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O boom literário: propostas de ruptura e novas direções na América Latina

Latina

É relevante contextualizar em que circunstâncias surge a literatura de Gabriel García Márquez. Um momento que pode ser traduzido como a tentativa de assumir uma “identidade latino-americana” que desse conta de se afirmar perante o cânone europeu por meio de traços específicos da modernidade e também pela valorização de estilos próprios de escritores de vários países do continente.

Designado como boom literário, esse movimento reúne autores da década de 1960 e início dos anos 1970 que simultaneamente tanto promoveram uma ruptura com a “tradição literária”78

de seu tempo, quanto contribuíram com a perda da aura da literatura, uma vez que se adequaram às próprias leis de mercado. Entre os principais autores do boom estão, além do colombiano García Márquez, o peruano Vargas Llosa, o mexicano Carlos Fuentes, o cubano Alejo Carpentier, o argentino Júlio Cortázar.

O que importa visualizar é o pano de fundo para o surgimento das condições do boom e como o fenômeno expressava um projeto diferenciado até então. Em seu estudo crítico para a edição comemorativa dos 40 anos de Cien años de soledad, Gonzalo Celorio explica que a década de 1960 teria sido marcada por um florescimento da narrativa latino-americana, que foi “bautizado con el explosivo nombre de „el boom‟; o castizamente, con la denominación „nueva novela latinoamericana‟(CELORIO, 2007, p. 515).79 Essas designações assinalavam uma inquestionável efervescência da produção literária naquela conjuntura, mas também se prestavam a más interpretações. Isso porque tais denominações poderiam sugerir que as obras desses novos romancistas fariam parte de um “fenómeno literario nacido por generación espontánea, a despecho de la obra de los escritores precedentes.” (CELORIO, 2007, p. 515).80

Gonzalo Celorio descreve a importante relação entre os autores do boom e seus precursores:

Sería impensable la obra de Cortázar sin el antecedente de Borges, del mismo modo que sería impensable la obra de Borges si el antecedente de Macedonio Fernández. O la de Fuentes sin la novela de la

78 É preciso destacar que, a despeito dessa ruptura, os jovens autores do boom dialogavam com os autores

considerados como “antigos”. Esse é o caso, por exemplo, de Júlio Cortázar em relação a Jorge Luis

Borges. Isso significa que, se por um lado houve uma tentativa de negação da tradição literária, por outro houve uma inevitável incorporação das contribuições de autores precursores.

79“batizado com o explosivo nome de „o boom‟; ou, castiçamente, com a denominação „novo romance

latino-americano‟.”

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revolución mexicana. O la de Vargas Llosa sin José María Arguedas o el Inca Garcilaso de la Vega.” (CELORIO, 2007, p. 515-516).81

Isso significa que, embora cada autor do boom procure subverter a dita “tradición literaria latinoamericana” em nome de uma modernidade e de uma linguagem própria, a produção desses autores é tributária dessa mesma tradição. Nesse sentido, segundo Celorio, a obra de García Márquez não teria sido o que é sem as crônicas da Conquista,

en las cuales los prodigios que relatan las novelas de caballerías cobran realidad histórica; sin las consideraciones de Alejo Carpentier a propósito de lo real-maravilloso americano, que abren nuestra novelística a la épica moderna; sin la obra capital de Juan Rulfo, donde coinciden, en un mismo plano, la realidad objetiva y la realidad imaginaria. (CELORIO, 2007, p. 516).82

Do ponto de vista da produção cultural, nunca havia sido tão fácil dar visibilidade a um autor, e editar sua obra (com tiragens que suplantavam e muito as impressões “domésticas” dos anos 40 e 50 do século XX).

[...] es cierto que el boom fue un fenómeno editorial que encendió sobre el decurso de nuestras letras un gigantesco reflector y lanzó a los escritores latinoamericanos al éxito comercial: ediciones de inusitados tirajes, leídas multitudinariamente, reseñadas en numerosas revistas y muy pronto traducidas a diversos idiomas. (CELORIO, 2007, p. 516).83

No entanto essa consolidação do mercado editorial trouxe como um reverso da moeda a crença em uma espécie de mercantilização da arte (conforme será discutido em outra seção deste capítulo).

