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O Romance d’A Pedra do Reino está estruturado sobre três eixos temáticos: a literatura, que se divide em popular e canônica, além de sociológica; o contexto nordestino da década de 30, no sertão de Pernambuco e da Paraíba e as ressonâncias da política nacional nesse cenário; e a nobiliarquia sertaneja da família Quaderna na Vila de Taperoá, linhagem que, de acordo com o narrador em primeira pessoa, confunde-se com a família real portuguesa, tanto nos nomes quanto na índole e na tradição. Organizada sobre esses temas, a narrativa agrega a cada livro (divisão interna da obra), bem como nos folhetos (que fazem as vezes de capítulos), novos argumentos, selecionados, arranjados e expostos segundo a ótica de Dom Pedro Dinis Quaderna.

Como narrador, semelhante ao Dom Casmurro de Machado de Assis, situado em um tempo presente, Quaderna escolhe os fatos que devem ser relatados e expõe o seu ângulo de visão a respeito das situações ocorridas no curso da narrativa. Do mesmo modo, protagonizando os eventos de um passado não muito distante, Quaderna posiciona-se também como o Bentinho machadiano, convertendo-se em personagem de um fragmento de sua própria vida. Assim, torna- se o mediador do discurso das demais personagens já que a fala das mesmas passa pela escolha do que deve ser relatado ou omitido, visto o receio de “arriscar o pescoço” (RPR, 2007, p.736) no depoimento que coloca em prática.

A Pedra do Reino é um romance que apresenta dois momentos: um presente,

no qual Dom Pedro Dinis Quaderna, o protagonista, rememora o passado e o colore com os matizes de uma atmosfera medieval, de reis, de damas, de cavalarias, a fim de explicar os motivos de sua prisão na cadeia de Taperóa. Essa rememoração está

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CERVANTES, Miguel de. Don Quijote de la Mancha. São Paulo: Alfaguara, 2004, p. 179. .

marcada pelos diversos assuntos que ele “costura”, unindo uma narrativa à outra, criando, tal qual Sherazade, uma história sem fim.

O narrador do Romance d’A Pedra do Reino assume uma postura lúdica que, à medida que informa seu interlocutor, revela um traço cômico e ressalta o seu caráter de saltimbanco: apresenta habilidade para contar histórias; diz facécias; é histriônico; mostra com versatilidade as suas opiniões e, com isso, cria um estilo original, por unir em um único ser, várias formas de expressão narrativa. Por isso, ao compararmos os narradores sertanejos, Riobaldo, de Grande Sertão: Veredas e Quaderna, do Romance d’A Pedra do Reino, vamos nos deparar com dois indivíduos distintos em diversos aspectos, ainda que ambos rememorem um passado.

Quando nos centramos na linguagem, vemos Quaderna como um sujeito verborrágico e exagerado, de falar fácil, com um dom para fundir histórias e que põe em prática um narrar ininterrupto. Já Riobaldo é um homem de questões profundas, tanto que estas parecem presas a ele, dificultando uma nominação: “sou só um sertanejo, nessas altas idéias navego mal” (ROSA, 2008, p.14). Enquanto o primeiro recria, como um bom contador de histórias, um sertão mítico, de prosperidade, inventado de acordo com espaço idealizado pelos cantadores populares, semelhante ao São Saruê; o segundo revela um sertão onde “viver é muito perigoso...” (ROSA, 2008, p.25), um sertão que é o mundo, logo é perigoso. Um silogismo reiteradamente mencionado em Grande Sertão.

Riobaldo, por sua vez, expõe com seriedade o seu dilema de pactário, causa angústia com a sua dúvida, com uma figura maligna sempre a sua espreita, capaz de determinar suas atitudes diante do acaso. Quaderna provoca o riso com suas histórias de criaturas fantásticas, de anti-heróis, de seres que fundem o mal e a sensualidade instigando a atração do homem por tal ser. Esse traço provém da sua inspiração na literatura de cordel, uma forma de expressão que agrega diversas influências e temas que povoam o seu imaginário, cuja verossimilhança não é um pré-requisito e que é calcada na reelaboração constante das histórias. Assim, o folheto A visagem da Besta Bruzacã, ilustra essa postura do protagonista, que introduz no seu depoimento a fantasia da ficção:

- Uma pergunta, Dom Pedro Dinis Quaderna: o senhor acredita no Diabo? - Como é que posso não acreditar, Senhor Corregedor? Ainda agora, quando eu vinha para cá, ele apareceu ao irmão do Comendador Basílio Monteiro,

ali, no monturo da areia do rio, perto do Chafariz! Eugênio Monteiro estava me lembrando quantas vezes, aqui no Sertão, a gente encontra, nessas chapadas nuas e pedregosas, seres alados e perigosos, cruéis e sujos, bicando os olhos dos borregos e cabritos! Quem são eles? Gaviões? Urubus? Dragões? Acho que tudo isso ao mesmo tempo, porque todos eles são encarnações do Bicho Bruzacã, a Ipupriapa macha-e-fêmea, a Bicha que resume tudo o que existe de perigoso e demoníaco no mundo! (RPR, 2007, p. 402).

