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Esquecer para lembrar. A importância do esquecimento na constituição do próprio espaço de memória é algo detectável no romance. É preciso considerar que, para além desse esquecimento voluntário (apagar deliberadamente as lembranças), García Márquez fala de outros tipos de esquecimento: aquele que nos permite viver (apesar das dores e traumas), e aquele outro, que arrasta seus personagens a um limbo profundo, por meio de um fenômeno misterioso.

Em Cien años de soledad, a peste da insônia se constitui numa verdadeira ameaça para a sobrevivência dos moradores de Macondo. Perigo que chega com a figura do estrangeiro (Rebeca) e se espalha por todo o povoado. No começo chega a ser celebrado o fato de não mais ser necessário dormir. “Al principio nadie se alarmó. Al contrario, se alegraron de no dormir, porque entonces había tanto que hacer en Macondo que el tiempo apenas alcanzaba.” (CAS, [s/d], p. 21).262

O trecho a seguir exemplifica o grau de esquecimento a que os habitantes de Macondo se renderam e a necessidade de assinalar até as coisas mais triviais e domésticas:

Entonces las marcó con el nombre respectivo, de modo que le bastaba con leer la inscripción para identificarlas. Cuando su padre le comunicó su alarma por haber olvidado hasta los hechos más impresionantes de su niñez, Aureliano le explicó su método, y José Arcadio Buendía lo puso en práctica en toda la casa y más tarde la impuso a todo el pueblo. Con un hisopo entintado marcó cada cosa con su nombre: mesa, silla, reloj, puerta, pared, cama, cacerola. Fue al corral y marcó los animales y las plantas: vaca, chivo, puerca,

gallina, yuca, malanga, guineo. (CAS, [s/d], p. 22).263

Esse esquecimento mordaz se estende não apenas à materialidade dos objetos, mas abarca as próprias palavras e os conceitos que elas carregam. Existe uma

262“No princípio, ninguém se alarmou. Pelo contrário, alegraram-se de não dormir, porque havia então

tanto o que fazer em Macondo que o tempo mal chegava.” (CAS, 1996, p. 49).

263“Então, marcou-as com o nome respectivo, de modo que bastava ler a inscrição para identificá-las.

Quando seu pai lhe comunicou o seu pavor por ter-se esquecido até dos fatos mais impressionantes da sua infância, Aureliano lhe explicou o seu método, e José Arcadio Buendía o pôs em prática para toda a casa e mais tarde o impôs a todo o povoado. Com um pincel cheio de tinta, marcou cada coisa com o seu nome: mesa, cadeira, relógio, porta, parede, cama, panela. Foi ao curral e marcou os animais e as plantas: vaca, cabrito, porco, galinha, aipim, taioba, bananeira.” (CAS, 1996, p. 50).

135 espécie de diluição do mundo concreto, que acaba por deflagrar um processo de não apreensão do próprio nome das coisas. Chama a atenção o fato de, aos olhos de José Arcadio, o esquecimento recair não somente sobre os objetos comuns, mas “hasta los hechos más impresionantes de su niñez”(CAS, [s/d], p. 22).264 Isso parece assinalar que tal desmemoriamento concorre para se apoderar de algo muito mais precioso, que diz respeito à própria identidade de José Arcadio. Recorrendo novamente a Izquierdo, eu diria que a dissolução desse eu (totalmente ligado às relembranças mais profundas da infância, assim como às das demais fases da vida) é mais perigosa que a perda da memória das coisas imediatas, pois, sem esse “eixo” organizador que é o próprio eu, tudo perde sentido.

Seguindo a imposição de José Arcadio Buendía, o povo de Macondo passa a renomear os objetos para deter o poder implacável do esquecimento, ainda que essa tentativa tenha tudo para fracassar. Como é verificado no seguinte trecho: “Así continuaron viviendo en una realidad escurridiza, momentáneamente capturada por las palabras, pero que había de fugarse sin remedio cuando olvidaran los valores de la letra escrita”. (CAS, [s/d], p. 22).265

Ou ainda em:

En todas las casas se habían escrito claves para memorizar los objetos y los sentimientos. Pero el sistema exigía tanta vigilancia y tanta fortaleza moral, que muchos sucumbieron al hechizo de una realidad imaginaria, inventada por ellos mismos, que les resultaba menos práctica pero más reconfortante. (CAS, [s/d], p. 22).266

É pertinente notar que a peste da insônia, que por sua vez desencadeia uma peste do esquecimento, conduz o povoado de Macondo a um “redescender”, no sentido de „voltar novamente ao ponto mais baixo‟,267

já que seus habitantes retornam à sua antiguidade, quando o mundo é descrito como tão recente que muitas coisas careciam de nome, e para mencioná-las era preciso indicá-las com o dedo. Isso desenha a ideia de que, uma vez sem memória, ocorre o regresso a um estado primordial, arcaico, rústico, talvez abrutalhado.

