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1 ELEMENTOS JURÍDICO-ADMINISTRATIVOS DAS OCUPAÇÕES DE BENS

1.2 BENS PÚBLICOS E AS OCUPAÇÕES POR PARTICULARES

1.2.6 Formalização do uso e regularização da posse

1.2.6.1 A posse do bem público

Discute-se a possibilidade de posse de bem público e, por muitos anos prevaleceu a tese da insuscetibilidade da caracterização da posse. O entendimento derivava das características dominiais de extracomercialidade. Claramente sob a compreensão de que a posse daria ao ocupante o direito à usucapião, considerando o animus domini enquanto inerente a ela, e que a posse do bem público representaria de algum modo a disposição pelo Administrador Público do próprio direito de propriedade, o que lhe seria vedado. Todavia, não perdura tal compreensão da completa heterogeneidade entre regimes de direito público e privado. Observe-se que já Pontes de Miranda, no ano de 1955, questionava tal tese:

A extracomercialização atinge todas as pessoas. Mas seria erro crer-se em que há coextensão absoluta entre posse e extracomercialidade segundo o art. 69 (‘São coisas fora do comércio as insuscetíveis de apropriação, e as legalmente inalienáveis’). Quanto aos bens de propriedade do Estado (art. 66, III), o Estado tem a posse sobre eles, como tem posse sobre os bens do art. 66, II, e pode haver sobre eles posse não própria por outrem. Tal, por exemplo, o do locatário do bem do Estado (art. 66, III). Foi porque tais bens são suscetíveis de posse que o Estado, para se forrar à usucapião, teve de obter lei especial.82

82 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado. Tomo X. Rio de

Constatou-se e assentou-se o entendimento já majoritário de que há autonomia entre posse e domínio e que há possibilidade de fragmentação do direito de propriedade público de modo a viabilizar o uso privado e que os regimes de direito privado e público são permeáveis. Trata-se, portanto, da adequação ao novo paradigma da funcionalização do direito de propriedade, que não mais protege o bem público contra os usos que se possa fazer dele, mas a sua utilidade contra possível descaracterização.

Bárbara Almeida de Araújo, que produziu estudo específico sobre a posse dos bens públicos entende que a posse, enquanto meio de dar função ao bem, se constitui objetivamente, “como exercício de fato de um dos poderes inerentes ao domínio” e é garantida pela vinculação à promoção da dignidade da pessoa humana. Veja-se:

A posse estrutura-se como o exercício de fato de um dos poderes inerentes ao domínio, mas dele se desloca para buscar fundamento próprio, qual seja, a promoção da dignidade da pessoa humana, princípio basilar da República previsto no texto constitucional e unificador dos direitos fundamentais.83

Assim, a autora postula que a posse pode ser protegida até mesmo contra o domínio. Isso porque “a faculdade de invocar os remédios possessórios decorre imediatamente da

posse”84. Assim, bastaria o poder de fato para uso para que houvesse a proteção jurisdicional da posse direta. Bárbara Almeida de Araújo assim aprofunda suas considerações:

O fundamento da posse desloca-se, nesse sentido, da tutela do domínio para a realização de determinados valores constitucionais, como a função social dos bens, caracterizada pelo direito à moradia, ao trabalho, à utilização produtiva e racional da terra e à proteção ao meio ambiente, valores que remetem à cláusula geral de tutela da dignidade da pessoa humana.85

Nesse sentido, a autora compreende que basta a configuração da função social da posse, verificada pelo uso efetivo do bem com amparo de interesse constitucionalmente previsto e direcionado à promoção da dignidade da pessoa humana, para que valesse sua

83 ARAÚJO, Bárbara Almeida de. A posse dos bens públicos. Rio de Janeiro: Forense, 2010. p. 112. 84 Idem. p. 90.

proteção jurisdicional. Baseia-se na premissa de que “o sistema processual já dispensa os

interditos possessórios como instrumentos da propriedade”86.

Embora se concorde que o exercício de fato dos poderes inerentes ao domínio efetive a função social do bem, conforme considerado na compreensão da legitimidade do uso autônomo, exclusivo e informal das ocupações, entende-se não haver direito subjetivo de posse direta antes da outorga do direito de uso. Isso porque, apesar de legítimo o uso, há a necessidade de dar ciência à Administração Pública do bem, transformando o fato em fato jurídico, traduzindo a ocorrência no mundo dos fatos em linguagem jurídica correspondente. É a ciência da ocupação dada à Administração Pública que desfaz a clandestinidade e provoca o dever ao administrador público de compatibilização do uso ou efetivação do direito social concretizado pela ocupação. Somente a partir da ciência é que será possibilitada a anuência administrativa e, com ela a regularização da posse.

