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Todo ser humano é inexoravelmente um ser-para-a-morte, aquele que carrega a lúcida certeza de sua extinção; no entanto o romance de Gabriel García Márquez potencializa essa condição, se considerarmos particularmente a trajetória das gerações dos Buendías. Essa “pura e simples impossibilidade da existência” (HEIDEGGER, 2008, p. 331)369

é marcada com base em uma série de incidentes que acometem cada membro da família.

A morte “está à espreita” em muitos episódios, como no da morte simbólica (do patriarca José Arcádio) advinda da loucura, ou naquela decorrente de assassinatos sequenciais (dos 17 Aurelianos, filhos do coronel Aureliano Buendía). Lembrando que, neste último caso, os ilegítimos descendentes do militar já estavam literalmente marcados para morrer, com uma cruz de cinzas na testa. “En el curso de esa semana, por distintos lugares del litoral, sus diecisiete hijos fueron cazados como conejos por criminales invisibles que apuntaron al centro de sus cruces de ceniza.” (CAS, [s/d], p. 99).370 Curiosamente, esse crucifixo de cinzas terminou sendo o estigma de uma sina inevitável, e inapagável, que os Aurelianos iriam carregar pelo abreviado resto de suas vidas.

De regreso a casa, cuando el menor quiso limpiarse la frente descubrió que la mancha era indeleble, y que lo eran también las de sus hermanos. Probaron con agua y jabón con tierra y estropajo, y por último con piedra pómez y lejía y no con siguieron borrarse la cruz. (CAS, [s/d], p. 90).371

369 Em Ser e tempo, Heidegger analisa o conceito filosófico de Dasein, que tem como um dos significados

„ser-para-a-morte‟, e propõe um conceito ontológico-existencial da morte: “Enquanto fim da presença, a morte é a possibilidade mais própria, irremissível, certa e, como tal, indeterminada e insuperável da presença. Enquanto fim da presença, a morte é e está em seu ser-para-o-fim.”

(HEIDEGGER, 2008, p. 335). Pela complexidade do pensamento heideggeriano, opto somente por assinalar a pertinência do conceito para o estudo aqui proposto.

370“Ao correr da semana, em diferentes lugares do litoral, os seus dezessete filhos foram caçados como

coelhos por criminosos invisíveis que apontaram bem no centro das suas cruzes de cinza.” (CAS, 1996, p. 230).

371“De volta a casa, quando o menor quis limpar a testa, descobriu que a mancha era indelével e que

também o eram as de seus irmãos. Experimentaram com água e sabão, com terra e bucha, e por último com pedra-pomes e água sanitária, e não conseguiram apagar a cruz.” (CAS, 1996, p. 210).

179 Se num primeiro momento as “cruces de ceniza infundían un respeto sagrado, como si fueran una marca de casta, un sello de invulnerabilidad” (CAS, [s/d], p. 97),372 elas depois se tornam o preciso alvo a ser acertado por aqueles que se sentiam ameaçados pelo coronel Aureliano Buendía, como atesta a frase: “la saña del enemigo invisible estaba dirigida solamente contra los hermanos marcados con cruces de ceniza” (CAS, [s/d], p. 99).373 O epílogo trágico da prole do coronel tem relação direta com a indignação dele diante de mais um ato de barbárie em Macondo (um menino que fora picado a golpes de facão e o avô, decapitado): “Ŕ¡ Un día de estos ŔgritóŔ voy a armar a mis muchachos para que acaben con estos gringos de mierda!” (CAS, [s/d], p. 99)374, um juramento que catalisou toda a matança.

Nesse sentido a morte assume sua dimensão mais implacável, indiscutível, incontornável. No entanto o modo como ela efetivamente acontece é que se torna surpreendente. Um a um os Aurelianos vão sendo trucidados: com “un disparo de fusil surgido de la oscuridad le perforó la frente”; “con un punzón de picar hielo clavado hasta la empuñadura entre las cejas”; “con un tiro de revólver que lo derribó dentro de un caldero de manteca hirviendo”; “con una descarga de máuser que le desbarató el cráneo” (CAS, [s/d], p. 99)375 e ainda em situações que apenas é possível imaginar (pelos telegramas que iam chegando do litoral), pois aquela teria sido uma “noche de muerte” (CAS, [s/d], p. 99).376

Mesmo para a última vítima dessas execuções seriais (o filho mais velho, Aureliano Amador), a cruz ainda será uma retrasada sentença de morte, pois cumprida anos depois de o décimo sexto irmão ter sucumbido:

Dos agentes de la policía que habían perseguido a Aureliano Amador durante años, que lo habían rastreado como perros por medio mundo, surgieron de entre los almendros de la acera opuesta y le hicieron dos

372 “cruzes de cinza infundiam um respeito sagrado, como se fossem marca de casta, selo de

invulnerabilidade” (CAS, 1996, p. 226).