264 “fatos mais impressionantes da sua infância” (CAS, 1996, p. 50).

265 “Assim, continuaram vivendo numa realidade escorregadia, momentaneamente capturada pelas

palavras, mas que haveria de fugir sem remédio quando esquecessem os valores da letra escrita.”

(CAS, 1996, p. 51).

266 “Em todas as casas haviam escrito lembretes para memorizar os objetos e os sentimentos. Mas o

sistema exigia tanta vigilância e tanta fortaleza moral que muitos sucumbiram ao feitiço de uma realidade imaginária, inventada por eles mesmos, que acabava por ser menos prática, porém mais

reconfortante.” (CAS, 1996, p. 51).

136 Daí que a criação da “máquina de la memoria” (CAS, [s/d], p. 22)268

se torna uma tentativa desesperada de não deixar que o estar no mundo se perca em meio aos intrincados labirintos do esquecimento.

Derrotado por aquellas prácticas de consolación, José Arcadio Buendía decidió entonces construir la máquina de la memoria que una vez había deseado para acordarse de los maravillosos inventos de los gitanos. El artefacto se fundaba en la posibilidad de repasar todas las mañanas, y desde el principio hasta el fin, la totalidad de los conocimientos adquiridos en la vida. Lo imaginaba como un diccionario giratorio que un individuo situado en el eje pudiera operar mediante una manivela, de modo que en pocas horas pasaran frente a sus ojos las nociones más necesarias para vivir. (CAS, [s/d], p. 22, grifos meus).269

O narrador do romance assinala que o pior esquecimento, aquele que ultrapassa qualquer esperança, é o que conduz ao fingimento. O encontro de um Melquíades completamente decrépito com o já desmemoriado José Arcadio revela o desconforto da situação:

Lo saludó con amplias muestras de afecto, temiendo haberlo conocido en otro tiempo y ahora no recordarlo. Pero el visitante advirtió su falsedad. Se sintió olvidado, no con el olvido remediable del corazón, sino con otro olvido más cruel e irrevocable que él conocía muy bien, porque era el olvido de la muerte. (CAS, [s/d], p. 22).270

É bom destacar que a amizade entre o cigano e o patriarca possui uma base antiga, que se relaciona ao tema da tradição. Mesmo que os novos ciganos continuem a trazer as mais fabulosas descobertas, Melquíades deu ao longo dos anos provas suficientes de sua amizade por José Arcadio. A lembrança da troca de experiências entre ambos se corporifica como um vínculo entre memória e tradição, tão presentes na literatura de um modo geral.

268“máquina da memória” (CAS, 1996, p. 51).

269 “Derrotado por aquelas práticas de consolação, José Arcadio Buendía decidiu então construir a

máquina da memória, que uma vez tinha desejado para se lembrar dos maravilhosos inventos dos ciganos. A geringonça se fundamentava na possibilidade de repassar, todas as manhãs, e do princípio ao fim, a totalidade dos conhecimentos adquiridos na vida. Imaginava-a como um dicionário giratório que um indivíduo situado no eixo pudesse controlar com uma manivela, de modo que em poucas

horas passassem diante dos seus olhos as noções mais necessárias para viver.” (CAS, 1996, p. 51).

