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A preparação das mulheres para a vida militar

No estágio de adaptação à vida militar, tivemos relatos com relação à importância da adoção de uma postura irrepreensível, baseados nas normas de convívio social e nos regulamentos da Marinha, uma vez que, Segundo Castro (2004), todos os ensinamentos são fundamentais para a construção do Espírito Militar, traduzido pelo “conjunto de características que conformam a personalidade do indivíduo ao meio militar” (CASTRO, 2004, p. 49). Assim temos:

53 Na linguagem própria dos militares, o “mais antigo” é o militar mais graduado e o “mais moderno”, o menos

Em nossa formação foi enfatizado a importância de se adotar uma postura irrepreensível, nos moldes preconizados nas normas de convívio social e nos regulamentos da Marinha. Evidenciava-se a importância do pioneirismo de nosso ingresso na vida militar. Afirmava-se, constantemente que o curso e a nossa permanência na MB seria em caráter experimental e, portanto, renovada a cada ano. Após cada triênio, haveria corte no efetivo em função do desempenho profissional e da adaptação à vida militar. Este crivo seria realizado por uma Comissão de Avaliação, ao longo dessa experiência, tendo como base os conceitos dos Comandantes de cada militar e, principalmente, o interesse da MB. Inicialmente, não havia estabilidade. Este era um risco a ser calculado, razão pela qual, não me desvinculei do serviço público, quis estar convencida de minha permanência efetiva na Marinha. (OFICIAL H).

Cabe lembrar que ainda nesta época tínhamos a representação da mulher no tripé mãe – esposa – dona de casa, pois era um pensamento que advinha das primeiras décadas do século XX, de uma crença na natureza feminina que dotava a mulher no seu biológico para desempenhar as funções da esfera da vida privada, que era casar, ter filhos para a pátria e formar o caráter do cidadão do futuro. (FERRARESI, 2007). Assim, como evidencia Moscovici (2010), uma realidade social só é criada quando o novo ou não familiar vêm a ser incorporados aos universos consensuais. Por isso, o caráter experimental das mulheres a princípio e a presença das psicólogas para prepará-las, possibilitou transformar o desconhecido em conhecido, e a continuidade desta permanência dependeria da adaptação à vida militar dessas mulheres. Esse acompanhamento e orientação eram feitos geralmente por uma oficial do ano anterior. Na fala da Oficial H, formava-se:

Com um padrão de exigência compatível com as instituições militares. Na ocasião somente tínhamos contato com os militares (oficiais) encarregados de nossa formação. Para tal, algumas militares da primeira turma, na condição de Segundo-Tenente, atuavam como instrutoras e Oficial-de- Ligação.

Algumas turmas tiveram entre essas militares psicólogas, segundo a Oficial A:

[...] nossa adaptação e nos fazia mostrar a todo tempo que nós tínhamos que chegar com calma, que nós estamos entrando numa instituição que era eminentemente masculina, então nós íamos encontrar suboficiais que não iam bater continência pra gente ia ser marinheiro que ia, como é que se diz? que ia nos cantar por sermos mulheres. Então a nossa atitude teria que ser é, não digo de aceitação disso, mas digo de, é, como é que eu vou te explicar? Paciência, e muito cuidado na hora dos castigos. Outra coisa, poderíamos sofrer assédio, então tínhamos que tomar muito cuidado. Agora, paqueras, saber diferenciar, porque o ambiente de homens e mulheres, tanto é que você vai ver, vários casaram com os oficiais [...]. Então, diferenciar o que pode ser considerado assédio e não, então, ela se preocupou. A minha turma, não sei se em outras turmas, mas a minha turma teve o acompanhamento

psicológico de como entrar na instituição e as crises [...] Outra coisa também, é, de nós nos assumirmos como mulheres, entendeu? Assim, não tem as mulheres, tava falando ali, a mulher dele não tem TPM? Vão ter que se acostumar com mulheres militares tendo TPM. Isso é uma questão de adaptação. Entendeu? Que esta conquista nossa teria que ser uma conquista silenciosa [...]

Então, podemos dizer que as psicólogas trabalhavam com as mulheres na busca da construção de uma realidade comum a um conjunto social (JODELET, 1989, apud Sá, 1995), indicando o que elas poderiam encontrar e qual a postura a ser tomada, em razão dessas normas de convívio social, segundo os regulamentos da Marinha do Brasil, e até que esses homens também se adaptassem a essa nova realidade da instituição, pois fica claro, pela preocupação e orientações da psicóloga, que nesse primeiro contato houve certo estranhamento. Como as entrevistadas deixam evidente, pois o que a instituição passava para elas é que elas estavam ali como uma experiência, e o fato de as mulheres permanecerem ou não na instituição dependeria de suas atitudes dentro da Marinha do Brasil. Outra fala que deixa essa questão bem clara seria a da Oficial A, já atuando na instituição, que aponta:

[...] todo mundo assistia às minhas aulas, era o comandante, era o chefe do departamento, toda hora chegava um oficial mais antigo, dizendo assim: [...] você se incomoda que eu assista a sua aula? É obvio que estavam o que? Observando, analisando a minha postura, a postura dos alunos em relação a mim. Então isso é muito bonito na instituição, entendeu? Nós não fomos, nós fomos chegando e fomos conquistando, fomos mostrando valor e a instituição foi abrindo as portas, entendeu? Agora não foi ela só que abriu, nós também juntos, entendeu?