373“a sanha do inimigo invisível estava dirigida apenas contra os irmãos marcados com cruzes de cinza”

(CAS, 1996, p. 231).

374“Ŕ um dia destes Ŕ gritou Ŕ vou armar os meus rapazes para acabar com estes ianques de merda!”

(CAS, 1996, p. 230).

375“disparo de fuzil perfurando-lhe a testa”; “furador de gelo cravado até o cabo entre as sobrancelhas”,

“tiro de revólver que o derrubou dentro de um caldeirão de gordura fervendo”; “uma descarga de Mauser que lhe despedaçou o crânio”. (CAS, 1996, p. 230-231).

180

tiros de máuser que le penetraron limpiamente por la cruz de ceniza. (CAS, [s/d], p. 154).377

Essa morte que impossibilita a união e a felicidade determina boa parte da força trágica do livro. O manejo dos meândricos fios da narrativa resulta em cenas que fazem da solidão e da morte as grandes protagonistas, sendo que esta última ora é a cura para a primeira, ora é a causa. Assim sendo, o livro traz a morte como imagem que se fixa na memória e transborda em significações.

Em alguns casos, temos a morte-redentora para personagens em eterna solidão:

Rebeca murió a fines de ese año. Argénida, su criada de toda la vida, pidió ayuda a las autoridades para derribar la puerta del dormitorio donde su patrona estaba encerrada desde hacía tres días, y la encontraron en la cama solitaria, enroscada como un camarón, con la cabeza pelada por la tiña y el pulgar metido en la boca.(CAS, [s/d], p. 142).378

Em outros, a morte-algoz:

Pero una noche, al entrar Arcadio en la tienda de Catarino, el trompetista de la banda lo saludó con un toque de fanfarria que provocó las risas de la clientela, y Arcadio lo hizo fusilar por irrespeto a la autoridad. A quienes protestaron, los puso a pan y agua con los tobillos en un cepo que instaló en un cuarto de la escuela. “¡Eres un asesino!” Ŕle gritaba Úrsula cada vez que se enteraba de alguna nueva arbitrariedadŔ. (CAS, [s/d], p. 45).379

Entre memória e esquecimento, sofrimento e dor, se movimentam os vivos e os mortos no romance. O resultado não poderia ser distinto: a linha demarcatória entre a vida e a morte perde a nitidez, e os dois planos passam a se interpenetrar constantemente. Assim temos mortos que conversam e convivem com vivos (Prudencio Aguilar com José Arcadio Buendía; Melquíades com Aureliano Segundo); vivos-quase-

377 “Dois agentes da polícia que tinham perseguido Aureliano Amador durante anos, que o haviam

farejado como cães por meio mundo, surgiram dentre as amendoeiras da calçada em frente e lhe

deram dois tiros de Mauser que penetraram certeiramente pela cruz de cinza.” (CAS, 1996, p. 355).

378“Rebeca morreu no final desse ano. Argénida, sua criada de toda a vida, pediu ajuda às autoridades

para derrubar a porta do quarto onde a sua patroa estava trancada há (sic) três dias, e a encontraram na cama solitária, enroscada como um camarão, com a cabeça pelada pela calvície e o polegar metido na boca”. (CAS, 1996, p. 327).

379 “Mas certa noite, ao entrar na taberna, o trompetista da banda saudou Arcadio com um toque de

fanfarra que provocou o riso da clientela, e Arcadio o mandou fuzilar por falta de respeito à autoridade. Aos que protestaram pôs a pão e água, com os tornozelos num tronco que instalara num

quarto da escola. „Você é um assassino! ‟, gritava-lhe Úrsula cada vez que sabia de alguma nova arbitrariedade”. (CAS, 1996, p. 105).

181 mortos (Rebeca, velha e abandonada no casarão, e Don Fernando, vestido de negro em sua mansão funerária); mães que morrem no parto (Remedios e Úrsula Amaranta); e tantas outras imbricações entre ambos os fenômenos.

