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Ocupação: uso autônomo informal exclusivo do bem público

1 ELEMENTOS JURÍDICO-ADMINISTRATIVOS DAS OCUPAÇÕES DE BENS

1.2 BENS PÚBLICOS E AS OCUPAÇÕES POR PARTICULARES

1.2.4 Ocupação: uso autônomo informal exclusivo do bem público

As ocupações como visto anteriormente são uma forma de uso dos bens públicos praticada espontânea e autonomamente por particulares, com exclusividade dentro dos seus limites, com a intenção de permanecer, restrita ou irrestritamente, modificando (acrescentando ou retirando, parcial ou totalmente) a utilidade do bem pelo seu uso direto. Essas características foram colhidas das formas socialmente identificadas: i) ocupações por manifestações; e ii) ocupações para satisfação continuada de direito social, rural ou urbana.

As ocupações por manifestações ocorrem, por exemplo, como visto no início do capítulo, em praças, ruas, estradas, escolas e universidades. Deste modo, pode-se notar que ocorrem, via de regra, sobre duas espécies de bens: os de uso comum do povo e de uso especial. Assim, mesclando as classificações, os usos por particulares a que se destinam esses

68 Idem. Ibidem p. 418.

bens são o uso comum, livre, geral para os de uso comum do povo ou específico utilitário para os de uso especial, todos normais.

A utilidade primária a que se destinam os bens de uso comum implica no acesso livre e autônomo a toda a coletividade com fruição pouco restrita e indeterminada (coletiva e aberta), por vezes sujeitos a regras objetivas (uso geral), mas mantendo-se a igualdade de condições para o acesso, sem particularizações. Assim, quando há uma manifestação por ocupação, o uso não deixa de ser comum ou livre, mas efetivará uma utilidade secundária do bem (local de reunião coletiva), figurando-se o uso comum extraordinário e, portanto, anormal. A anormalidade encontra-se na extrapolação do uso comum pela permanência e pelo número de pessoas, atraindo o exercício do poder de polícia administrativa com o objetivo de supervisionar a preservação da utilidade primária do bem e proteger o exercício da utilidade secundária. Assim, a anormalidade decorrerá tanto da dimensão, quanto da temporalidade do uso, que, por sua vez, determinará o grau de rivalidade daquele uso extraordinário.

O segundo tipo social de ocupação, aquele para satisfação continuada (não exauriente) de direito social ou fundamental, quando ocorrida sobre bem de uso comum do povo, caracterizará uma modalidade de uso com exclusividade e não mais um uso comum extraordinário ou anormal. Essa modalidade contrasta e restringe de modo mais claro a utilidade primária do bem (coletiva), de modo que possa se considerar uma extrapolação do uso anormal do bem em razão da maior rivalidade e temporalidade estendida. Deste modo, a ocupação para satisfação de direito social ou fundamental em bem de uso comum do povo se amoldaria apenas parcialmente às classificações: “uso privativo”, sem ato de outorga ou “proibida”, sem óbice legal expresso. Portanto, não é caso nem de uma e nem de outra categoria, de modo que o poder de polícia atuará em juízo discricionário para ponderar entre o prejuízo da utilidade primária diante da rivalidade do novo uso e o dever tutela do direto social em questão.

A utilidade precípua dos bens de uso especial é dar suporte ao exercício das funções estatais prestacionais. Os usos normais desses bens são, portanto, os usos específicos administrativo e utilitário (coletivos). Assim, o uso pelos particulares compatível com a utilidade primária, pela primeira classificação, seria comum e normal, correspondendo ao uso específico utilitário da segunda. É o uso relacionado ao serviço público. Portanto, o uso é restrito subjetivamente aos habilitados, sem margem de liberdade para a forma, destinada apenas à fruição da utilidade que afeta o bem (coletivo e restrito). Deste modo, diante de uma utilidade específica, há menor margem para agregarem-se utilidades anormais, empurrando a

maioria dos usos distintos da finalidade precípua para a classificação “proibida”, a depender especificamente da rivalidade do novo uso.

