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1 ELEMENTOS JURÍDICO-ADMINISTRATIVOS DAS OCUPAÇÕES DE BENS

1.2 BENS PÚBLICOS E AS OCUPAÇÕES POR PARTICULARES

1.2.5 Ordenação dos usos

Diante das situações em que a incompatibilidade entre uso e utilidade não é tão clara, é necessária uma análise casuística pela Administração Pública do bem para que se possa optar entre a composição dos usos, se compatíveis entre si e com a utilidade do bem, ou a desconstituição do uso pela atuação do poder de polícia ou, por provocação, do poder judiciário, para proteção da utilidade. Portanto, são necessários critérios de ordenação dos usos. Assim, de um lado há o dever maximização e de outro o de preservação das utilidades. Floriano Azevedo Marques Neto propõe os seguintes critérios para ordenação dos usos:

(i) critério da afetação original; (ii) critério da generalidade ou da abrangência; (iii) critério da prejudicialidade ou rivalidade; (iv) critério da economicidade ou da rentabilidade. A aplicação de tais critérios deve ser feita sempre na ordem da sequência apresentada, de modo que a prevalência de um uso sempre decorrerá do critério anterior em detrimento do critério posterior. 71

O primeiro critério refere-se à existência de um “ato formal de afetação”. Diante dessa situação e, em decorrência do princípio da legalidade, o uso relacionado ao ato formal de afetação, seja ele administrativo ou legislativo, deverá ser priorizado sobre os usos secundários ou aqueles que ensejem uma nova utilidade ao bem.

O segundo indica a prevalência da fruição uti universi sobre a uti singuli. Deste modo, quanto maior a generalidade do uso, quanto maior a abrangência de vários usos para a fruição da utilidade, maior relevância esse uso terá frente aos outros possíveis e tentados.

O terceiro refere-se ao privilégio a um “uso que concilie com outras possíveis

aplicações do bem”. A rivalidade, portanto, verifica a interferência de um uso sobre as demais formas de uso do bem. É, portanto, a avaliação da saturação de um bem para cumprimento da função social por uma forma de uso. O critério propõe que sejam privilegiados usos que não saturem o bem, ou seja, que permitam a maximização de utilidades.

71 Op. cit. p. 420.

O quarto refere-se ao privilégio a uso que “represente maior capacidade

arrecadatória para o erário”. Esse critério propõe a comparação entre usos pelo retorno financeiro ao erário na forma de receita. Deste modo, pode-se compreender o critério também como lucratividade, já que o que se verifica não é a onerosidade do uso, mas a entrada de receita nos cofres públicos.

Thiago Marrara também propõe algumas regras para a superação de conflitos de uso, tomando por referência a classificação dos usos construída por Maria Sylvia Zanella Di Pietro em ‘Uso privativo de bem público por particular’. Para tanto, elenca quatro padrões de conflitos: “(1) o existente entre usos normais e anormais; (2)o existente entre uso comum e

privativo; (3) o existente entre dois ou mais usos normais e (4) os conflitos transgeracionais de uso.”72

Em relação ao primeiro padrão de conflitos, entre usos normais e anormais, Marrara tece a explicação que se aplica também ao critério de Marques Neto para privilégio dos usos albergados no “ato formal de afetação”. Trata-se, portanto, de um conflito entre um uso diretamente relacionado à utilidade explícita no ato de afetação do bem e outros indiretamente ou não relacionados a ele. Assim propõe:

A solução para choques entre usos normais (primários) e usos anormais (secundários) se extrai diretamente do princípio da legalidade. Dado que um ou mais usos são afetados por decorrerem de ato do Legislativo ou do Poder Público, então são eles que prevalecerão em detrimento de outros usos que, conquanto aceitos pelo direito e pela Administração, prejudiquem a finalidade precípua (única ou múltipla) a que se vincula o bem. Não é por outra razão que os mecanismos de outorga empregados pela Administração Pública para usos secundários precisam ser marcados pela precariedade.73

Todavia, essa solução não tem o condão de afastar uma avaliação casuística pelo critério da densidade dos interesses públicos decorrentes dos usos conflitantes. Assim, pondera Marrara: “a prioridade do uso comum sobre o uso privativo dependerá da

ponderação dos interesses que estão subjacentes a cada um dos usos em conflito, preferindo- se o uso mais diretamente ligados a interesses públicos constitucionalmente resguardados”74.