Amaranta380 por exemplo é uma personagem indecifrável, que se move no limiar entre a vida e a morte. Após sofrer uma grave desilusão amorosa, ela passa vários anos tecendo cuidadosamente a própria mortalha; antes, porém, já se tornara uma “virtuosa en los ritos de la muerte” (CAS, [s/d], p. 114),381

especialmente com o intuito de se vingar de Rebeca, a irmã adotiva. Amaranta faz de sua vida uma disciplinada celebração de ritos fúnebres; daí ter se tornado uma expert nessa arte. Essa proximidade com a morte também é uma marca decisiva na trajetória de Fernanda del Carpio, que, no esplendor da juventude, tecia “coronas de palmas fúnebres” (CAS,[s/d], p. 86).382

Ambas as mulheres são bastante familiarizadas com os assuntos da morte pela via do intenso trabalho manual.383 Amaranta com as habilidades do bordado, e Fernanda com as do entrançar de flores, caules e folhas para a confecção de coroas mortuárias. Ao lidarem com aspectos relacionados ao perecimento e seus ritos, as duas se elevam à condição de artesãs da morte, e talvez por isso tenham muitas dificuldades de se relacionar com as pessoas do seu convívio e se harmonizar com os fluxos da vida. Cada qual termina enclausurada na própria mortalha, seja esta de fios têxteis ou de caules florais. Ambas acabam sendo vivas-mortas em um labirinto de mágoas e ressentimentos.

Amaranta calcula o dia preciso e a exata hora de seu falecimento seguindo orientações prestadas pela própria morte, em pessoa: “una mujer vestida de azul con el cabello largo, de aspecto un poco anticuado” (CAS, [s/d], p. 114)384 e que não tinha nada

380 Observe-se que Amaranta traz inscrita no próprio nome a alusão ao amor e à amargura (amar/amarar).

Etimologicamente a palavra “amarar” (amaro + ar) significa „amargurar‟ (HOUAISS, 2009).

Curiosamente Amaranta também é tomada pelo autor como a criatura mais doce e amorosa do romance. Alguém que transformou o amor em ódio e que não soube desde então manifestar os sentimentos.

381“uma virtuose nos ritos da morte” (CAS, 1996, p. 266). 382“coroas de defunto” (CAS, 1996, p. 199).

383 É instigante considerar que esse trabalho artesanal das duas mulheres configura-se como uma espécie

de registro, de linguagem que se faz irmã dos pergaminhos escritos por Melquíades. É como se elas escrevessem suas dores, sofrimentos e anseios nos fios da mortalha e das coroas. Ao cerzir essa excêntrica escritura, as mulheres teceram a parte que aludia a elas nos herméticos pergaminhos que narram a saga da família e sua solidão. Nada tão inverossímil se se estabelece um paralelo com o quipu, um instrumento que era usado pelos incas para comunicação, baseado em cordões coloridos e nós, o qual servia a registros contábeis e mnemotécnicos.

384“uma mulher vestida de azul, com o cabelo comprido, de aspecto um pouco antiquado.” (CAS, 1996, p.

182 de pavoroso. Ressalte-se que “la muerte le deparó el privilegio de anunciarse con varios años de anticipación.” (CAS, [s/d], p. 114).385

Como esclarece o trecho:

La muerte no le dijo cuándo se iba a morir ni si su hora estaba señalada antes que la de Rebeca, sino que le ordenó empezar a tejer su propia mortaja el próximo seis de abril. La autorizó para que la hiciera tan complicada y primorosa como ella quisiera, pero tan honradamente como hizo la de Rebeca, y le advirtió que había de morir sin dolor, ni miedo, ni amargura, al anochecer del día en que la terminara. Tratando de perder la mayor cantidad posible de tiempo, Amaranta encargó las hilazas de lino bayal y ella misma fabricó el lienzo. Lo hizo con tanto cuidado que solamente esa labor le llevó cuatro años. Luego inició el bordado. A medida que se aproximaba el término ineludible, iba comprendiendo que sólo un milagro le permitiría prolongar el trabajo más allá de la muerte de Rebeca, pero la misma concentración le proporcionó la calma que le hacía falta para aceptar la idea de una frustración. (CAS, [s/d], p. 114-115).386

Tal qual uma Penélope mortal, Amaranta ainda tenta protelar o falecimento ao passar anos tecendo a própria mortalha com “preciosismos inútiles” (CAS, [s/d], p. 115).387 A finalização da veste marca o término de sua existência: “Una semana antes calculó que daría la última puntada en la noche del cuatro de febrero [...], en la labor más primorosa que mujer alguna había terminado jamás, y anunció sin el menor dramatismo que moriría al atardecer.” (CAS, [s/d], p. 115).388

Desse modo Amaranta teve tempo e condições de se aprontar devidamente: “recostada en almohadones, como si de veras estuviera enferma, tejió sus largas trenzas389 y se las enrolló sobre las orejas, como la muerte le había dicho que debía estar en el ataúd.” (CAS, [s/d], p. 116).390

385“a morte lhe concedera o privilégio de se anunciar com vários anos de antecedência.” (CAS, 1996, p.

