai, que o introduziu nas artes da cantoria. Assim, as categorias de poesia mencionadas pelo protagonista, fazem alusão às temáticas das Cavalgadas, de Reis, de Ciência, lançando mão de um saber metafísico, de narrativas de Estradas, etc.

Manuel Cavalcanti Proença (1964, p.3), em seus estudos sobre a literatura de cordel, delineia o que faz parte da composição poética dessa literatura. Para o autor existe um traço primordial que irmana os diversos compositores: o ato de contar uma história, seja de príncipes, de reinos, de escravos ou de senhores de engenho. Proença afirma que não é a primeira vez que as atividades culturais são adaptadas ao nosso modo de ser. Essa adaptação, quando se dá, contribui para que tais práticas não se percam com o passar dos anos.

O ponto de partida são várias histórias tradicionais, invenções do autor ou mesmo referências a leituras do poeta. Tais histórias têm uma fórmula a ser seguida: estabilidade, sofrimento, martírio, fidelidade e um fim compensatório, em que todas as qualidades do protagonista são reconhecidas pelos demais, garantindo um caráter de herói ou de heroína. Devido a esse desfecho, Proença coloca que “daí decorre que se possa incluir como perfeitamente populares as narrativas de escritores cultos, postas em versos de poetas populares” (1964, p.4). O teórico afirma que tal solução corresponde a mesma de obras canônicas, justificando porque muitas delas são versadas por cantadores.