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RESIGNIFICAÇÃO DEMOCRÁTICA DO ESTADO BRASILEIRO

1 ELEMENTOS JURÍDICO-ADMINISTRATIVOS DAS OCUPAÇÕES DE BENS

1.1 RESIGNIFICAÇÃO DEMOCRÁTICA DO ESTADO BRASILEIRO

O ordenamento jurídico brasileiro passou por um giro paradigmático com a promulgação, em 18 de outubro de 1988, da nova Constituição da República Federativa do Brasil. As fundações do Estado Brasileiro foram substituídas pela nova estrutura constitucional, de modo que a sociedade e a legislação anteriores a ela têm e tiveram que se compatibilizar. A reunião da assembleia constituinte marcou, então, a superação histórica do Estado de exceção anteriormente estabelecido para criar um novo, este propagador da

31 Área pública ocupada em parque ecológico do Guará é liberada. Caderno Cidades. Correio

Braziliense, Brasília. 09. fev. 2017. 22:37. Disponível na internet em:

http://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/cidades/2017/02/09/interna_cidadesdf,572577/area- publica-ocupada-em-parque-ecologico-do-guara-e-liberada.shtml .

32 BEDINELLI, Talita. Conflito por terra entre fazendeiros e índios se acirra no Mato Grosso do

Sul: Indígenas ocupam área em processo de demarcação e acusam produtores de atacá-los. Brasil. El País,

São Paulo. 03. jul. 2015. 11:13. Disponível na internet em:

transformação política e social aclamada pela população. Os representantes do povo brasileiro, reunidos em assembleia constituinte, declararam vestibularmente o objetivo daquela constituição:

(...) instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias (...).33

Retire-se, assim, com o viés interpretativo34 e não normativo, conforme declarado pelo Supremo Tribunal Federal35, que o objetivo político-ideológico daquela constituinte, expresso no preâmbulo do documento, foi o de produzir um manifesto de valores contrapostos à realidade vivida no período imediatamente anterior. Trata-se de um fragmento do texto destinado a aclarar e reforçar a retomada do protagonismo democrático para criar, redefinir e assegurar não só a existência de direitos sociais e individuais, mas principalmente o seu exercício pelo povo, leia-se eficácia das normas constitucionais vindouras, uma vez que a função declarada do novo Estado é a de assegurar o exercício de direitos.

Nesse sentido, destacou em seu voto como relatora a Ministra Carmem Lúcia do Supremo Tribunal Federal, fazendo análise incidental da função do preâmbulo da Constituição da República. No caso trazido à baila, buscava ela inferir do preâmbulo valores orientadores não só do texto que viria em seguida, mas também da sociedade que se pretendia construir. Pelo mesmo caminho, buscando por valores que irradiaram pelo texto constitucional, identificou-se o protagonismo democrático do povo na nova fundação do Estado com a intensão de criar um instrumento capaz de assegurar o exercício de direitos, dando ao Estado uma função transformadora. Veja-se parte do voto:

Vale, assim, uma palavra, ainda que brevíssima, ao Preâmbulo da Constituição, no qual se contém a explicitação dos valores que dominam a obra constitucional de 1988 (...). Não apenas o Estado haverá de ser convocado para formular as políticas públicas que podem conduzir ao bem- estar, à igualdade e à justiça, mas a sociedade haverá de se organizar

33 BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF:

Senado Federal: Centro Gráfico, 1988. Preâmbulo

34 ADI 2.649, voto da rel. min. Cármen Lúcia, j. 8-5-2008, P, DJE de 17-10-2008. 35 ADI 2.076, rel. min. Carlos Velloso, j. 15-8-2002, P, DJ de 8-8-2003.

segundo aqueles valores, a fim de que se firme como uma comunidade

fraterna, pluralista e sem preconceitos (...). (ADI 2.649, voto da rel. min. Cármen Lúcia, j. 8-5-2008, P, DJE de 17-10-2008) (Grifo meu)

Os pontos destacados pela ministra são os dos vieses estabelecidos pelo preâmbulo, explicitando os valores sob os quais foi produzida a obra constitucional. Concluiu que eles são direcionados também à sociedade, parte do novo Estado. Portanto, a constituição não apenas funda o próprio Estado, mas também refunda a sociedade sob a nova superestrutura. Nesse sentido, observa-se que a própria sociedade é a protagonista da mudança que se programaria por meio do texto constitucional, a quem cabe também assegurar a eficácia daqueles direitos prospectados.