266).

386“A morte não lhe disse quando ela ia morrer nem se a sua hora estava marcada para antes da de

Rebeca, mas sim lhe ordenou que começasse a tecer a sua própria mortalha no próximo seis de abril. Autorizou-a a fazê-la tão complicada e primorosa quanto quisesse, mas tão honradamente como fizera a de Rebeca, e lhe avisou que haveria de morrer sem dor, nem medo, nem amargura, ao anoitecer do dia em que a terminasse. Tentando perder a maior quantidade de tempo possível, Amaranta encomendou as meadas de linho e ela mesma teceu a fazenda. Fê-lo com tanto cuidado que somente este trabalho levou quatro anos. Em seguida, iniciou o bordado. À medida que se aproximava o fim irremediável, ia compreendendo que só um milagre permitiria que prolongasse o trabalho para além da morte de Rebeca; mas a própria concentração lhe proporcionou a calma que lhe faltava para aceitar a ideia de uma frustração.” (CAS, 1996, p. 266-267).

387“preciosismos inúteis” (CAS, 1996, p. 267).

388“Uma semana antes, calculou que daria o último ponto na noite de quatro de fevereiro [...] no trabalho

mais primoroso que mulher alguma terminara jamais e anunciou sem o menor dramatismo que morreria ao entardecer”. (CAS, 1996, p. 267-268).

389 Curiosamente, no Dicionário de símbolos a trança aparece como uma representação da “força viril e

vital”, mas também como “uma ligação provável entre este mundo e o Além dos defuntos, um enlace íntimo de relações, correntes de influências misturadas, a interdependência dos seres.” (CHEVALIER;

183 Por sua vez, a figura do cigano Melquíades é por si só enigmática e também remete à morte. “[...] Era un hombre lúgubre, envuelto en un aura triste, con una mirada asiática que parecía conocer el otro lado de las cosas. Usaba un sombrero grande y negro, como las alas extendidas de un cuervo,391 y un chaleco de terciopelo patinado por el verdín de los siglos.” (CAS, [s/d], p. 4).392 Alguém que teria renegado a morte para fugir da solidão: “El gitano iba dispuesto a quedarse en el pueblo. Había estado en la muerte, en efecto, pero había regresado porque no pudo soportar la soledad.” (CAS, [s/d], p. 22).393

Esse personagem é misterioso e tem vários espaços e tempos de atuação. Ele pode ser visto tanto como uma espécie de anjo que anuncia o destino dos Buendías (se compadecendo deles), quanto como um alquimista, como defende Josefina Ludmer no livro intitulado Cem anos de solidão: uma interpretação. O cigano é aquele que vai transformar a matéria bruta do cotidiano em joias raras de família.

Melquíades irrompe para distorcer os elementos de uma relação anterior; traz a mudança e o ritmo: todos os anos chega na mesma época; introduz a repetição: vem uma e outra vez. Melquíades chega a Macondo como o exterior e o futuro; é um desconhecido sem amores, sem passado; só se lhe conhece o nome e a sabedoria. Melquíades é, entre outras coisas, alquimista: leva as transmutações e o acesso em profundidade à unidade do mundo. (LUDMER, 1984, p. 26).

O retorno dele das solitárias trevas da morte é um dos grandes enigmas do livro. Mesmo que com sequelas, o personagem é aquele que sobrevive a uma sequência

GHEERBRANT, 2009, p. 895). É necessário salientar que nesta tese a utilização do Dicionário de

Símbolos atua como um segundo viés ou registro de leitura que vai além de uma exclusiva “simbologia da morte”.

390 “Recostada em almofadões, como se na verdade estivesse doente, teceu as suas longas tranças e

enrolou-as sobre as orelhas, exatamente como a morte lhe dissera que deveria estar no ataúde” (CAS, 1996, p. 269).