A pesquisadora Kathrin Rosenfield (1993, p. 49) afirma que Grande Sertão:

Veredas “força a sintaxe e o léxico a fim de tirar efeitos oximoréticos, dos

neologismos, paradoxos e paralogias, perspectivas significantes que recortam obliquamente os conceitos e as noções convencionais”. Ao compararmos tal afirmação ao Romance d’A Pedra do Reino, percebemos que o léxico e a temática são contrastados para em seguida se dar a fusão. Desse modo, as significações dos conceitos e das noções convencionais tocadas por Quaderna também percorrem um caminho sinuoso, mas, por meio desse embate e das brincadeiras propostas pelo narrador-protagonista, as diferenças se fundem. Portanto, afasta-se da postura riobaldiana de fixar um tom sério às especulações e às buscas de respostas empreendidas ao longo da obra, na qual o bem e o mal se chocam, o sagrado e o profano se embatem, Deus e Diabo têm naturezas opostas e intercambiáveis.

Na sua essência, Quaderna é um homem simples do sertão da Paraíba, que atua como bibliotecário, escrivão, dentre outras funções. Assim, a capacidade de escrita e de leitura fazem desse sujeito, em uma sociedade quase iletrada – embora ele não mencione esse aspecto -, um indivíduo destacado, um rapsodo da vida sertaneja. Esse sujeito reiteradas vezes mostra ser forjado pelo saber acadêmico e popular. Compreendemos isso quando observamos a capacidade de leitura, aliada ao gosto pelos versos populares, que proporcionam o contato com a literatura reconhecida pelo cânone e também pelo romanceiro popular. Esses saberes e culturas distantes são mesclados e adaptados a sua idéia de Literatura.

Ao vermos o desenrolar das ações de Quaderna, percebemos que a personagem encena a sua ficção. Como narrador em primeira pessoa, ele seleciona o que deve revelar ao seu interlocutor. Depois de selecionados os fatos, esse sujeito torna-se o herói de suas aventuras e, devido à vivacidade de tais passagens, percebemos um sertão com ornamentos de palco teatral, um palco rude de saltimbanco, que se agiganta com as descrições fantasiosas e prolixas de Quaderna. No entanto, a prolixidade não é maçante devido aos vários tons que

conseguimos captar com a leitura: um tom retórico de convencimento; um matiz jocoso presentificado pelos versos populares; uma plasticidade captada na rica descrição.

Quando refletimos sobre Quaderna, pensamos em um sujeito fantasiador, que transfigura as circunstâncias que vivencia diariamente no sertão de Taperoá. Assim, vemos que, semelhante aos pícaros, essa postura lhe defende de uma realidade fosca, disfarça a cor parda e sem brilho com tecidos rudes ornados de vidrilhos e pedaços de lata.

Quaderna fala demais em alguns momentos. Dessa maneira, suas contradições parecem dispostas intencionalmente pelo autor do Romance no sentido de mostrar os deslizes do protagonista. Isso corrobora a impressão de mentiroso folclórico, tão apreciado por Ariano Suassuna. Além disso, reivindica a desconfiança que devemos ter em relação às histórias que ele conta. Esses deslizes são percebidos ao longo do depoimento e captados pelo Corregedor que lhe indaga; tal percepção destaca ironicamente o narrador, induzindo o leitor à suspeita dos fatos vivenciados pela personagem principal.

No interrogatório, percebemos uma espécie de duelo entre Quaderna e o Corregedor, semelhante às pelejas nordestinas: dois sujeitos que dominam a palavra, duas vozes que controlam a narrativa. O protagonista relatando, ilustrando, e fazendo a cenografia de um sertão fantástico; a autoridade, indagando, colocando em xeque as afirmações retorcidas de Quaderna, investigando a fundo o seu lugar dentro da sociedade taperoense e a sua postura subversiva. Desse duelo, nenhum deles sai vitorioso, visto que a obra termina sem que a investigação seja concluída, mas o propósito maior do protagonista, dar concretude à “Obra Máxima da Humanidade”, começa a ser atingido, totalidade que se confirma pela presença de tantos intertextos no seu interior.

Quaderna, na posição de homem maduro encarcerado, porta-se como um narrador intradiegético, pois no momento presente, recluso na cadeia, revela a angústia sentida de ser o suspeito de um crime. Portanto, para esclarecer os motivos que o colocaram em tal situação, relembra os três últimos anos, tendo como ponto de partida um século atrás, cujos acontecimentos importantes são contados.