Desta forma, as mulheres tiveram que provar sua capacidade e mostrar o seu comprometimento diante desse novo espaço a ser conquistado. Segundo Takahashi (2002), isso ocorre quando há uma sobreposição da identidade militar sobre a identidade de gênero “feminino” e as mulheres possam ser vistas como militares, podendo conquistar os seus espaços. Assim, a Oficial A evidencia a postura dos oficiais que também estavam passando pelo processo de adaptação no que se refere à entrada das mulheres na instituição militar:

Ah! Dos oficiais, eram hilárias, porque eles também estavam [se] adaptando. Tinham coisas engraçadíssimas [...] Na minha turma, por exemplo, tinham três que rebolavam. [...], muito bonitinha, aquele tipo de brasileira bunduda e tal, e elas ficam na ré da turma porque a formatura normalmente, é do mais alto pro mais baixo. Então elas iam atrás, [...], os tenentes ficavam desesperados porque rebolavam. Essas três diminuíram um pouco, mas não deixaram de rebolar, aí o tenente falou assim mesmo [...]: Aí meu Deus vai

ser uma vergonha na formatura, na hora que passar pelo ministro da Marinha aquelas coisinhas rebolando, meu Deus o quê que eu faço! [...]

Mais uma vez trabalhamos com a questão da transformação do desconhecido em conhecido. Na passagem acima podemos perceber que o efetivo que ali estava presente e aquele que estaria em contato com as mulheres não tiveram uma preparação, mas tiveram apenas de seguir normas, regras e leis que amparavam e que ensinavam como essa corporação masculina deveria receber e se portar com o sexo feminino. Esse falta de preparo poderia fazer com que as relações ficassem muito engessadas diante do novo que ali se apresentava, evidenciando uma forma de estranhamento tanto da corporação masculina quanto das futuras oficiais femininas. Por exemplo, o fato de as mulheres que possuíam um quadril maior não conseguir, diante daquilo que era o padrão, como os oficiais falavam, ficar sem rebolar na formatura. A falta de preparo impedia transformar o estranho, o perturbador, em algo próximo, íntimo. Portanto, percebemos que a preocupação era com a figura do ser feminino, ou seja, das características biológicas que eram atribuídas como intrínsecas ao coletivo feminino.

Para exemplificar o exposto no parágrafo anterior, podemos falar sobre as guarda- marinha, como eram chamadas aquelas que viriam a ser as futuras oficiais, enquanto passavam pelo denominado “Período de Adaptação”. Na verdade, buscava-se uma transição rápida e não uma adaptação que, como a palavra sugere, demanda um tempo mais longo, necessário para a perfeita acomodação gradual à vida militar (CASTRO, 2004). Assim, podemos evidenciar de que forma ocorreu a construção do Espírito Militar, ou seja, a adaptação do civil ao militar ou a transformação do desconhecido em conhecido:

Nós ficamos três meses ali dentro, acordando às 6horas da manhã e dormindo às 22 horas ocupadas. [...] quatro meses nós ficamos internadas no regime militar [...] Fazíamos atividades ...é... tanto de atividades físicas, quanto de estudos, palestras diariamente das 8 da noite era das 8 às 10 da noite, tem noção do que é isso? Após o dia intenso nós percebíamos que não era para nós conversamos nem interessarmos por outras coisas, era uma lavagem cerebral. (OFICIAL B).

Ainda sobre a mesma temática, segundo o livro Mulheres a Bordo (2012), no CEFAN o curso de adaptação da primeira turma durou quatro meses e era uma rotina muito rígida. As alunas eram acordadas com um apito e logo em seguida uma das tenentes dizia “Guardas- Marinha, são 6 horas!” Iam para o banheiro, onde se formava uma fila, e eventualmente conseguiam comer uma maçã, pois o café da manhã era servido mais tarde, quando já haviam

corrido, nadado e cantado o Hino Nacional. As atividades iam até o pôr do sol, logo em seguida havia um horário livre para o jantar e, em seguida, geralmente, assistiam a uma palestra. Quando dava 22horas, era a hora do silêncio. As praças foram, inicialmente, para o CEFAN e de lá, de ônibus, numa viagem de aproximadamente duas horas, para Itacuruçá, e lá pegariam a embarcação que as levaria à Ilha da Marambaia, ao CADIM; quando chegaram foram divididas em seis pelotões. Logo no início foram chamadas ao pátio e também receberam um grande saco de lona, contendo seus uniformes com a numeração bem maior. Neste caso, a Marinha tomou as mesmas providências mencionadas anteriormente com as Guardas-Marinha e o problema foi resolvido. Nas primeiras turmas de praças, como não houve uma turma anterior à delas, foram utilizadas algumas mulheres da PM do Estado de São Paulo. Assim, segundo a Oficial E:

[...] como não tinha nenhuma referência de mulheres militares, nós fomos adestradas pela polícia militar de São Paulo. Foram militares de São Paulo que vieram aqui tomar conta das Praças da Marinha, junto com os Fuzileiros Navais. A primeira turma foram fuzileiros navais e as Sargentos da PM de São Paulo. O CEFAN que, que tratava das Oficiais não tiveram, foi só o pessoal da Armada que cuidou do CEFAN.

A Oficial E, quando se refere à relação entre homens e mulheres nos cursos e estágios, dá enfoque na sua fala à diversidade cultural existente na junção de várias pessoas de regiões diferentes, com hábitos e costumes diferentes, destacando a diferença existente entre as regiões de nosso país, destacando que a Marinha congrega todas elas. Isso é possível devido à busca de uma homogeneização na formação militar, podendo ser percebido na rotina durante o Curso de Adaptação à vida Militar.

Segundo o relato de outra entrevistada, a convivência entre homens e mulheres, com a formação junta foi ótima e com os instrutores também. Mas as normas de convivência acabavam sendo exageradas, normas estas, segundo a entrevistada, interpretadas e aplicadas de forma errônea por pessoas dentro da instituição, e não colocadas por elas. Informa ainda que algumas sindicâncias que ocorreram durante o curso de adaptação acabaram estremecendo as relações:

Porém, [...] as normas que colocaram pra gente de convivência eram absurdamente restritas, parecia época medieval. Não podia andar mulheres sozinhas na ilha tinha que andar de dois, de três. Então, eu acho que até devido a pessoa que colocaram pra ser nossa encarregada, que acabou saindo da Marinha tendo um monte de problemas, [...] ela extrapolou, ela exagerou, não era tempo de ninguém restringindo caminhada na ilha. Nós estávamos

na década de 80, onde homens e mulheres já tavam mais integrados. E também durante o curso, devido a alguns exageros, teve três sindicâncias, meu curso foi muito traumático, durante o curso três investigações, negócio de cola e tudo. Então isso gerou uma certa desconfiança “Ah! Alguém denunciou a gente...” tanto é que na minha turma mesmo as das mulheres mesmo não, não somos unidas até hoje. Foi meio traumático aquele curso, foi meio exagerado, foi... era a segunda turma que tava tendo mulheres e homens juntas, a primeira foi em 85. Então, acho que foi... foi meio exagerado, mas não foi coisa da Marinha era das pessoas que tavam ali.

Desta forma, podemos perceber que a representação conferida por meio dos velhos papéis, mas muito presente ainda, atribuída às mulheres (como o ser frágil, que precisa ser protegido etc.), não vem só de homens, nesse caso veio de uma mulher que reproduz essas representações dos velhos papéis conferidos à figura feminina. No caso em pauta, essa representação acabou prejudicando a convivência e um estreitamento de laços de amizade entre elas. Outro exemplo deste caso está no relato de outra entrevistada que apresenta o seu recorte sobre a dificuldade que sentiu em relação à convivência, quando narra: “Passei pelo estágio [...] e fui recebida por uma oficial da 2ª turma, bastante rigorosa, porque era filha de general do exército e casada com major do exército” (OFICAL J).

Uma das entrevistadas se refere ao período de adaptação como o de maior dificuldade. Segundo a fala da Oficial C, “o que foi mais difícil foi a adaptação na ilha, foi a distância da família, a gente chorava muito à noite na hora de recolher, chorava demais no alojamento. Isso que foi o mais difícil”.

Ainda existem aquelas que relatam que já foram para a instituição com uma experiência, ou seja, “prontas para trabalhar”, mas perceberam que tiveram que aprender a “ser Marinha”.

Mas eu sempre fui criada pelo meu pai desde novinha assim, assumindo desafios, indo e fazendo coisas, indo assumir responsabilidades, assumindo chefia na empresa, cuidando de equipe e me deu uma base, quando eu entrei pra Marinha eu tava pronta pra trabalhar na Marinha. Não vim aprender a ser profissional. Eu já tinha 7 anos trabalhando, 7 anos na carteira, fora os anos que eu trabalhava antes com o meu pai, então... eu vim pra Marinha pronta pra trabalhar, mas tive que aprender Marinha, mas profissionalmente tava madura já.