391Simbolicamente, o corvo remete a vários elementos interessantes. É tomado como “figura de mau

agouro, ligada ao temor da desgraça”, ou como “mensageiro da morte” (especialmente no simbolismo moderno). Na Antiguidade esse animal representava “uma ave de bom agouro, anunciadora de triunfos, e sinal de suas virtudes”, “princípio animador do sol”, ou ainda como aquele que “tem papel profético”. “Assim, na maior parte das crenças a seu respeito, o corvo aparece como herói solitário,

muita vez demiurgo ou mensageiro divino, guia, em todo caso, e, até, guia das almas em sua última viagem, pois que, psicopompo que é, ele penetra, sem se perder, o segredo das trevas. Parece que seu aspecto positivo está ligado às crenças dos povos nômades, caçadores e pescadores [...].” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2009, p. 293-294). É importante lembrar que Melquíades é aquele que, na cartografia da morte, serviu como guia para as outras almas.

392“[...] Era um homem lúgubre, envolto em uma aura triste, com um olhar asiático que parecia conhecer

o outro lado das coisas. Usava um chapéu grande e negro, com as asas estendidas de um corvo, e um casaco de veludo patinado pelo limo dos séculos.” (CAS, 1996, p. 12).

393“O cigano estava disposto a ficar no povoado. Tinha estado à morte, realmente, mas tinha voltado

184 de pestes. Essa constante superação cria uma aura de imortalidade em torno da figura do cigano. A recusa a se submeter ao óbito (apesar da degradação de sua aparência)394 também fica evidente em expressões e trechos como: “he alcanzado la inmortalidad” (CAS, [s/d], p. 32),395 pronunciada por Melquíades quando sentiu uma emoção repentina, p. 74); ou mesmo na insistência simbólica da imagem que marca a aparição do memorável cigano a Aureliano Segundo, após muitos anos de seu falecimento. O próprio Melquíades admite que a morte “lo seguía a todas partes, husmeándole los pantalones, pero sin decidirse a darle el zarpazo final.” (CAS, [s/d], p. 4).396

Tanto é assim que, mesmo tendo envelhecido “con una rapidez asombrosa [pareciendo] estragado por una dolencia tenaz” (CAS, [s/d], p. 4),397 Melquíades ressuscita nas dunas de Cingapura, após seu corpo ter sido jogado no “lugar más profundo del mar de Java.” (CAS, [s/d], p. 9).398

A imortalidade que o cigano diz ter alcançado perde qualquer caráter de contrassenso se pensarmos que com os pergaminhos ele acaba pondo os Buendías em contato com uma noção de tempo sagrado, tempo este do qual fala Mircea Eliade. Ele é quem expulsa o último Buendía do fechado e estagnado paraíso do tempo dos homens.

Além disso, é instigante o fato de ter sido exatamente Melquíades o responsável por indicar o caminho de Macondo aos mortos, já que ele foi marcado como o primeiro “puntito negro en los abigarrados mapas de la muerte”(CAS, [s/d], p. 34).399 O cigano é que inaugura o cemitério de Macondo. Será a partir de sua lápide (erguida no centro de um terreno) que todos os outros túmulos serão construídos e em torno da qual as demais vão se conformar.

Da mesma forma, Úrsula Iguarán é exemplar dessa resistência à morte. A matriarca que conduziu a família com heroicos vigor e determinação condensa mais de um século de vivências e repetições. Seu falecimento é acompanhado de (e anunciado por) uma mortandade de pássaros:

Amaneció muerta el jueves santo. La última vez que la habían ayudado a sacar la cuenta de su edad, por los tiempos de la compañía

394Como no seguinte trecho: “[...] a pele se cobriu de um musgo macio, semelhante ao que prosperava no

casaco anacrônico que não tirou nunca, e a sua respiração passou a exalar um bafo de animal

adormecido.” (CAS, 1996, p. 73).

395“alcancei a imortalidade.” (CAS, 1996, p. 74).

396“o seguia por todas as partes, farejando-lhe as calças, mas sem se decidir a dar o bote final.” (CAS,

1996, p. 11).

397“com uma rapidez assombrosa [parecendo] estragado por um mal tenaz” (CAS, 1996, p. 11). 398“lugar mais profundo do mar de Java” (CAS, 1996, p. 22).

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bananera, la había calculado entre los ciento quince y los ciento veintidós años. La enterraron en una cajita que era apenas más grande que la canastilla en que fue llevado Aureliano, y muy poca gente asistió al entierro, en parte porque no eran muchos quienes se acordaban de ella, y en parte porque ese mediodía hubo tanto calor que los pájaros desorientados se estrellaban como perdigones contra las paredes y rompían las mallas metálicas de las ventanas para