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1.3 Notas sobre a literatura popular do nordeste

1.3.3 Características da poesia popular do nordeste

Conforme o estudioso Thiers Martins Moreira (1964, p. vii), em Literatura

popular em verso, a Literatura de cordel - denominada dessa forma pela exposição

dos folhetos pendurados em barbantes nas feiras - desenvolveu-se mais rapidamente desde 1900, manifestando-se, principalmente, do estado da Bahia ao Pará. Essa era conhecida dentro de grupos sociais menos favorecidos, sendo elaborada, apreciada e mantida dentro desse círculo.

Na atividade de folclorista, Câmara Cascudo, nos idos de 1900, recolheu vários textos fundadores da literatura de cordel, explicando a origem dos mesmos na tradição literária medieval das novelas de cavalaria. Assim, tais estudos, bem como as criações literárias do período, contribuíram no sentido de romper com a distância que separava o popular do erudito, já que estes evidenciavam a influência de uma literatura culta na elaboração dos folhetos. Com isso, de acordo com Proença (1964, p. vii), os estudiosos partiam do terreno popular até atingir o campo da observação crítica e teórica, que evidenciava a preocupação documental e erudita por parte desses críticos. Isso aconteceu por temerem a perda dos registros dessa criação, muitas vezes anônima, impulsionando a compilação das obras mais difundidas.

A catalogação de tais histórias deu origem ao Romanceiro. Nele é possível encontrar composições versificadas que expõem as concepções dos autores que elaboram as narrativas, que as contam ou concedem-nas a outros trovadores, como eles se autodenominam. De acordo com Moreira, a importância de tal Romanceiro se firma pelo sentido sociológico, como um reflexo da sociedade que o elabora; pelo olhar lingüístico que podemos lançar sobre os versos, portadores do valor poético e social de quem cria as obras. Além disso, pela consciência artística explicitada em nos poemas, que evidencia um conhecimento das normas, muitas vezes intuitivo, que balizam essas composições. Sobretudo, pelo discernimento do lugar social que ocupam, sentimento de pertença a um grupo de trovadores, de cantadores, de impressores, de xilógrafos, de vendedores de folhetos, ou seja, de um círculo que necessita de cada um desses elos na sua cadeia. O pesquisador descreve o modo como tais elementos se articulam:

Os nomes circulam entre eles como circulam na sociedade do sertão. Os pontos altos das pelejas, reais ou especialmente elaboradas como matéria de um folheto, difundem-se nas estrofes que a memória popular guarda, e são contados como feitos do trovador, como índice de sua agudeza e de sua maestria nas artes do verso, que denominam pés, segundo o gosto antigo. Quanto às técnicas poéticas, o virtuosismo atinge a minúcias impressionantes que nos lembram sutilezas formais da lírica provençal ou galego-portuguesa, e nenhum bom cantador deve ignorá-las. A arte, em sua plenitude, exige de seus cultores domínio firme, e uma espécie de sanção coletiva cairá sobre aquele que, usando-a, nela fracassar (MOREIRA, 1964, p.viii).

Moreira (1964, p. xix) reitera as colocações de Câmara Cascudo quando expõe a temática de tais composições. Assim, acontecimentos importantes do país, de países distantes, as histórias tradicionais, os elementos folclóricos, as personagens reais ou de ficção, as lendas, “todo um mundo de temas, de traços de vida” que possam ser fonte de sentimentos ou de ações, tornam-se matéria para as trovas. Para isso, o trovador “dá-lhe o tratamento poético e narrativo”, escreve o folheto e lança-o pelas feiras, praças e ruas. Desse modo, faz a palavra renascer na paisagem brasileira com um sabor medieval, “sem burgos e sem castelos, mas na áspera rudeza das caatingas, ou nos núcleos urbanos que polarizam os homens do Norte e do Nordeste” (MOREIRA, 1964, p.viii). Essa atmosfera é freqüentemente visualizada no Romance d’A Pedra do Reino:

Outro dia, eu li um desses horríveis “folhetos” que você e seus irmãos imprimem na tipografia da Gazeta e vendem nas feiras. Para lhe ser franco, foi uma das coisas mais alienadas que já vi. Começava o Cantador dizendo que “no Reino do Pajeú”, em Pernambuco, morava “um honesto Fazendeiro”. Chamar o fazendeiro de honesto já era ruim! Mas, além disso, o “honesto fazendeiro” era, ainda, “pai de uma Princesa, que era alva como os lírios e honesta como a pureza”. Alva é dado como elogio! E, como se não bastasse, o desgraçado do Cantador aceita os padrões morais da classe dominante, e elogia a filha do opressor! Mas a coisa vai além! Sendo o tal “honesto fazendeiro” o “Rei do lugar” (imagine!), morava ali perto um Negro cangaceiro, cujo costume era “deflorar donzelas”. Um dia, vendo a tal “Princesa”, filha do “Rei fazendeiro”, o Negro resolve “desfolhar a folha dela”. Pois bem: com esse enredo armado, o peste do Cantador toma o partido do fazendeiro e da moça, e volta toda sua antipatia contra o Cangaceiro Negro, ao lado do qual ele deveria estar, por solidariedade racial e por coerência na luta de classes! Agora pergunto: o que é que a Esquerda pode com Cantadores como esse e com Cangaceiros aliados aos poderosos, Quaderna? (RPR, 2007, 277-278).

No fragmento, Clemente, um dos mentores intelectuais de Quaderna, expõe a temática de um folheto de cordel, no qual a “realeza” de tal cenário, governado por um Rei, habitado por uma Princesa, localiza-se em pleno Pajeú, sertão pernambucano. Clemente faz uma crítica à postura ideológica do cantador e ao

caráter inverossímil de seus versos, pois não é cabível um sertão nordestino habitado por uma nobreza medieval, cujos traços físicos também sugerem uma descendência européia. Aliado a isso, Clemente critica o caráter maniqueísta do Cantador, pois este se posiciona do lado do “Rei Fazendeiro”, demonizando o “Negro Cangaceiro”, que, por pertencer a uma classe à margem da sociedade, poderia estar mais próximo do cantador, também marginalizado. Nesse fragmento ainda é possível perceber nas palavras de Clemente a observação de que falta às classes “dominadas” politicamente o senso crítico necessário para relativizar as atitudes da classe dominante. Talvez essa postura confirme a fácil institucionalização do sistema de clãs no nordeste ou, como Oliveira Vianna (1955) explica, um variado complexo no qual orbitavam diversas camadas sociais com um pacto tácito de proteção mútua, de apoio incondicional. Dessa forma se organizavam as famílias poderosas, com proteção de cangaceiros, com o apoio de gente humilde que delas dependiam ao mesmo tempo em que consolidavam a importância política do senhor.