72 MARRARA, Thiago. Tratado de direito administrativo: direito administrativo dos bens e

restrições estatais à propriedade. Luciano Ferraz e Thiago Marrara. São Paulo: Revista dos tribunais, 2014.

Tratado de direito administrativo; v. 3/ coord. Maria Sylvia Zanella Di Pietro. p. 225.

73 Op. cit. p 225.

74 MARRARA, Thiago. Bens públicos; domínio urbano; infra-estruturas. Belo Horizonte: Fórum.

Deste modo, a ordenação dos usos dependerá do juízo pelo Administrador Público do bem para ponderar a satisfação de interesses constitucionais juntamente com a prejudicialidade da utilidade. Nesse sentido, Marrara exemplifica com uma situação em que há de se conjugar um uso privativo, portanto, anormal, com os usos comuns ordinários:

É o que se vislumbra, com frequência, na instalação de equipamentos ou infraestruturas de serviços públicos em espaços municipais de uso comum do povo. A restrição parcial ao uso comum em favor do uso privativo da prestadora do serviço público se justifica na enorme utilidade pública gerada para a coletividade.75

Há, ainda, situações em que o ato de afetação por si só preveja usos múltiplos. Nesses casos, o ato de afetação pode dispor hierarquicamente ou não dos usos que vincula ao bem. Nos casos em que haja hierarquia o conflito já tem solução: “basta que se privilegie o uso

‘mais afetado’, o uso precípuo preponderante sobre todos os outros, seguindo-se a ordem de preferência contida no ato de afetação (...)”76. Caso o ato não discipline hierarquicamente dos usos, o problema deverá ser solucionado pela criação de nova norma. Se a afetação for legislativa, somente outra lei poderá alterar a primeira. Se a afetação for administrativa, basta a Administração Pública do bem em questão expedir nova norma de hierarquia igual ou superior que crie a hierarquia de usos.

Finalmente, Marrara atentou-se para conflitos de uso transgeracionais, entre uso atual e uso futuro. Trata-se da rivalidade do uso presente, que pode inviabilizar o uso futuro. Trata- se de uma sugestão indireta de aplicação de um critério de sustentabilidade para privilegiar usos presentes com menor rivalidade com os usos futuros. Marrara propõe também “a criação

de limitações do uso comum, por exemplo, de veículos com carga muito elevada sobre o domínio viário local tem por escopo, entre outras coisas, mitigar a degradação do bem e garantir o seu uso futuro”77. Nesses casos, a solução para mitigar a rivalidade futura passaria pela previsão desses usos enquanto extraordinários, limitando sua prática, ou condicionando- os ao pagamento de uma remuneração que seja revertida à conservação do bem.

75 MARRARA, Thiago. Tratado de direito administrativo: direito administrativo dos bens e

restrições estatais à propriedade. Luciano Ferraz e Thiago Marrara. São Paulo: Revista dos tribunais, 2014.

Tratado de direito administrativo; v. 3/ coord. Maria Sylvia Zanella Di Pietro. p. 226.

76 Op. cit. p. 227. 77 Idem.. p. 229.

Veja-se, que as propostas ajudam a resolver algumas questões relativas às ocupações em bens especiais (uso anormal x uso normal) e de uso comum do povo (uso anormal x uso normal), mas não em relação às ocupações em bens dominicais sem utilidade (não há uso normal). Nesse caso, não há conflito de usos, mas apenas o uso informal diante de um bem público sem utilidade. Diante disso, cabe à Administração ponderar sobre a legitimidade da ocupação pela eventual relação que tenha com os interesses públicos constitucionalmente resguardados. O mesmo vale para os conflitos entre uso administrativo utilitário e o uso anormal pelos próprios usuários.