A Administração Pública do bem tem o poder de gestão e o dever ordenação dos usos para maximização da utilidade, mesmo os autônomos, exclusivos e informais, bem como assegurar o exercício dos direitos sociais. Tendo, portanto, o poder-dever de autorizar o uso que dê função ao bem dominical que esteja descumprindo sua função social ou, ainda, de incluir o ocupante entre os contemplados pela política pública correspondente, caso implementada. Apesar de em algumas situações ser legítimo o uso autônomo, exclusivo e informal, assegurando o exercício do direito social, a utilidade do bem público se relaciona à função do próprio Estado, melhor aparelhado para solucionar o problema.

A aquisição da posse, conforme dispõe o código civil87, “adquire-se a posse desde o

momento em que se torna possível o exercício, em nome próprio, de qualquer dos poderes inerentes à propriedade” (art. 1.204). O exercício do direito de uso do bem público em nome próprio depende do ato de outorga do direito de uso privativo. Diz ainda, “não induzem posse

os atos de mera permissão ou tolerância assim como não autorizam a sua aquisição os atos violentos, ou clandestinos, senão depois de cessar a violência ou a clandestinidade” (art. 1.208). Portanto, embora legítima ocupação, a posse só se adquire quando o ocupante pode exercê-la em nome próprio, não clandestinamente. Daí a afirmação de que são necessárias ao menos a ciência e anuência para exercer posse, caso contrário será apenas exercício de poder de fato.

86 Idem. Ibidem.

87 BRASIL. Código Civil, Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002.

Exercer a posse, portanto, pode ser também compreendido por meio da titularidade do direito subjetivo de posse e, portanto, pela exigibilidade do direito. Conforme o Código de Processo Civil88, é a figura do possuidor que “tem direito a ser mantido na posse em caso de

turbação e reintegrado em caso de esbulho” (art. 560). A lei processual civil exige que o possuidor prove a posse para que possa demanda-la em juízo (art. 561). Além disso, considera-se possuidor tanto o direto, quanto o indireto (art. 567). Portanto, se a mera tolerância não induz a posse, somente o ato administrativo de autorização a induzirá. Esse será o meio de prova da posse direta do bem público.

Deste modo, uma vez formalizado o uso do bem público, a administração promoverá concomitantemente a regularização da posse. Formalização do uso e regularização da posse serão realizados por meio do mesmo ato administrativo precário de autorização que outorgue o direito subjetivo de usar e permanecer, portanto, a posse do bem público com função social. Essa posse não é oponível à Administração devido à natureza precária do ato administrativo de autorização.

2 OCUPAÇÕES DE BENS PÚBLICOS POR PARTICULARES SEGUNDO O

ORDENAMENTO BRASILEIRO.

O objetivo específico deste capítulo é identificar nas leis que tratam de ocupações de bens públicos elementos que as possam caracterizar enquanto um instituto jurídico autônomo. O uso do termo ocupar, apesar de variável em significado, de longa data representa essencialmente a mesma prática social. Assim, as ocupações enquanto fatos sociais foram ganhando contornos jurídicos específicos, tornando-se um fato jurídico característico. Há também, devido à polissemia, a utilização genérica do termo para outros fatos sociais como as manifestações políticas. Através da conceituação será possível compreender um pouco melhor o seu significado específico.

De antemão se sabe que o uso do termo é recorrente e polissêmico e refere-se à sobreposição de pessoas em bem imóvel sem legitimação formal. Sabe-se também que há uma disputa terminológica entre a utilização dos termos ocupação e invasão referindo-se ao

88 BRASIL. Código de Processo Civil, Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015. Disponível em:

mesmo fenômeno, mas por perspectivas distintas quanto à sua legitimidade. Não foi possível encontrar na bibliografia selecionada qualquer conceituação desse fenômeno.

Trataram das ocupações enquanto formas de uso de bem público por particular Maria Sylvia Zanella Di Pietro e Floriano de Azevedo Marques Neto. Maria Sylvia Zanella Di Pietro foi quem dedicou mais páginas sobre o tema na obra ‘Uso privativo de bem público por particular’ sem, todavia, conceituar o que se acredita ser um instituto próprio de direito administrativo. Apresenta, por outro lado, características do fenômeno inferidas da legislação. É a partir do trabalho dela que foram selecionadas e elencadas neste capítulo as leis que disciplinam a questão das ocupações e serão abordadas a seguir. A partir dessas primeiras leis serão buscadas referências legislativas na intenção de se analisar todo estatuto jurídico relevante para as ocupações.

Maria Sylvia Zanella Di Pietro colheu características das ocupações nas normas que as preveem em hipóteses, método a partir do qual esse capítulo será construído. Essas características serão chamadas elementos devido à intensão constitutiva de um conceito. Também porque eles serão combinados ao final do trabalho na busca de um padrão característico. Os documentos legislativos, com exceção da constituição, serão abordados em ordem cronológica, pois se pretende verificar agregação de novos elementos conforme a sucessão das normas. A abordagem do texto constitucional antecipa às demais devido a sua hierarquia e, por esse motivo, as leis inferiores a ela devem ser interpretadas em conformidade.