• Nenhum resultado encontrado

Como sabemos, o romance de Suassuna discorre, além de outros temas, sobre a criação literária, configurando um processo metaliterário. O autor de tal façanha é Dom Pedro Dinis Quaderna, que enumera tudo o que deseja incluir na sua obra, por isso busca um gênero apropriado no qual consiga contemplar todas as influências recebidas dos mestres cantadores, dos eruditos que o inspiram, bem como da musicalidade sertaneja, da arte pictórica da xilogravura, além do traço pouco discutido, mas evidente na obra, o caráter teatral das ações do performático protagonista.

Temos ciência de que essa tendência de unir gêneros díspares não constitui uma novidade, pois parece ter sido herdada do primeiro romance “ao mesmo tempo barroco e moderno” (HATZFELD, 1988, p. 308), Dom Quixote, de Miguel de Cervantes, que apresenta a prosa literária entrecortada pelos gêneros poéticos. É com base em tal perspectiva que podemos associar a concepção popularesca de Quaderna aos postulados canônicos de Mikhail Bakhtin. Bakhtin (1993, p.74), em

Questões de Literatura e de Estética: a teoria do romance, assevera que as

diferentes unidades estilísticas que penetram no romance podem se unir num sistema literário harmonioso, submetendo-se a uma unidade superior do conjunto. Nesse sentido, as diferentes unidades concedem a possibilidade de várias vozes perpassarem a narrativa. Isso se concretiza no discurso de Quaderna, mediador das visões antagônicas expostas nas falas das personagens. Ele as sintetiza, ao mesmo tempo em que expressa a sua visão idealizada do espaço sertanejo. Assim, a presença das diferentes formas encontra eco na proposta Armorial, quando recordamos que esse movimento volta-se para uma mescla de gêneros, de expressões artísticas, de maneira que elas confluam em uma arte completa e harmônica. Na teorização de Bakhtin, temos a definição de um gênero que mantém a propriedade agregadora que Quaderna persegue, pois

O romance admite introduzir na sua composição diferentes gêneros, tanto literários (novelas intercaladas, peças líricas, poemas, sainetes dramáticos, etc.), como extraliterários (de costumes, retóricos, científicos, religiosos e outros). Em princípio, qualquer gênero pode ser introduzido na estrutura do romance, e de fato é muito difícil encontrar um gênero que não tenha sido alguma vez incluído num romance por algum autor. Os gêneros introduzidos

no romance conservam habitualmente a sua elasticidade estrutural, a sua autonomia e a sua originalidade lingüística e estilística (BAKHTIN, 1993, p.124).

A flexibilidade do termo romance admite diversas definições, variando de acordo com o contexto em que o empregamos. Como sabemos, na prosa literária ele designa uma narração que prima pelo tom prosaico a fim de reproduzir com riqueza e exatidão episódios específicos, numa definição bastante difundida. No entanto, quando partimos para a compreensão do termo dentro do universo da literatura popular, temos uma ampla definição do gênero nas obras de Luis da Câmara Cascudo (1988, p.680-681), que localiza o conceito dentro de diferentes momentos da poesia universal. Parafraseando o autor, denominamos romance os poemas em versos de sete sílabas reelaborados nos séculos XV e XVI, obedecendo a uma organização específica das rimas: assonantes nos versos pares e livres nos ímpares. Tal modelo teve origem nas canções de gesta do século X, XI, XII e registravam as façanhas guerreiras de povos da Espanha e da França. Os poemas eram elaborados para serem recitados em eventos da corte e nos saraus aristocráticos, distanciando-se do contato com as camadas populares. No entanto, no século XVI deram-se algumas mudanças no gênero:

A recriação foi um processo de acomodação ao gênio popular e muitos motivos surgiram, dentro dos metros e modelos passados, versificados ao sabor do gosto popular, mas fiéis aos tipos antigos. Passaram as assonâncias e tonância às rimas simples, e neste caráter o romance teve voga extraordinária, cantadas e trazidas para o Brasil, como para toda a América espanhola, pela memória do colonizador. [...] Passou ao plano popular, número e heterogêneo, buscando os efeitos da emoção do lirismo, do amor, temas sempre sensíveis e poderosos no espírito popular, alheio aos motivos fidalgos de luta e de conquista (CASCUDO, 1988, p.680).