As ocupações por manifestações em bens de uso especial não se classificam como uso comum extraordinário devido à restrição funcional do bem (não é uso comum). Podem, todavia, ser consideradas uma forma de uso anormal se houver pertinência com a utilidade primária. Por exemplo, nas manifestações por ocupação de estudantes no próprio bem em que são titulares do direito de uso específico utilitário, haverá uma margem interpretativa no exercício do poder de polícia, uma vez que a ocupação não comprometeria completamente as utilidades precípuas (a prestação e a fruição de serviço educacional) se perpetrada pelos próprios beneficiários. Assim, a ocupação por alunos se confundiria com o uso específico utilitário e rivalizaria com o uso especial administrativo. Se a ocupação for realizada pelos próprios alunos (uso específico utilitário) e servidores (uso específico administrativo) esse uso seria rival a qual outro? Novamente, caberia à gestão administrativa ordenar essa situação de uso anormal já que a classificação “proibida” depende de norma proibitiva. Nesse caso, o direito de protesto e de uso seriam titularizados pelos mesmos beneficiários. Por outro lado, a ocupação por terceiros não possuiria nenhuma relação com a utilidade do bem, o que deixaria mais claro o uso “proibido” enquanto não permitido.

As ocupações para satisfação continuada de direitos sociais sobre bens de uso especial e, portanto, para fins de moradia ou acesso à terra com moradia, descaracterizariam a própria afetação do bem devido à alta rivalidade entre um uso exclusivo (individual) e outro específico (coletivo), de modo que comprometeriam a utilidade do bem. Um exemplo desse tipo de ocupação seria a ocorrida sobre terras indígenas. Nesse caso, a classificação “proibida” é mais clara, devido à existência de norma constitucional expressa.

Quanto aos bens dominicais, via de regra, não há utilidade precípua, não há afetação, de modo que não se possa aplicar o critério da conformidade da ocupação com a destinação primária do bem. É justamente a falta de afetação que caracteriza o bem público enquanto dominical. Não se pôde encontrar caso de ocupação por manifestação em bem dominical, mas apenas ocupação para satisfação continuada de direito social ou fundamental. Deste modo, as modalidades classificatórias de uso adequadas a uma ocupação para satisfação continuada de direitos sociais seriam o uso privativo ou o uso exclusivo de caráter não econômico.

Todavia, nessas formas de uso excludentes, ex parte populi, as quais podem ser reunidas no conceito de uso privativo, há a necessidade da outorga e caracterização da

onerosidade, via de regra. Percebe-se essa compreensão quando Maria Sylvia Zanella Di Pietro conceitua o uso privativo enquanto uso “que a Administração Pública confere,

mediante título jurídico individual, a pessoa ou grupo de pessoas determinadas, para que o exerçam, com exclusividade, sobre parcela do bem público”69. Em Floriano Azevedo Marques Neto, quando caracteriza o uso exclusivo de caráter não econômico:

A finalidade pública nesta espécie de uso estará no benefício indireto que a coletividade aufere, normalmente relacionada com objetivos de políticas públicas (de habitação, segurança, desportes etc) ou de garantia de direitos (reservas indígenas, áreas quilombolas).

O uso exclusivo de caráter não econômico pode ser aprazado, temporário ou episódico. No primeiro caso, mais comum, outorga-se um direito de uso por um prazo certo para que o particular, utilizando-se de maneira exclusiva do bem, se beneficie de uma política pública. Tem-se como exemplo o direito real de uso para habitação. No segundo caso está o franqueamento da utilização de uma via para uma passeata ou uma corrida de pedestres, por exemplo.70

As ocupações dos bens dominicais somente poderiam ser enquadradas nas espécies de uso privativo ou exclusivo de caráter não econômico em momento posterior ao ato de formalização do consentimento administrativo (autorização) ou de regularização da posse. Destarte, as classificações abordadas não são capazes de classificar especificamente as ocupações, que são a utilização informal, espontânea, autônoma e exclusiva pelos particulares. As classificações de Di Pietro e de Marques Neto pressupõem a formalidade do uso e as ocupações, ao menos em sua fase inicial, são formas de uso informais.

Somente poderão ser compreendidas nas classificações de usos abarcadas nesta seção: i) as ocupações dos bens de uso comum do povo por manifestações, enquanto espécie de uso comum extraordinário e anormal com restrição de modo desde que autorizadas; ii) as ocupações dos bens de uso comum do povo e especial para satisfação continuada de direitos sociais, enquanto proibidas; e iii) as ocupações de bens dominicais para satisfação continuadas de direitos sociais enquanto uso privativo ou uso exclusivo de caráter não econômico mediante inscrição da ocupação e cadastramento do imóvel. No primeiro e no

69 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Uso privativo de bem público por particular. 3ª ed. São Paulo:

Atlas, 2014.p. 29.

70 MARQUES NETO, Floriano de Azevedo. Bens Públicos: função social e exploração econômica: o

último caso as ocupações serão consideradas formais. As demais não encontram parâmetro classificatório.