270“Cumprimentou-o com amplas demonstrações de afeto, temendo tê-lo conhecido em outra época e

agora não se lembrar mais dele. Mas o visitante percebeu a falsidade. Sentiu-se esquecido, não com o esquecimento remediável do coração, mas com outro esquecimento mais cruel e irrevogável que ele

137 Neste ponto recorro às considerações do escritor e teórico argentino Ricardo Piglia. Ele defende que “para un escritor la memoria es la tradición”;271nesse caso “una

memoria impersonal, hecha de citas, donde se hablan todas las lenguas” Ŕ sendo que os “los fragmentos y los tonos” de outras escrituras voltam como “recuerdos personales”, às vezes com mais nitidez que os “recuerdos vividos” (PIGLIA, 1991, p. 60).272

Piglia afirma que “la tradición tiene la estructura de un sueño: restos perdidos que reaparecen, máscaras que encierran rostros queridos” (PIGLIA, 1991, p. 60).273

Nessa perspectiva os roubos na literatura são como as lembranças: “nunca de todo deliberados, nunca demasiados inocentes” (Ibidem, p. 60). O argentino assim esclarece seu pensamento:

La esencia de la literatura consiste en la ilusión de convertir el lenguaje en un bien personal. La relación entre memoria y tradición puede ser vista como un pasaje a la propiedad y como un modo de tratar a la literatura escrita con la misma lógica con la que tratamos el lenguaje: todo es de todos, la palabra es colectiva y es anónima. (PIGLIA, p. 60).274

Vista à luz dessa abordagem, a tradição comporta ainda a ideia de que “la identidad de una cultura se construye en la tensión utópica entre lo que no es de nadie y es anónimo y ese uso privado del lenguaje al que hemos convenido en llamar literatura.” Pode-se dizer que essa tradição é “el residuo de un pasado cristalizado que se filtra en el presente.”275Nesse sentido, [...] “un escritor trabaja en el presente con los rastros de una tradición perdida […], trabaja con la ex-tradición e esta “supone una relación forzada con un país extranjero.” (PIGLIA, p. 60).276

Acredito que essa foi uma das posturas políticas adotadas por García Márquez ao tornar sua Macondo e seu reino do Caribe espaços alegóricos Ŕ e, sob alguns aspectos, míticos Ŕ para a representação de fatos relacionados à violência e à morte. Especialmente no segundo caso, temos o transbordamento de uma memória

271“Para um escritor a memória é a tradição”.

272 “Uma memória impessoal feita de citações em que todas as línguas são faladas”; “fragmentos e os

tons”; “recordações pessoais”; “lembranças vividas”.

273 “a tradição tem a estrutura de um sonho: restos perdidos que reaparecem, máscaras incertas que

encerram rostos queridos”; “nunca de todo deliberados, nunca demasiado inocentes”.

274“A essência da literatura consiste na ilusão de converter a linguagem num bem pessoal. A relação entre

memória e tradição pode ser vista como uma passagem à propriedade e como um modo de tratar a literatura escrita com a mesma lógica com a qual tratamos a linguagem. Tudo é de todos; a palavra é

coletiva e é anônima.”

275“a identidade de uma cultura se constrói na tensão utópica entre o que não é de ninguém e é anônimo e

esse uso privado da linguagem a que temos concordado em chamar [de] literatura”; “o resíduo de um passado cristalizado que se filtra no presente”.

276“um escritor trabalha no presente com os rastros de uma tradição perdida [...], trabalha com a ex-

138 ancorada na tradição, mas com elementos bem próprios de um topos latino-americano. Em Del amor y otros demonios o marquês de Casalduero sobrevive em meio aos escombros de um casarão senhorial cujo passado mal fundado (ou mal reproduzido em terras caribenhas) resulta em algo que só pode crescer e se desenvolver de forma anômala. Assim como não é surpreendente que em Cien años de soledad sete gerações de uma família se vejam reduzidas a menos que pó. Tudo parece derivar de um encadeamento de enganos, de ilusões desfeitas e, sobretudo, de sucessivas crises de solidão. García Márquez faz questão de trazer para a ficção esses rastros, deixando nos leitores a impressão de que desde sempre tudo estava destinado à mais completa perdição.

Se memória e tradição apresentam pontos de confluência, não é absurdo cogitar que, mais próxima ou não dos fatos ocorridos, a reconstrução do passado requer uma boa dose de imaginação, não como forma de preenchimento aleatório das naturais lacunas proporcionadas pelas modalidades de esquecimento, nem como meio de conservar as dimensões épicas do drama, e sim como forma de encontrar alento e uma identidade que deem sentido à vida. Sendo assim, e bem ao estilo benjaminiano, García Márquez também adverte logo na inscrição de abertura do seu livro de memórias: “La vida no es la que uno vivió, sino la que uno recuerda y cómo la recuerda para contarla.” (GARCÍA MÁRQUEZ, 2005, p.7).277