Nesse retorno ao passado, Quaderna transforma-se em protagonista de sua vida, relatando, como um narrador homodiegético, os acontecimentos que presenciou6.

O canal de informação desse narrador é a sua memória acerca dos eventos que o levaram à posição de acusado do assassinato de seu tio, bem como a sua prisão. De tal maneira, mergulhado em uma situação opressora, o Quaderna encarcerado se pronuncia, dirigindo-se ao mesmo tempo ao povo brasileiro e às autoridades capazes de absolvê-lo:

Agora, preso aqui na Cadeia, rememoro tudo quanto passei, e toda a minha vida parece-me um sonho, cheio de acontecimentos ao mesmo tempo grotescos e gloriosos. Sou um grande apreciador do jogo do Baralho. Talvez por isso, o mundo me pareça uma mesa e a vida um jogo, onde se cruzam reis e fidalgos, Reis-de-Ouro com castanhas Damas-de-Espada, onde passam Ases, Peninchas e Curingas, governados pelas regras desconhecidas de uma velha Canastra esquecida. É por isso também, que do fundo do cárcere onde estou trancafiado neste nosso ano de 1938 – faminto, esfarrapado, sujo, prematuramente envelhecido pelos sofrimentos aos 41 anos de idade – dirijo-me a todos os Brasileiros, sem exceção; mas especialmente, através do Supremo Tribunal, aos magistrados e soldados – toda essa raça ilustre que tem o poder de julgar e prender os outros. Dirijo- me, outrossim, aos escritores brasileiros, principalmente aos que sejam Poetas-escrivães e Acadêmicos-fidalgos, como eu e Pero Vaz de Caminha, o que faço aqui, expressamente, por intermédio da Academia Brasileira, esse Supremo Tribunal das Letras (RPR, 2007, p.34).

Nessa explanação, podemos investigar a qualidade do narrar de um Quaderna encarcerado, que vive um momento opressor e incômodo, que vê no presente o real “nu e cru”, mas que, por meio da fantasia, consegue convertê-lo num jogo onde as Damas e Reis são perfeitamente verossímeis, onde a razão de estado já perdeu sua relevância e as hierarquias caíram por terra. Contrapondo-se ao universo de nobreza, é possível perceber um Quaderna castigado pela fome, pela precariedade do ambiente prisional, situações que colaboram para que ele se encontre num estado emocional de inferioridade. Ali, naquele momento, o sujeito aprisionado está em situação de igualdade com tantos “nordestinos severinos” que sofrem com a miséria. No entanto, o narrador possui um trunfo, sua fantasia, e por meio da memória transfigura todo o cenário opressor em um lugar semelhante ao país São Saruê, versado por Manuel Camilo dos Santos (1905-1987). Em tal lugar, semelhante ao Eldorado e ao País da Cocanha, não existe pobreza, o povo é “alegre e forte”, goza de felicidade, há fartura e fertilidade na terra, por isso a intervenção do homem é desnecessária, pois o alimento já nasce pronto para o

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consumo. Além disso, é um lugar de vida eterna, de doçura, sem gente esfarrapada, onde o cantador tem uma posição social de prestígio. Esse espaço reforça a crença no milenarismo7 quando versa “o Jardim da Divina Natureza/ imita muito bem pela grandeza/ para onde Moisés e Aarão/ conduzia o povo de Israel [...] (SANTOS, 1964, p. 543-559). Por tal motivo, para o cantador, “feliz é quem visita este país” (SANTOS, 1964, p. 558). Nesse sentido, a comparação do aprisionado Quaderna com Pero Vaz de Caminha não é gratuita, pois o português, em sua chegada, descreveu o Brasil idealizando-o como um paraíso terrestre, e assim inspira o sertanejo na sua descrição do sertão.

Com base nisso, em um movimento semelhante ao do cantador, o entristecido narrador se volta para o passado e narra as peripécias do protagonista Dom Pedro Dinis Quaderna. É por meio dessa memória que as palavras, os pensamentos, a visão do mundo, bem como os sentimentos desse sujeito, tecem a rede de situações expostas ao leitor.

A tessitura da narrativa configura-se como um misto de processo “político e literário” (RPR, 2007, p. 35), no qual o Quaderna cativo busca na lembrança todos os eventos ocorridos em duas datas principais: 1 de junho de 1935 e 13 de abril de 1938, na véspera de Pentecostes, período que também marca o centenário do Século do Reino. O sujeito se pronuncia como narrador de suas aventuras e desventuras, de tal modo, ao mesmo tempo em que se defende, narra a saga familiar e concretiza parte de sua obra literária, que resultará dos autos do processo.