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1 ELEMENTOS JURÍDICO-ADMINISTRATIVOS DAS OCUPAÇÕES DE BENS

1.2 BENS PÚBLICOS E AS OCUPAÇÕES POR PARTICULARES

1.2.2 Função social da propriedade pública

A partir da adoção pela constituição da regra da função social49, não é mais possível se compreender o direito de propriedade de modo absoluto. A propriedade, portanto, além de conferir os poderes de usar, fruir, dispor e perseguir, obriga o proprietário a integrar seu bem a uma finalidade genérica comum. Essas obrigações incidem em diferentes dimensões sobre a propriedade privada e sobre a pública. A função social da propriedade privada obriga o proprietário apenas a adequar a utilidade do bem ao convívio em sociedade por meio da observância das regras estatais, interferindo minimamente no seu direito de usar, gozar e dispor. Obriga, outrossim, a pagar tributo, ao não abandono, ao modo sustentável do uso e a torná-la produtiva se rural. Obriga, portanto, ao uso, mas não determina qual utilidade deve possuir o bem. Por sua vez, a função social da propriedade pública parece já ser inerente à sua própria natureza, uma vez que as pessoas jurídicas titulares do direito de propriedade são vinculadas funcionalmente à constituição e ao regime jurídico de direito público. Portanto, o uso é também obrigatório, como na propriedade privada, e as utilidades são as mesmas funções definidas para a pessoa que detém a sua titularidade, o Estado. Nesse sentido, Thiago Marrara:

48 MARRARA, Thiago. Tratado de direito administrativo: direito administrativo dos bens e

restrições estatais à propriedade. Luciano Ferraz e Thiago Marrara. São Paulo: Revista dos tribunais, 2014.

Tratado de direito administrativo; v. 3/ coord. Maria Sylvia Zanella Di Pietro. p. 41.

49 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Art. 5º - Todos são iguais

perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: XXIII - a propriedade atenderá a sua função social.

Afinal, o direito constitucional apresenta dois fatores pelos quais um bem estatal jamais escaparia da função social. O primeiro se relaciona com a estrutura do Estado brasileiro, marcado pelo ideal republicano, democrático, pela legalidade e respeito aos direitos fundamentais. República não é a mera oposição à monarquia; é também a consagração da ideia de que o Estado representa coisa do povo, e, por conseguinte, todos os seus bens servem direta ou indiretamente à coletividade que o sustenta. A consequência que deriva do ideal democrático não é diferente. O patrimônio estatal se forma pelo esforço de todos e de cada um, devendo voltar-se para a produção de utilidade de quem o cria e custeia: o povo.50

Por essa perspectiva pareceria não ser necessário se falar em função social da propriedade pública. Todavia, a função social da propriedade pública vai além da imperatividade ao uso direcionado para a realização das utilidades constitucionalmente previstas. Os bens públicos, na medida do possível e nos limites da sustentabilidade, devem realizar o máximo de utilidades constitucionais, assim como o próprio Estado. Realizar ao máximo as utilidades decorre da Eficiência Administrativa e vinculação à legalidade do Estado de Direito. Thiago Marrara tece considerações quanto a isso:

O fato de certo bem estatal estar vinculado a um ou poucos usos (como ocorre com bens de uso comum e de uso especial) não repele juridicamente a autorização de usos secundários. Muito pelo contrário. A função social dos bens do Estado consiste em imperativo de uso múltiplo. É por esse fator que eles tornam-se peculiares em relação aos bens dos particulares em geral. Sua função social é incrementada, potencializada, fortalecida pelo fato de pertencerem a um Estado democrático, republicano e comprometido com a promoção de direitos fundamentais.51

Da análise trazida, conclui-se que a função social dos bens públicos obriga a gestão pelo administrador público para ampliação das utilidades, ou seja, para o cumprimento dos programas, efetivação dos direitos e garantia de seu exercício pelo povo brasileiro. É, portanto, imperativo à Administração pública não só dar utilidade aos bens que possui titularidade, mas maximizá-las sempre que possível. A eficiência administrativa na gestão dos seus bens é medida, portanto, pela capacidade de extrair deles o maior número de satisfações às necessidades públicas. Maria Sylvia Zanella Di Pietro reforça a compreensão da função social do bem público com a ampliação de seus usos:

50 Op. cit. p. 210.

Com relação aos bens de uso comum do povo e bens de uso especial, afetados, respectivamente, ao uso coletivo e ao uso da própria Administração, a função social exige que ao uso principal a que se destina o bem sejam acrescentados outros usos, sejam públicos ou privados, desde que não prejudiquem a finalidade a que o bem está afetado.