O conceito de romance, no universo da literatura popular, costuma ser apreendido como o gênero literário que “descreve mundos maravilhosos onde os heróis vivem mil e uma aventuras, sofrem, amam, vingam-se, são traídos e são sempre recompensados no fim” (CAVIGNAC, 2001, p.78). Assim, essa definição contribui para entendermos o estatuto do Romance d’A Pedra do Reino, terreno no qual a fantasia é um recurso necessário para, além de aproximar realidades distintas, transfigurá-las com o verbo e a imaginação. Portanto, o romance, em uma concepção moderna, permite a incorporação de outros sub-gêneros na sua estrutura. No folheto XXXI, “O Romance do Castelo”, encontramos as considerações

de Quaderna sobre o gênero literário ideal para a sua obra, que dialogam com os pressupostos bakhtinianos, de reunir com equilíbrio várias formas, e reforçam o próprio impulso do protagonista de sintetizar contrários:

Meu coração deu um pulo no peito, pois aquilo era uma revelação tão importante quanto a morte da Onça que eu cometera, na Pedra do Reino! Tudo ia, aos poucos, se configurando. Eu tinha lido um dia, no Almanaque, um artigo onde se dizia que “uma Obra, para ser clássica, tem que condensar, em si, toda uma Literatura, e ser completa, modelar e de primeira classe”.Isso me garantia que nem Samuel nem Clemente, um do Cordão Azul, e outro, do Encarnado, podia ser completo, pois cada um era radical por um lado só. [...] Precisava, porém, descobrir com segurança, a que gênero me dedicar. Lembrei-me, então, das aulas de Retórica, dadas por Monsenhor Pedro Anísio Dantas, no “Seminário”, e passei a examinar gênero por gênero, com ajuda do Dicionário. Quando cheguei à palavras “romance”, tive um sobressalto: era o único gênero que me permitia unir, num livro só, um “enredo, ou urdidura fantástica do espírito”, uma “narração baseada no aventuroso e no quimérico” e um “poema em verso, de assunto heróico” (RPR, 2007, p.197-198).

A presença das formas distintas relaciona-se com a proposta Armorial, quando recordamos que esse movimento volta-se para uma mescla de gêneros e de expressões artísticas. Com uma posição semelhante a de Julie Cavignac, outra estudiosa, Idelette Muzart Fonseca dos Santos (2009, p.140) afirma que a escrita armorial pode ser explicada como um jogo elaborado de citações, que instala o texto no centro de uma rede transtextual complexa. Por isso, a variedade de citações alicerça a criação da obra, que é, “a um só tempo, resumo, antologia e recriação de toda a memória cultural, tornando-se o pedestal do novo texto”.

A descoberta da elasticidade do gênero romanesco permite que o protagonista module a sua visão de arte. Quaderna impressiona-se com o fato de o romance conciliar tudo, pois esse é o requisito para concretizar a obra total. Assim, a admiração adquire uma dimensão ainda maior quando ele enfatiza: “desde os romances de João Melchíades aos de José de Alencar e do Visconde de Montalvão, esse era meu gênero predileto” (RPR, 2007, p.198). Essa manifestação entusiasmada de Quaderna revela, além de sua descoberta literária, o referido impulso de reunir formas dicotômicas como o popular e o erudito, o ficcional e o histórico, a prosa e a poesia, dentre outros aspectos - sintetizando-os, organizando- os tal qual um compêndio, receita que é exposta ao longo do folheto:

Para tornar a coisa ainda mais segura, resolvi entremear, na minha narrativa em prosa, versos meus e de Poetas brasileiros consagrados:

assim, além de condensar, no meu livro, toda a Literatura brasileira, faria do meu Castelo sertanejo, a única Obra ao mesmo tempo em prosa e em verso, uma Obra completa, modelar e de primeira classe! (RPR, 2007, p.198).

Segundo Braulio Tavares (2007, p.152), Quaderna em seu “delirante projeto literário requer uma antropofagia de todos os gêneros”, para resultar na sua “Obra da Raça”. Isso porque ele reúne histórias reais e fictícias, poemas eruditos, versos populares, romances ibéricos, documentos históricos, textos proféticos, visões sobrenaturais, epigramas e histórias obscenas. Por isso, parte do efeito cômico da obra, reside na “vocação camaleônica” de Quaderna de incorporar ingredientes de sua receita literária, além de qualidades (ou defeitos) de escritores que admira. A concretização consente que o protagonista transforme a realidade parda numa atmosfera iluminada:

Cada vez se enraizava mais, em mim, a decisão de tornar embandeiradas e cheias de chuviscos prateados as pardas, miseráveis e sangrentas aventuras da Pedra do Reino, tornando-me Rei sem degolar os outros e sem arriscar minha garganta, o que somente a feitura do meu romance, do meu Castelo perigoso e literário, possibilitaria (RPR, 2007, p.198).

Por permitir todas as agregações possíveis é que o romance se firma como o gênero ideal, além de sempre admitir, devido à ambigüidade do termo, a aproximação com o “romance sertanejo”, aquele dos folhetos, apreciados pelo povo. Entretanto, tal importância consolida também a visão do mundo quadernesca, de que a literatura é o terreno que permite a recriação de uma história sem oferecer os riscos presentes na realidade.