Sobre a questão, refletiu José Afonso da Silva e concluiu que o preâmbulo aponta a direção para a qual se postularia a nova ordem constitucional, dotado de valores orientadores, principiológicos e fundantes, políticos, sociais e filosóficos do regime constitucional. Retira- se dessa reflexão, portanto, que o povo brasileiro, já em preâmbulo, submete o Estado que viria a ser criado ao regime democrático e instrumental, destinado a garantir a eficácia dos direitos sociais e individuais como valores supremos. Indica, portanto, que o preâmbulo explicita o protagonismo popular no regime eleito e proclamado em contrapondo histórico ao regime antidemocrático e não participativo anterior. Veja-se o desenvolvimento do seu raciocínio:

(...) fazem referência explícita ou implícita a uma situação passada indesejável, e postulam a construção de uma ordem constitucional com outra direção, ou uma situação de luta na perseguição de propósitos de justiça e liberdade; outras vezes, seguem um princípio básico, político, social e filosófico, do regime instaurado pela Constituição. (...) em qualquer dessas hipóteses, os Preâmbulos valem como orientação para a interpretação e aplicação das normas constitucionais. Têm, pois, eficácia interpretativa e integrativa.36

O povo reuniu-se em assembleia constituinte para recriar o Estado brasileiro, e que de lá em diante fosse democrático e que servisse instrumentalmente ao seu povo. A instrumentalidade pode ser inferida da expressão “destinado a assegurar”, reforçando o mandamento de o Estado ser ativo para dar eficácia às normas constitucionais,

36 DA SILVA, José Afonso. Comentário contextual à Constituição. São Paulo: Malheiros, 2006, p.

especificamente, conforme o preâmbulo, aos “direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça” nessa ordem. Continua José Afonso da Silva:

O Estado Democrático de Direito destina-se a assegurar o exercício de determinados valores supremos. ‘Assegurar’ tem, no contexto, função de garantia dogmático-constitucional; não, porém, de garantia dos valores abstratamente considerados, mas do seu ‘exercício’. Este signo desempenha, aí, função pragmática, porque, com o objetivo de ‘assegurar’, tem o efeito imediato de prescrever ao Estado uma ação em favor da efetiva realização dos ditos valores em direção (função diretiva) de destinatários das normas constitucionais que dão a esses valores conteúdos específicos.37

Já analisando o texto da constituição e, doravante, amparado pela normatividade, o povo é trazido como titular do poder político, conforme expresso no parágrafo primeiro do artigo primeiro38. O povo, titular do poder político e detentor do poder constituinte, deixa claro a quem e como deve servir o Estado, dirigido por representantes. A criação ou reprogramação dessa nova superestrutura ocorreu, portanto, para assegurar o exercício dos seus direitos sociais e individuais, que seriam especificamente positivados naquele texto com aplicabilidade imediata, conforme §1º do artigo 5º. Instituiu-se um regime de construção do novo Estado brasileiro com função diretiva, conforme expôs José Afonso da Silva em excerto supracitado. Portanto, o povo protagonista da sucessão histórica refundou o Estado com uma função diretiva de construir uma nova sociedade com direitos sociais e individuais imediatamente aplicáveis.

O Estado constituído naquele documento obviamente não estaria pronto imediatamente após a promulgação. O motivo e a importância das normas programáticas, da inclusão da construção de uma sociedade livre, justa e solidária, bem como o desenvolvimento nacional como objetivos a serem perseguidos pelo Estado é a indicação do processo de constituição. Seria somente o início da transformação estrutural institucional e social do Estado Brasileiro por iniciativa do povo, diferentemente da carta outorgada anteriormente em 1967, que impôs uma transformação em vias transversas. O novo Estado será democrático, disseram então os representantes do povo, e será instrumento de transformação social.

37 Op. Cit. p 22.

38 Art. 1º Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos

O parágrafo primeiro do artigo primeiro reafirma o protagonismo ao dizer emanar do povo todo o poder a ser exercido pelo Estado refundado. Significa colocar a instituição criada a serviço dos seus criadores, e não de si própria, com objetivos claros e expressos de: “I - construir uma sociedade livre, justa e solidária; II - garantir o desenvolvimento nacional; III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; e IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”.

O supramencionado parágrafo único do artigo primeiro não só positiva a titularidade do poder político a ser exercido pelo Estado por meio dos representantes eleitos pelo povo, mas também reconhece a possibilidade de exercício direto do poder político. Daí pode-se compreender que cabe também ao povo, isoladamente do Estado, assegurar o próprio exercício dos direitos sociais e individuais e perseguir objetivos constitucionais como forma de construir a nova sociedade. Esse texto normativo reforça o valor do protagonismo democrático que foi tratado até o momento, não só como valor, mas também como norma.

Assim, tomando o preâmbulo como viés interpretativo e integrativo, o texto que viria em seguida não poderia ser aplicado de modo contrário àqueles princípios iniciais. O documento, portanto, não pode ser aplicado ou interpretado para restringir o protagonismo popular e a legitimação democrática, que se interpreta aqui pelo dever e pela capacidade de o próprio povo assegurar o exercício dos seus direitos. Deste modo, ao menos inicialmente, o fato de o povo ocupar bens de titularidade pública para satisfazer autônoma e imediatamente os seus direitos sociais como a moradia e o trabalho ou exercendo direitos individuais como o protesto e a reunião, não merece ser compreendido sob uma premissa de ilegalidade, mas sim como a participação no exercício das funções do Estado e, consequentemente, de seus bens.

Deste modo, buscar-se-á analisar o fenômeno social das ocupações, o uso espontâneo, exclusivo e informal pelo cidadão através do texto constitucional, que dispõe que a função do Estado e também da sociedade é “assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a

liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça”.

Ademais, diz a Constituição que “todo o poder emana do povo, que o exerce por meio

de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”, o que permite a compreensão da legitimidade da autonomia do cidadão para exercer o poder político e assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, sabendo-se que “as normas