Não obstante o sucesso indiscutível de vários desses autores e da profícua rede de circulação de ideias e produtos literários que passou a existir entre a América Latina e a Europa (com o epicentro em países como a Espanha), o boom não deixou de

81 “Seria impensável a obra de Cortázar sem o antecedente de Borges, do mesmo modo que seria

impensável a obra de Borges sem o antecedente de Macedonio Fernández. Ou a de Fuentes sem a novela da revolução mexicana. Ou a de Vargas Llosa sem José Maria Arguedas ou o Inca Garcilaso de

la Vega.”

82 “nas quais os prodígios que relatam os romances de cavalaria cobram realidade histórica; sem as

considerações de Alejo Carpentier a propósito do real maravilhoso americano, que abrem nossa novelística à épica moderna; sem a obra capital de Juan Rulfo, onde coincidem, em um mesmo plano,

a realidade objetiva e a realidade imaginária.”

83 “[...] é certo que o boom foi um fenômeno editorial que acendeu sobre o decurso de nossas letras um

gigantesco refletor e lançou os escritores latino-americanos ao êxito comercial: edições de inusitadas tiragens, lidas multitudinariamente, resenhadas em numerosas revistas e muito rapidamente traduzidas

52 criar uma espécie de estigma em relação à literatura produzida no continente latino. Em parte porque os autores do boom passaram a ser identificados com uma circunstância histórica marcante na qual a modernidade tanto anunciava suas promessas de um mundo melhor, quanto escancarava as discrepâncias existentes nos diversos setores da sociedade.

Convém considerar ainda que o boom foi um fenômeno próprio da cultura de massas e que por isso traz em seu esteio as qualidades, mas também os defeitos e as limitações próprios de um sistema de produção voltado especialmente para a larga escala e com o foco principal no popular (não que isso em si seja um desmerecimento). Como dito anteriormente, Cien años de soledad pode ser pensado como uma das expressões dessa quebra de paradigmas elitistas, ao reunir um material heterogêneo que contempla aspectos díspares, de culturas distintas, e que consegue atingir públicos amplos como poucas vezes foi possível em se tratando de uma obra literária.

Considero que a valorização do boom literário é adequada principalmente porque tal movimento direcionou para a cena literária latino-americana os holofotes que havia muito tempo estavam voltados exclusivamente para Europa e Estados Unidos. Entretanto percebo que é necessário realocar ou redimensionar suas significações no panorama mais largo e rico das literaturas latino-americanas. Isso pressupõe uma leitura mais crítica sobre o fenômeno (por meio do reconhecimento de possíveis visões equivocadas e reducionistas), sem deixar de reconhecer o papel que assumiu na história da literatura.

Por esse viés, também busco respaldo nas considerações de Eduardo Becerra, para quem o boom significou a oportunidade de se conhecer “valiosísimos narradores, pero también toda una literatura de enormes dimensiones que había permanecido oculta, más bien olvidada, casi por completo.” (BECERRA, 2008, p. 16).84 Ele esclarece:

Así, no sólo el presente sino un pasado igualmente rico comienza a salir a la luz y no es extraño que el acontecimiento que lo impulsa condicione las interpretaciones que suscita, no sólo las referentes al propio proceso del boom, sino asimismo a una literatura contemplada a menudo desde su prisma, lo que afectaría sobre todo, al ser un proceso exclusivamente novelesco, al enjuiciamiento de la producción anterior dentro de ese mismo género. (BECERRA, 2008, p.16).85

84 “valiosíssimos narradores, mas também toda uma literatura de enormes dimensões que havia

permanecido oculta, ou melhor, esquecida, quase por completo.”

85“Assim, não só o presente, senão um passado igualmente rico começa a sair à luz, e não é estranho que

o acontecimento que o impulsiona condicione as interpretações que suscita, não só as referentes ao próprio processo do boom, senão também a uma literatura contemplada frequentemente a partir de seu

53 Não se deve desconsiderar a importância do boom literário para os autores latino-americanos, nem negligenciar os efeitos redutores que o fenômeno propiciou ao eleger como ícones apenas alguns expoentes do romance das décadas de 60 e 70 do século XX (e, portanto, sem valorizar na mesma medida outros autores qualificados), e também ao não abarcar os demais gêneros literários, como, por exemplo, conto e poesia. Minha intenção neste estudo é contextualizar o instante de surgimento e consolidação da obra de García Márquez, ressaltando a contribuição dela no panorama maior das literaturas latino-americanas. Por isso cabe destacar as relações que o autor travou com alguns movimentos políticos da época.