Com relação aos bens dominicais, a função social impõe ao poder público o dever de garantir a sua utilização por forma que atenda às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor, dentro dos objetivos que a Constituição estabelece para a política de desenvolvimento urbano.52

Floriano de Azevedo Marques Neto identificou duas vertentes da função social da propriedade: i) a “maximização do valor de uso”; ii) a “sujeição plena ao dever de

cumprimento de uma função social”. Quanto à primeira vertente, ele explica ser decorrente da mudança de eixo da ideia de valor, antes determinado pela aptidão para troca, agora definido pelo “potencial econômico decorrente de relação utilitária”. Assim, argumenta pela maximização das utilidades como forma de valorização do bem público. Por outro lado, a segunda vertente indica o direcionamento das utilidades elegíveis pelo administrador público para “a máxima eficiência: equilibrando a obtenção de receitas com a plena consagração dos

usos públicos e a eficácia das políticas públicas que se servem destes bens”53.

Aborda também uma questão importante para a gestão dos bens públicos que é a possibilidade de rentabilização do bem público enquanto utilidade secundária. O argumento é que se deve, sempre que possível, conciliar com as utilidades primárias do bem público outras utilidades que permitam rentabilizá-lo, de modo que possa contribuir também para a arrecadação de receitas. Isso quer dizer que a utilidade precípua, aquela de realizar o programa constitucional, não deve servir de argumento para impedir o emprego do bem em outras utilidades, quando compatíveis. Veja-se:

Por um lado, porque nos obriga a pensar este regime jurídico não a partir da natureza dominial dos bens, mas da relevância e da especificidade dos usos a que se prestam, das utilidades em que se consubstanciam. De outro, porque põe em pauta a reflexão sobre o que seja a função social dos bens públicos, função esta que certamente variará conforme as utilidades impregnadas nestes bens. Isso nos faz chegar à constatação de que, sempre que possível,

52 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Função social da propriedade pública. Revista eletrônica de

direito do Estado, v. 6, 2004.

53 MARQUES NETO, Floriano de Azevedo. Bens Públicos: função social e exploração econômica: o

sem esvaziar a utilidade correspondente à afetação principal do bem público, a gestão do patrimônio estatal deve ser organizada de molde a permitir o seu emprego na geração de receitas e na eficiência das políticas públicas. A busca da maximização do valor de uso dos bens públicos constitui, a nosso ver, dever do administrador público. O aproveitamento econômico do bem deve ser realizado sempre que não prejudicar as demais utilizações às quais o bem foi consagrado.54

O argumento da rentabilização do bem público é um contraponto à antiga concepção de extracomercialidade (extra commercium) do bem público. A caracterização do bem público como “não sujeito ao comércio” buscava explicar a não sujeição ao regime de direito privado. Isso porque se entendia como primordial apenas a proteção da afetação do bem (utilidade). Todavia, a teorização pela completa separação dos regimes de direito público e de direito privado caiu por terra e, consequentemente também a conclusão lógica da impossibilidade de fragmentação dos direitos reais dos bens públicos para usos privativos. A separação dogmática entre direito privado e direito público não mais explica a realidade e, da mesma forma impede a atualidade da compreensão da dominialidade pública e do próprio funcionamento do Estado. José Cretella Júnior, já discordando dela, explica a caracterização dos bens públicos pela extracomercialidade:

Uma outra corrente vê o traço extra commercium como elemento básico para distinguir o bem público do bem privado, porque este caráter distingue de todas as coisas que podem pertencer a um proprietário, condição jurídica que torna tal entidade inalienável e imprescritível e , pois, insuscetível de ser gravada com direitos reais, conotações bastantes para situá-lo em âmbito de aplicação exorbitante do direito civil.55

Assim, a despeito das notórias diferenças entre o direito e função social da propriedade pública e da privada, há uma margem de atuação discricionária do administrador público dos bens para maximizar suas utilidades. Entre elas, identificou Marques Neto, a função de produção de receita originária para o Estado. Os bens públicos podem não só produzir utilidade diretamente, pelo uso, como também indiretamente, pela rentabilização.