De um modo geral Floriano Azevedo Marques Neto postula parâmetro para ordenação dos casos mais nebulosos pelo seguinte raciocínio: “quanto mais rivais forem os usos e

quanto mais amplas e complexas forem as demandas dos administrados pelo cumprimento de finalidade públicas pelo Estado, mais a alocação de um bem público a um uso de interesse geral importará em decisão política.”78 Propõe-se também o seguinte raciocínio: quanto mais exclusivos forem os usos e quanto mais específicas e relacionadas a um dever de concretização de uma política pública forem as demandas do cidadãos, como cumprimento de finalidade pública pela Administração, mais a alocação de um bem público a um uso de interesse exclusivo de caráter não econômico importará em decisão política.

Nesse sentido, ao deparar-se com um uso exclusivo, ex parte populi, de um bem público não afetado, sem utilidade e, portanto, descumprindo sua função social, o administrador público deve fazer uma análise casuística do conflito de uso. Não há afetação original e, portanto, não há conflito entro uso normal e uso anormal, mas sim conflito entre o não uso e o uso exclusivo. A fruição será uti singuli do bem dominical. Ainda que se trate de uma ocupação coletiva, a fruição será restrita àquela coletividade. O uso será rival, já que exclusivo de um bem não afetado a uso comum ou geral. Todavia, o não uso, obviamente não rival, descumpre a função social do bem. Pelo critério da rentabilidade o uso exclusivo deveria ser privilegiado diante do não uso, já que há a possibilidade de cobrança da taxa de ocupação pelo usuário.

Também pelo critério excepcional proposto por Marrara para análise de usos privativos sobre bens de uso comum, me parece intuitiva a opção pelo uso exclusivo em contraposição ao não uso “preferindo-se o uso mais diretamente ligados a interesses públicos

constitucionalmente resguardados”. Assim, a ocupação deve ser analisada por sua

legitimidade relativamente ao respaldo de interesse constitucionalmente resguardados (direitos sociais e fundamentais), conjuntamente com a compatibilidade.

Pode-se argumentar também que o bem dominical poderia ser melhor alocado em alguma função mais rentável e a receita revertida para a realização de políticas públicas de modo mais eficiente, econômica e constitucionalmente. Todavia, a situação da alocação hipotética não cumpre a função social do bem e o uso exclusivo direto sim. Nesse sentido, é preciso considerar que o uso exclusivo decorrente de ocupação é uso precário, de modo que eventual política de rentabilização mais eficiente do bem possa dar ensejo à desocupação motivada do bem (o que também não desobriga o Estado de prover os direitos sociais e fundamentais aos desocupados do imóvel, por exemplo).

Pode-se argumentar também, que o uso autônomo do bem feriria a isonomia, já que não há critério prévio para a ocupação, de modo que seria operado pelo critério “quem chegou

primeiro (first come, first serve)”. E não poderia ser refutado tal argumento se, porventura, houvesse critérios estabelecidos. Marrara, ao analisar o conflito entre usos normais e usos anormais, faz essa consideração quanto à proteção da isonomia e postula: “o administrador

terá que criar mecanismos de identificação de demanda e de seleção dos usuários do bem, baseando-se para tanto em critérios objetivos, transparentes e racionais.”79 Todavia, na situação de abandono do bem, resta ao Administrador Público apenas a ponderação entre o não uso e o uso exclusivo e precário e o dever de maximização da utilidade, mesmo que temporariamente.

Nesse sentido, vem a calhar a consideração tecida por Marques Neto: “Sobre um

mesmo bem poderão recair duas ou mais afetações distintas. Pode haver, ainda, aquiescência da Administração a um uso extraordinário, que não necessitará de afetação, dado o seu caráter episódico.”80 A ordenação do uso pode ser extraordinária e episódica, não necessitando de afetação, mas apenas da aquiescência da Administração.

O uso decorrente da ocupação poderá ser revisto já que precário e, uma vez modificada a utilidade do bem por uma afetação ou a estipulação de critérios para a ordenação do uso em nome da isonomia, mesmo que posteriores, poderá se proceder a reintegração do titular do domínio na posse. Deste modo, não se trata de um uso rival em razão da

79 Op. cit. p. 225-226.

80 MARQUES NETO, Floriano de Azevedo. Bens Públicos: função social e exploração econômica: o

precariedade e da situação prévia de não uso, restando como determinantes os critério da rentabilização e o do respaldo de interesses públicos constitucionalmente previstos.